Susana terminou há menos de quatro meses o último ciclo de tratamentos de radioterapia. Foi diagnosticada há cerca de um ano com um carcinoma ductal invasivo, um tipo de cancro da mama altamente agressivo. Foi submetida a uma cirurgia de remoção do tumor, tratamentos de quimioterapia e radioterapia e aguarda ansiosamente o fim da baixa médica para voltar a dar aulas.
"Ainda estou a aprender a desprender-me da doença", admite. "Passamos tanto tempo a dedicar-nos aos tratamentos que é difícil não pensar nisto", diz, para acrescentar logo a seguir: "nós não somos o cancro", mas a "doença apodera-se do pensamento".
Esta professora do 1º ciclo de 39 anos tem dois filhos com dois e quatro anos. "Uns ninjas", como carinhosamente lhes chama. Susana descobriu que tinha cancro de mama nove meses depois do nascimento do segundo filho, David.
Um projeto que é uma terapêutica
Susana Neves, Dénis Conceição e Alexandra Silva são os mentores e autores do projeto "Por falar em cancro", um podcast que pretende desbravar o tema da doença oncológica. "É tabu, não se fala. Existem muitos casos em pessoas jovens. Mas não se fala", afirma Susana que logo após o fim dos tratamentos sentiu "um enorme vazio".
Há muita gente a escrever sobre cancro e há muita gente a partilhar histórias. Mas neste formato não há. É mais transparente. Quem ouve, é como se lhes entrássemos na alma
"Enquanto estive focada no tratamento, tinha algo com que me preocupar. Mas no pós-tratamento, comecei a ter medo da possibilidade de uma nova doença, de uma recidiva", admite. "Foi nesse período de vazio que senti que precisava de fazer alguma coisa", explica a jovem professora.
"A ideia de fazer especificamente um podcast foi do Dénis, inspirado no programa ‘You, Me and the Big C’" da BBC Radio 5 Live, recorda a assertiva Alexandra. “Fazemos sempre questão de o mencionar, porque nós não somos todos os dias originais e bebemos uns dos outros", garante Dénis, o moderador, cuidador e marido de Susana.
"Há muita gente a escrever sobre cancro e há muita gente a partilhar histórias. Mas neste formato não há. É mais transparente. Quem ouve, é como se lhes entrássemos na alma", refere Dénis que logo a seguir é interpelado por Susana: "As nossas emoções vêm muitas vezes à tona e é impossível escondê-las. É um programa autêntico".
Alexandra e Susana conheciam-se dos corredores da escola desde o tempo do liceu. Duas décadas depois, a doença reaproximou-as.
Alexandra Silva tinha 28 anos quando lhe surgiu a doença. Teve cancro nas duas mamas. Foi submetida a uma mastectomia dupla, uma parcial e a outra total, com reconstrução da mama. Mas a relação de Alexandra com o cancro não se fica por aqui.
A avó, a tia e a mãe também tiveram a doença. E a irmã, para a evitar, fez uma dupla mastectomia.
Alexandra é uma das 600 mulheres que todos os anos são diagnosticadas com cancro da mama por serem portadoras da mutação dos genes BRCA 1 e 2, um alteração genética que aumenta a predisposição para os tumores da mama e do ovário. O cancro da mama acomete 6.000 mulheres por ano em Portugal, segundo dados da Liga Portuguesa Contra o Cancro.
Todos nós, mais cedo ou mais tarde, na nossa vida - oxalá que mais tarde - vivemos grandes tragédias. A maneira como nós vamos encarar essas tragédias é que pode fazer a diferença sobre como se vai viver o resto da nossa vida
No podcast "Por falar em cancro" partilham-se experiências, sentimentos e pontos de vista, sempre com os olhos no passado, o coração no presente e um pé no futuro. "Além de termos vivido a doença em fases diferentes, eu tenho visões completamente distintas das da Susana. Às vezes até nos contrariamos uma à outra", conta Alexandra.
"Todos nós, mais cedo ou mais tarde, na nossa vida - oxalá que mais tarde - vivemos grandes tragédias. A maneira como nós vamos encarar essas tragédias é que pode fazer a diferença sobre como se vai viver o resto da nossa vida", comenta.
Foi na doença que Alexandra aprendeu a reinventar-se. Soube vivê-la e vai sabendo arrumá-la nas prateleiras do passado que, não raras vezes, precisa de remexer. "Desde cedo tentei fazer disto um espaço terapêutico. Em primeiro lugar isto foi uma estratégia para ajudar uma amiga, a Susana. Mas é também uma estratégia para me ajudar a mim. Não tenho falsas modéstias. Não quero ser uma influencer do cancro, nem que as marcas me paguem para falar sobre isto… Simplesmente poder fazer isto cria novos espaços terapêuticos para mim", admite a também professora, jornalista nas horas vagas e fiel crente na igreja da música. “A música é outra das minhas terapias", revela.
"Criar este projeto já valeu a pena porque já me afastei do pensamento constante de uma recidiva", acrescenta Susana Neves. "Isto é um registo que fica para a vida. Tenho medo de morrer e de não criar memórias suficientes para os meus filhos. Já disse ao Dénis que gostava que ele me gravasse a cantar para um dia me recordarem. Os nossos filhos são pequenos e tenho medo que as memórias se percam. Poderá estar aqui um registo daquilo que eu sofri", afirma Susana com a racionalidade de quem se agarra à vida.
A alopécia foi o momento em que mostrei ao mundo que tinha cancro. Tive de contar ao Matias, com três anos, que a mãe tinha um dodói na maminha. Foi muito duro para mim
O cancro e a maternidade
"Ser mãe e ter cancro é horrível. Chega-se a casa com dores, as crianças pedem para brincar, mas não consigo pegar nos meus filhos porque tenho limitações físicas… Tive de suspender a amamentação de forma abrupta. Quando fui mãe o primeiro medo que tive foi de morrer, longe de imaginar que de facto isso pudesse acontecer", descreve com a mesma pausa e detalhe que usa para narrar o seu processo de doença.
"É muito duro para uma mãe com cancro manter o equilíbrio da família. Muitas vezes fiz um esforço para sair de casa para ter uma família o mais normal possível", frisa. "Tinha cabelo grande e comprido. Como é que se explica a uma criança que a mãe ficou sem cabelo?", questiona com a retórica que se impõe e que inevitavelmente convida à reflexão.
"A alopécia foi o momento em que mostrei ao mundo que tinha cancro. Tive de contar ao Matias que a mãe tinha um dodói na maminha. Ele não gostou de me ver… Não reagiu bem. Estamos a falar de uma criança de três anos. Foi muito duro para mim", assevera Susana. "Hoje a questão do aspeto deixou de ser importante. Eu tinha bom aspeto e tive cancro", remata.
O cancro é a proliferação anormal de células. Não existe um cancro. Existem centenas deles, nas suas várias tipologias. O cancro tem início nas células; um conjunto de células forma um tecido e, por sua vez, os tecidos formam os órgãos do corpo humano.
Normalmente, as células crescem e dividem-se para formar novas células. No seu ciclo de vida, estas envelhecem, morrem e são substituídas por outras. Algumas vezes, este processo ordeiro corre mal: formam-se células novas, sem que o organismo necessite e, ao mesmo tempo, as células velhas não morrem. Este conjunto extra forma um tumor. Nem todos os tumores correspondem a cancro. Os tumores podem ser benignos ou malignos.
O número de novos casos de doença oncológica na União Europeia deve chegar este ano aos três milhões, com Portugal a ultrapassar os 58 mil novos diagnósticos. Mais de metade acaba por morrer vítima da doença. As estimativas constam do último relatório da OCDE sobre saúde. Hoje é o Dia Mundial da Luta Contra o Cancro.
Fotografias: Luís Ala
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