HealthNews (HN) – Qual foi o objetivo do estudo “Consensus recommendations on holistic care in hereditary ATTR amyloidosis: an international Delphi survey of patient advocates and multidisciplinary healthcare professionals”?

Isabel Conceição (IC) – Em 2019, o grupo de defesa dos doentes, intitulado Amyloidosis Alliance, apelou a uma expansão dos serviços locais, reconhecendo a necessidade de uma abordagem mais ampla e holística da saúde e dos cuidados sociais, a fim de reduzir o peso da doença para os doentes e as suas famílias.

Este foi um estudo internacional, multicêntrico, efetuado através de uma metodologia Delphi (processo interativo que utiliza rondas de votação anónima, levando à convergência das opiniões e juízos de especialistas sobre uma recomendação), constituído por mais de 230 profissionais de saúde e 50 defensores dos doentes de 28 países diferentes.

Foi formado um Painel Primário, representando grupos de defesa dos doentes (GDDs) e especialidades clínicas chave (neurologia e cardiologia), tendo sido convocado para avaliar as necessidades dos doentes e suas famílias e os desafios e oportunidades para a prestação de cuidados holísticos. Por outro lado, foram desenvolvidas recomendações para inspirar e incentivar cuidados centrados no doente, que são geridos por especialistas num contexto multidisciplinar e apoiados por profissionais de saúde aliados.

HN – Qual a importância de envolver um núcleo tão alargado de especialistas e, também, de envolver os representantes dos doentes?

IC – Extremamente importante, porque a visão que um país como Portugal tem, onde estamos perante uma doença muito prevalente, onde temos bastante experiência na doença e onde lidamos com uma forma de doença muito característica, pode ser totalmente diferente de um país onde a doença é muito mais rara e podem existir mutações que têm formas de apresentação completamente diferentes. Esta heterogeneidade de apresentação da doença dependente das mutações e a maior raridade da doença em determinadas regiões tornam as opiniões diferentes, ou a forma de lidar com a doença diferente. Não somos nós que lidamos melhor do que os outros, mas, se calhar, temos mais prática; lidamos com a doença há mais tempo e temos mais experiência. Foi muito bom porque aprendemos uns com os outros.

HN – Porque é que a abordagem holística é tão relevante?

IC – A abordagem da doença como um todo é de extrema importância para garantir uma atenção completa e integrada, visando não apenas a doença em si, mas também o bem-estar geral e a qualidade de vida do doente.

Dada a característica multissistémica da doença, estes podem apresentar uma variedade de sintomas, que podem ser físicos, emocionais e psicológicos.

Entre os sintomas mais impactantes na qualidade de vida estão os sintomas gastrointestinais e geniturinários, que em situação extrema podem levar a incontinência de esfíncteres, facto que leva a uma marcada limitação social.

O atingimento motor progressivo, com consequente dependência de terceiros nas atividades de vida diária, é uma barreira física e emocional que deve ser abordada, não apenas com um programa de reabilitação física, mas também com adaptação do domicílio ou local de trabalho.

Estes foram alguns dos aspetos abordados neste estudo, entre outros, como a necessidade de aumentar o alerta entre os profissionais de saúde e da sociedade em geral para a doença, permitindo, assim, um diagnóstico mais precoce.

HN – Que resultados destacaria?

IC – Foi alcançado um alto nível de consenso (98%) em relação às recomendações para diagnóstico precoce, início do tratamento e cuidados multidisciplinares coordenados. Isso inclui a realização obrigatória de testes genéticos para confirmação do diagnóstico e o início de tratamentos modificadores da doença, bem como a gestão em centros qualificados e revisão interina para pacientes com sintomas graves.

Além disso, houve consenso sobre a importância de manter a independência e qualidade de vida, com um plano de cuidados personalizado centrado na família, acesso a serviços de suporte e programas de gestão da dor. Decisões de tratamento devem ser tomadas em conjunto com os doentes e é essencial educá-los sobre a doença e discutir abertamente com as famílias sua natureza hereditária. Também foi destacada a importância do apoio espiritual e das redes sociais, com recomendações para os centros especializados fornecerem informações sobre associações de doentes e reconhecerem o valor dos grupos de apoio e redes sociais na conexão de pessoas afetadas pela doença rara.

HN – Quais são os maiores desafios à implementação de uma abordagem holística?

IC – Eu diria que os maiores desafios são a educação, o tratamento (sobretudo em países onde a terapêutica modificadora da doença não está disponível) e termos equipas multidisciplinares bem treinadas na gestão destes doentes.

HN – De que armas terapêuticas dispomos e qual a sua relação com o diagnóstico precoce?

IC – Podemos dizer que temos quatro linhas terapêuticas. A primeira terapêutica aprovada na doença foi o transplante hepático – não está fora de equação, continua a ser uma terapêutica aprovada e que se continuar a fazer, com algumas indicações específicas. Em termos de terapêutica farmacológica, temos estabilizadores da proteína (TTR), cuja indicação é para a neuropatia nas fases muito precoces de doença. O diagnóstico precoce permite fazer com que a terapêutica modificadora da doença se torne muito mais eficaz e, portanto, seja possível melhorar o prognóstico desta doença, com os estabilizadores, que são fármacos orais.

Depois temos fármacos que são redutores da produção da TTR no fígado. São fármacos que interferem na síntese do RNA mensageiro, diminuindo a produção de proteína, cuja administração pode ser subcutânea ou endovenosa, e que também está provado que são mais eficazes se dados numa fase mais precoce da doença, embora possam ser prescritos em fases mais avançadas da mesma.

HN – De que forma a organização de cuidados e a monitorização dos doentes podem contribuir para a melhoria de prognóstico?

IC – Uma equipa multidisciplinar bem organizada e altamente treinada é crucial para avaliar indivíduos portadores da mutação causal da doença, mas ainda sem sintomas evidentes. Estes indivíduos representam um alvo primordial para o diagnóstico precoce. Em outras palavras, uma equipa multidisciplinar altamente qualificada tem a capacidade de identificar os primeiros sinais da doença o mais cedo possível. Sabemos que, nessa fase, se o tratamento for iniciado, o prognóstico é significativamente melhor. Conseguimos interromper a progressão da doença de forma muito mais eficaz do que se os indivíduos forem diagnosticados numa fase mais avançada, quando os sintomas já estão manifestos. Portanto, o principal elemento é ter uma equipa treinada, com conhecimento e experiência, capaz de identificar os sinais iniciais e iniciar a medicação, melhorando assim significativamente o prognóstico.

HN – Estamos a falar de uma equipa nos centros de referência ou de uma equipa também nos cuidados de saúde primários?

IC – Estas equipas multidisciplinares devem ser dos centros de referência. Apesar de ser multissistémica, estamos a falar de uma doença que tem primordialmente um envolvimento neurológico e cardiológico. Estas serão as especialidades core de seguimento dos indivíduos que são portadores da mutação, embora depois possa haver outro tipo de envolvimento de outras especialidades, como acontece no caso dos doentes que começam a ter outras manifestações sistémicas. Isto tem que ser feito com pessoas com experiência em lidar com a doença, portanto terá que em centros de referência. Trata-se de uma doença rara, não temos um número de doentes suficiente para que possamos fazê-lo fora dos centros de referência, porque para ganhar experiência é preciso ter muitos doentes.

O papel da medicina geral e familiar é extremamente importante sobretudo no manuseamento a posteriori, ou seja, na abordagem sintomática da doença, na preservação de algum grau de qualidade de vida destes doentes, podendo tratar os doentes do ponto de vista sintomático para a dor, para a diarreia, entre outros. Mas a interferência num diagnóstico precoce da medicina geral e familiar será apenas no reconhecimento de familiares em risco ou dos primeiros sinais de alerta da doença. O seguimento regular destes doentes tem de ser feito nos centros de referência.

HN – O estudo aborda a importância da saúde física e da saúde psicológica e engloba tanto o apoio ao doente como a família e os cuidadores. Em Portugal, o que é que pode ser alterado ou melhorado nesta ligação à família e aos cuidadores e no apoio em áreas que integram a tal abordagem holística, como a nutrição, a fisioterapia ou a psicologia?

IS – Na verdade, em Portugal, estas são áreas onde nós podíamos de facto melhorar, quer a nível hospitalar quer a nível dos cuidados de saúde primários. Embora o apoio psicológico dos doentes possa ser direcionado dentro dos hospitais, para psicólogos da área de genética ou mesmo para o departamento de psiquiatria, a abordagem e o apoio das famílias não é feito, pelo menos no que diz respeito ao centro de referência de Lisboa. Essa é uma falha grande, e eu penso que aí o papel das associações de doentes seria extremamente importante, ou seja, haver reuniões, haver ações de formação com apoio de psicólogos, sociólogos ou assistentes sociais que pudessem ajudar estas famílias e estes doentes. Essa é uma falha importante na nossa sociedade e que penso que será um dos grandes desafios.

HN – Gostaria de deixar uma mensagem final?

IC – A abordagem holística na gestão dos doentes com amiloidose hereditária é essencial para garantir uma atenção completa e integrada, visando não apenas a doença em si, mas também o bem-estar geral e a qualidade de vida do doente.

Na verdade, é responsabilidade de todos nós melhorar esta abordagem da doença. Não depende apenas de um lado; também requer a vontade dos representantes dos doentes em estabelecer laços com a medicina geral e familiar e com os centros de referência, visando melhorar a educação das famílias e procurar apoio, que atualmente pode ser encontrado online. Talvez seja útil aprender com experiências de outras associações e grupos de doentes que possuam materiais educativos relevantes e adotem uma organização um pouco diferente.

Entrevista de Rita Antunes

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