Existe, há anos, um protocolo de cooperação entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, para a promoção da educação para a saúde em meio escolar. Está assinado, está em vigor. Mas não funciona onde mais importa: na partilha de dados que permite proteger quem estuda, ensina ou trabalha nas escolas.
A saúde das crianças — e também a dos adultos que com elas partilham os dias — não começa no consultório, nem termina com uma alta clínica. Vive nos intervalos do tempo, nos corredores da escola, no recreio onde o corpo se liberta, no silêncio da ansiedade que se mascara de curiosidade, no professor que falta três dias seguidos sem que ninguém pergunte porquê, na auxiliar que desfalece entre baldes e lancheiras. Tudo isso é escola. E a escola, tantas vezes, vê. Mas a Saúde, tantas vezes, não chega a tempo de ver também.
É por isso que qualquer protocolo entre Educação e Saúde tem de ser mais do que um papel assinado — tem de ser um compromisso vivo com a promoção de uma escola que cuida. Que promova a saúde mental e as relações humanas. Que fale, com naturalidade, de alimentação, sexualidade, escolhas e riscos. Que previna consumos e infeções. Que garanta segurança nos espaços e estimule o movimento dos corpos.
Uma escola que trate a saúde como residente permanente, não como visita ocasional. A Educação tem os dados, a Saúde tem a intenção de ajudar, mas falta o elo entre as duas. No futuro, este elo precisa ser criado para garantir uma integração eficaz.
Imaginemos um casal que vive na mesma casa, mas esconde os códigos do cartão multibanco um do outro. Parece ridículo? Pois é assim que temos gerido a relação entre Educação e Saúde: habitam o mesmo espaço social, cuidam das mesmas pessoas, mas não falam a mesma linguagem nem acedem às mesmas informações.
Se um encarregado de educação assinala no Portal das Matrículas que o filho é diabético, por que razão essa informação não chega, de forma segura e automatizada, à equipa de saúde escolar? Se um aluno tem um diagnóstico de meningite bacteriana, porque não sabemos automaticamente quem contactou com ele, para iniciar a profilaxia? Se o Ministério da Saúde pretende emitir cheques-dentista, por que razão precisa de voltar a perguntar aquilo que o Ministério da Educação já sabe? Todos os anos, as escolas enviam os mesmos dados para a Saúde — um vaivém burocrático que consome tempo, energia e dinheiro. Informação que já existe, mas que insiste em não circular.
Não se trata de falta de vontade. Trata-se de uma estrutura ultrapassada, que continua a confundir confidencialidade com ocultação. Mas é possível fazer diferente. E já há bons exemplos.
A Unidade Local de Saúde de Matosinhos desenvolveu o Via Verde – Necessidades de Saúde Especiais: uma ferramenta de referenciação rápida, encriptada e ética. Usa soluções tecnológicas simples — Power Automate, Microsoft Forms — para garantir que:
- Só os dados essenciais são partilhados;
- Apenas profissionais de saúde escolar autorizados, sujeitos a sigilo, têm acesso;
- Tudo funciona em plataformas protegidas pelo Serviço Nacional de Saúde, em conformidade com o RGPD.
É um projeto premiado, sim. Mas mais do que um troféu, é uma prova de conceito: é possível proteger a privacidade sem amputar a resposta. A integração de dados entre os Ministérios da Educação e da Saúde é essencial para melhorar a saúde pública. Atualmente, a falta de comunicação entre esses setores resulta em falhas na vigilância epidemiológica e na implementação de programas preventivos.
É urgente criar uma plataforma nacional que permita a partilha automatizada de dados essenciais de alunos, docentes e não docentes. Esta interoperabilidade não é um luxo tecnológico, mas uma necessidade estratégica. Com uma plataforma comum, seria possível:
- Monitorizar coberturas vacinais em contexto de comunidade educativa.
- Emitir testes rapidamente em contextos pandémicos.
- Prescrever profilaxia em surtos de doenças infetocontagiosas.
- Ativar programas preventivos com mais precisão.
- Agir com eficácia em situações de risco coletivo.
As autarquias têm feito muito, mas é necessária uma visão nacional e vontade política para avançar. O Plano de Recuperação e Resiliência oferece uma oportunidade histórica para implementar este sistema. O novo Programa Nacional de Saúde Escolar pode ser a âncora desta mudança, promovendo uma abordagem holística que reconheça a interdependência entre saúde humana, animal e ambiental.
O conceito de One Health, tantas vezes citado, continua a ser pouco vivido. Mas as escolas são o palco ideal para o concretizar — porque ali se vive, aprende, alimenta e respira. Tudo está ligado. E todos temos de estar ligados também. Este programa pode integrar esforços e recursos, promovendo uma abordagem holística que reconheça a interdependência entre a saúde humana, animal e ambiental, e que proteja melhor as crianças, preparando o futuro com inteligência e segurança.
Se a escola já sabe, a saúde não pode continuar a adivinhar. Porque sabedoria não é ter todos os dados — é saber utilizá-los, com humanidade, rigor e segurança, para proteger quem mais precisa.
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