A miocardiopatia amiloide por transtirretina (ATTR-CM) é considerada uma doença rara, progressiva e potencialmente fatal. Estima-se que, depois de diagnosticada, o doente possa ter uma sobrevida de apenas três anos e meio. Perante a gravidade da doença, Dulce Brito, Cardiologista no Centro Hospitalar Lisboa Norte e Professora de Cardiologia na Faculdade de Medicina de Lisboa, considera que é fundamental que tanto a população, como a comunidade médica estejam bem informadas sobre a doença de maneira a garantir o diagnóstico precoce. É preciso pensar na doença mesmo em contextos específicos, seja no campo da Cardiologia, da Neurologia ou mesmo no domínio da ortopedia, gastrenterologia ou outros”, alerta.

HealthNews (HN)- A Miocardiopatia Amiloide por Transtirretina (ATTR-CM) é considerada uma doença rara, progressiva e potencialmente fatal. A que sinais e sintomas devemos estar atentos e quando é que devemos consultar o médico?

Dulce Brito (DB)- Existem dois tipos de ATTR-CM, a forma hereditária (causada por mutação genética) e a forma wild-type (relacionada com a idade). Esta última tem vindo a ser identificada de forma mais frequente devido ao envelhecimento da população e à maior atenção dos médicos para esta patologia, visto que atualmente ela pode ser tratada de forma dirigida.

Mas o que é a Miocardiopatia Amiloide por Transtirretina? É uma doença que resulta da deposição no coração duma proteína (a transtirretina), produzida no fígado. A proteína torna-se anormal, desagrega-se e deposita-se nos órgãos, afetando o seu funcionamento. No caso do coração, a deposição da proteína anormal leva a miocardiopatia infiltrativa com “engrossamento” do músculo cardíaco (“hipertrofia”) e mau funcionamento do mesmo, surgindo manifestações de insuficiência cardíaca como fadiga, cansaço progressivo, falta de ar e inchaço dos pés e pernas. Podem também surgir arritmias e mau funcionamento das válvulas cardíacas. Quando estes sinais surgem em pessoas com mais de 65 anos, temos sempre de considerar esta hipótese de diagnóstico, nomeadamente quando os exames mostram a presença de hipertrofia das paredes do coração.

HN- Considera que o facto de ser uma doença multissistémica, com manifestações variadas, pode explicar a dificuldade que existe no diagnóstico precoce?

DB- O diagnóstico é realmente um desafio, porque a proteína pode depositar-se em vários órgãos que não o coração. Isto acontece mais frequentemente nas formas genéticas, hereditárias. Alguns sinais e sintomas podem criar alguma confusão e serem associados a outras doenças. A dificuldade na digestão, as tonturas e o desequilíbrio, as palpitações e o adormecimento nas mãos e pés não chamam, de imediato, à atenção para uma única doença. A ATTR-CM pode parecer um puzzle quando se manifesta, obrigando a que muitos doentes consultem diferentes especialistas e fiquem até quatro ou seis anos à espera de obter um diagnóstico.

HN- Esta doença reduz progressivamente a qualidade de vida dos doentes e, se não for tratada, pode causar a morte prematura. Que estratégias devem ser adotadas na prática clínica para travar o atraso no diagnóstico?

DB- É preciso pensar na doença mesmo em contextos específicos, seja no campo da Cardiologia, da Neurologia ou mesmo no domínio da Ortopedia, Gastrenterologia ou outros. Tal acontece porque embora na ATTR-CM o coração seja o órgão predominantemente envolvido, a amiloidose é uma doença multisistémica, podendo afetar múltiplos órgãos e para o seu tratamento também pode exigir a colaboração de vários especialistas. Embora possa ser encontrada em doentes com insuficiência cardíaca, hipertrofia ventricular esquerda ou estenose valvular aórtica, também podem existir manifestações neurológicas (polineuropatia, com formigueiros e adormecimento das extremidades nomeadamente ao nível dos membros inferiores, dificuldades a caminhar), problemas ao nível dos tendões e nervos do punho (síndrome do túnel cárpico), do foro gastrointestinal (alterações do trânsito com períodos de obstipação alternando com diarreia), quebras de pressão arterial e desmaios, e outras, pelo que para se chegar por vezes ao diagnóstico há que construir o puzzle e para isso temos que estar alerta para a doença, lembrarmo-nos que ela existe.

HN- A quem é que os doentes se devem dirigir em caso de suspeita?

DB- Se os sintomas predominantes forem do foro cardíaco, possivelmente um cardiologista terá a obrigação de pensar no assunto e de orientar o doente. Se, por outro lado, o doente apresentar queixas do foro neurológico, deve consultar um neurologista e este fará a necessária orientação. De qualquer forma, os doentes poderão ter de ser apoiados por diferentes especialidades, dependendo dos sintomas e órgãos envolvidos além do coração. Os doentes mais idosos por exemplo, poderão vir a precisar do apoio de um médico internista com especialização em geriatria. Os pacientes mais velhos têm múltiplas patologias associadas e precisam de uma abordagem global até porque a medicação pode ter interações indesejáveis.

HN- Estes doentes são apoiados por alguma associação?

DB- Ainda não existe nenhuma associação de doentes dirigida especificamente para a Miocardiopatia Amiloide por Transtirretina, mas existe a Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca (AADIC) que tem apoiado estes doentes, visto que a ATTR-CM se manifesta por insuficiência cardíaca. Nos últimos anos a AADIC tem feito um trabalho impressionante de apoio aos doentes com esta patologia.

HN- Qual a importância de abordarmos esta patologia no Dia Mundial das Doenças Raras?

DB- A importância é enorme. Temos de conseguir colocar esta doença no lugar que merece e não pensarmos que é uma doença rara pelo que nunca a vamos encontrar. Tal não é verdade. A verdade é que dentro das raras ela é frequente. Desde que a comunidade científica ficou mais alerta para esta doença, verificamos que, todas as semanas, diagnosticamos novos doentes com esta patologia, inclusive naqueles contextos que referi. A verdade também é que só podemos encontrar aquilo que procuramos.

Entrevista de Vaishaly Camões