Como é que descobriste que tinhas cancro?
A minha mãe teve cancro de mama em 2004. A minha avó já tinha tido cancro de mama e morreu. A minha tia também tinha tido cancro de mama e morreu. Portanto, começámos a achar que possivelmente havia aqui um historial familiar da doença.
A minha mãe foi indicada para fazer uma consulta de genética familiar para realizar um estudo no qual efetivamente se comprovou que ela tinha a mutação BRCA1 e 2, que confere maior probabilidade de ter cancro da mama. Assim sendo, foi-nos questionado, a mim e à minha irmã, se queríamos fazer esse estudo genético. Fizemos e deu positivo.
Entretanto, fiz vários exames médicos e descobri que já tinha um tumor com dois centímetros e meio. Inicialmente havia a dúvida se era efetivamente um tumor maligno ou não, porque eu tinha umas mamas grandes e podia ser um fibroadenoma.
Depois, quando fiz a cirurgia, também já tinha outro tumor na mama esquerda. Portanto, ainda bem que na altura falámos logo em fazer profilaxia. Fiz uma mastectomia profilática e retirei a mama esquerda e fiz a mastectomia radical e tirei a mama direita.
Não sinto que esteja curada nem que alguma vez venha a estar. Aliás, nunca ninguém me falou desse termo
O que pensaste na véspera dessa cirurgia?
Naquele momento só se pensa nas pessoas que vão para o corredor da morte. Foi assim que me senti. Estamos completamente zombie, porque já tomámos vários medicamentos. Começamos a pensar no que nos vai acontecer, afinal iria ter dali a nada o corpo todo mutilado.
Mas naquele momento, que parece que tenho completamente presente apesar de terem passado nove anos, eu só pensava que iria ser um alívio. Ia tirar aquela porcaria de dentro de mim. Porque eu quero viver. Eu quero viver. Eu quero estar cá. Por isso, foi mais um alívio do que outra coisa qualquer.
O cancro mudou-te?
Tornei-me mais fria, tornei-me menos paciente. Muito menos paciente. Mais desorganizada. Nos momentos em que estou triste, estou muito mais triste do que alguma vez tinha experimentado tristeza, naqueles anos antes. Ou pelo menos da memória que eu tenho.
Eu não sei se eu não teria apurado estas características mesmo que não tivesse tido cancro... Mas hoje acho que sou muito mais relaxada em relação a muitos assuntos.
Não me vou chatear porque alguém no trabalho me anda a incomodar. Penso: sobrevivi a um cancro, também sobrevivo a isto. Não sei se o cancro me tornou melhor ou pior pessoa. Mas acho que hoje vivo tudo mais apurado: o bom e o mau.
Como é que te manténs vigilante em relação à doença?
Neste momento já não faço nenhum tipo de tratamento, portanto tenho consultas de rotina e de vigia de seis em seis meses. Já não faço medicação. Fiz medicação durante cinco anos. Na altura não me tiraram os ovários - porque a mutação que eu tenho também me confere maior probabilidade de cancro do ovário - por causa da idade e por questões de preservação de fertilidade.
É óbvio que eu não quero ter filhos. Não quero pôr filhos com mutações genéticas neste mundo complexo. Para mim, era muito claro: eu quereria ter tirado logo os ovários. Foi um assunto que fui tratando com a minha médica oncologista e depois, aos 34 anos, também tirei os ovários. Considero que isso é uma terapêutica. Foi uma forma de controlar e de agir profilaticamente sobre a possibilidade de ter um cancro do ovário.
Hoje sentes-te saudável?
Não me sinto uma pessoa saudável no sentido em que sei o potencial que o meu corpo tem, mas sinto-me com saúde. Não me sinto completamente saudável, mas sinto-me com saúde. Não é a mesma coisa. Não sinto que esteja curada nem que alguma vez venha a estar. Aliás, nunca ninguém me falou desse termo. Nem de cura, nem de remissão… Nunca houve nenhum médico que me falasse sobre isso.
No que é que te refugias quando tens pensamentos menos bons?
Na música. A música é o meu bálsamo, o meu escape, a minha terapia, a minha igreja... Às vezes até é na música que eu vou chorar, carpir, que vou expulsar os demoniozinhos todos. O facto de estar casada com uma pessoa que é outro dos meus deuses, não é só um ombro, também me mantém mais equilibrada. É o Pedro que me mantém ali muito segura e que me faz sentir que tudo isto vale a pena. Porque eu quero estar com ele e quero continuar a partilhar coisas com ele. Isso ajuda-me a estar mais equilibrada e a criar menos ansiedade em relação a esse medo que é diário: acho que não há coisa que eu não pense todos os dias que não seja "e se eu ficar outra vez doente?".
Sentes que a sociedade é cruel com as pessoas com cancro?
Sim e explico-te porquê: porque és "coitadinha", porque "és tão nova" e "aconteceu-te uma coisas destas". Eu não quero ser coitadinha e não quero que as pessoas tenham pena de mim. Eu quero que me transmitam mensagens positivas.
Torna mais credível a nossa luta se tivermos alguém por quem o fazer. Seja tu próprio, os teus filhos... No meu caso, eu lutei pelos meus pais
Há um velho ditado que diz que conheces os amigos no hospital e na cadeia. E isso é mesmo verdade. A minha doença serviu também para filtrar as pessoas à minha volta, para perceber quem era para estar e permanecer na minha vida e quem não era. Se calhar muitas pessoas afastaram-se por causa da incapacidade de lidar com isto. Sim, afastei-me de algumas pessoas. Ou afastei-as. Não sei.
O que dirias a quem convive hoje com a doença?
Arranjem um motivo para fazer a vida valer a pena. A palavra de ordem é lutar. Acreditem! Torna mais credível a nossa luta se tivermos alguém por quem o fazer. Seja tu próprio, os teus filhos... No meu caso, eu lutei pelos meus pais.
Diria para se informarem. Para tomarem opções sem medos. Aproveitem o que existe de bom todos os dias, porque quando estamos a fazer um tratamento como este, estamos com a vida um pouco em suspenso. Temos de tentar contrariar isso e ter todos os dias um momento bom. Nem que seja a ver uma série ou a fazer uma festinha na gata.
O que dirias hoje à "Alexandra dos 28 anos"?
Não sei se devo dizer o que realmente diria (pausa). Ok, já sei: "Vais ver os Radiohead mais cinco vezes". (risos)
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