O problema
No nosso país, cerca de 10% da população tem doença renal crónica (DRC). Adicionalmente, está provado que a DRC é um fator de risco cardiovascular independente. Estes factos condicionam uma diminuição da esperança e da qualidade de vida. Os números referidos, próximo de 1 milhão de pessoas, estão relacionados com o aumento da longevidade da população, o mau estilo de vida, com sedentarismo e hábitos alimentares incorretos, o aumento da prevalência de doenças cardiovasculares, hipertensão, obesidade e diabetes e doenças obstrutivas ou neoplásicas, afetando direta ou indiretamente o rim.
A DRC consiste numa lesão com perda progressiva das unidades funcionais, os nefrónios, os quais não têm capacidade regenerativa glomerular, embora se consigam adaptar à perda progressiva do seu número. A grande maioria dos afetados não tem consciência da doença, devido à escassa sintomatologia da DRC nos seus estádios precoces, até que a função renal esteja reduzida a menos de 25% do normal.
Com menos de 15% da função, a sintomatologia fica progressivamente mais grave e detetam-se complicações frequentemente mortais se não forem tratadas. É nesta fase que se consideram os Tratamentos Substitutivos da Função Renal (TSFR), designadamente a Hemodiálise, a Diálise Peritoneal e a Transplantação ou, em alternativa, se deve ser mantido o Tratamento Conservador. Segundo os dados do Registo da Sociedade Portuguesa de Nefrologia (SPN), em 2020 registaram-se 2.361 novos casos em fase terminal, necessitando de TSFR para sobreviver. No final de 2020 existiam 12.458 (60,2%) dependentes de Hemodiálise, 878 (4,2%) dependentes de Diálise Peritoneal e 7.377 (35,6%) Transplantados Renais. Assim, em Dezembro de 2020, estavam com doença terminal 20.713 pessoas, o que representa um grande sofrimento individual, pelo grande impacto na qualidade de vida dos doentes, e um enorme custo social. Além disto, o tratamento mais prevalente, a diálise, é invasivo e obriga a várias horas de tratamento semanal.
Portugal é dos países com maior prevalência (2.011,31 pmp) e é duvidoso que a incidência esteja em fase de decréscimo.
Uma nova abordagem - Nefrologia Preventiva
A prevenção do aparecimento e da progressão da DRC é de extrema importância, pois permitiria evitar o sofrimento dos doentes e os enormes custos económicos que a sociedade suporta quando o rim entra em doença terminal e é necessário iniciar os TSFR. O investimento na prevenção é incomparavelmente melhor do que o tratamento em termos económicos e sociais e implica:
- A deteção e o seguimento precoce das populações afetadas, feita pela Medicina Familiar, e o encaminhamento em tempo útil e na devida fase para os Nefrologistas;
- O diagnóstico atempado e a resolução de lesões renais reversíveis causadas por diminuição da perfusão renal, nefrotóxicos, obstrução urinária e pelo tratamento de doenças infeciosas causadoras de lesão renal;
-O controle da taxa de progressão da DRC tem tido grandes avanços, como a vigilância, a existência de alvos mais apertados para a hipertensão e o uso de anti-hipertensores com ação protetora renal (ACE e ARB). Está provado que o controlo da glicémia na diabetes e o uso de antidiabéticos com ação anti-proteinurica (inibidores SGLT2) afeta a progressão. Diuréticos antagonistas seletivos do recetor mineralocorticoide (finerenona), a possibilidade de controlo da hipercaliemia com menos efeitos secundários (patirometro) podem também afetar positivamente o controlo da progressão da doença e, no futuro, contribuirão seguramente para reduzir a incidência de novos casos de doença terminal.
Tratamento
Na chamada Consulta de Esclarecimento para a escolha de TSFR, para além do Tratamento conservador, o doente deveria poder optar por várias modalidades:
1 - Diálise peritoneal
- Permite o tratamento em casa, geralmente com a ajuda de um familiar ou cuidador informal, sendo que o doente deve ser observado mensalmente em consulta pelo seu Nefrologista.
- Escolhem esta modalidade geralmente os doentes mais jovens e com maior autonomia. Esta permite poupar o doente a deslocações morosas e dispendiosas ao centro de hemodiálise. É um tratamento mais contínuo e suave e tem a grande vantagem de preservar melhor a função residual do rim.
- Como desvantagens, aponta-se o facto de exigir empenho por parte do doente e da família no tratamento, o que, aliado ao fraco investimento feito pelo Estado nos incentivos aos cuidadores informais, leva a que não seja opção para muitos doentes e famílias. Há ainda uma importante limitação temporal da aplicabilidade, porque ao fim de cerca de 5 anos em média há um esgotamento da capacidade depuradora da membrana peritoneal e o doente tem que passar a outra modalidade (hemodiálise ou transplantação). Além disto, este é um tratamento que não está ainda abrangido pelo «Preço compreensivo» no que toca a clínicas privadas.
2 - Transplantação renal
Esta é a modalidade que, quando bem-sucedida permite uma melhor sobrevida e qualidade de vida do doente, com menos deslocações e sem tratamentos invasivos. Há, no entanto, várias considerações a ter:
- Não “cura” o doente, pois este continua dependente de medicação, imunossupressores, que têm que ser cuidadosamente monitorizados para prevenir a rejeição do órgão, a toxicidade, infeções e neoplasias secundárias. Um rim transplantado dura em média cerca de 12 anos, sendo que após este período entra em disfunção e o doente tem de ser retransplantado ou voltar à diálise.
- A escassez de órgãos é a regra, com uma lista de espera crescente. Infelizmente, até a transplantação de dador vivo tem regredido, nunca atingindo os níveis de diversos países.
- A indicação para transplantação e inscrição na lista ativa de espera leva a um moroso estudo do doente no que respeita à existência e ao eventual tratamento de doenças neoplásicas e cardiovasculares graves para permitir o transplante. No caso de doentes em hemodiálise, apenas 20% reúne condições estar em lista ativa, devido à idade avançada e a comorbilidades.
- Não está ainda abrangido pelo «Preço compreensivo» no que toca a clínicas privadas e pode ser um desafio para todo o sistema caso isso seja considerado.
3 - Hemodiálise
Como atrás se disse, este é o método mais prevalente no TSFR. É invasivo, depende de um acesso vascular muitas vezes problemático e é moroso (standard - 4 horas por dia, 3 vezes por semana, o que se junta às deslocações ao centro de diálise). Esta é parcialmente paga pelo chamado «Preço compreensivo», que não inclui o primeiro acesso vascular, deslocações ao centro de diálise e ao hospital de referência quando necessárias, cateteres, internamentos por intercorrências ou complicações. Contudo, acaba por ser a única possibilidade exequível de tratamento para os que querem continuar a lutar pela vida.
Ainda assim, pode ser realizada em três modalidades:
I - Hemodiálise Hospitalar - reservada a doentes com mais comorbilidades, uma esperança de vida mais limitada e com potencial reversibilidade da insuficiência renal;
II - Hemodiálise em centros privados - a única opção para 93% dos doentes hemodialisados;
III - Hemodiálise domiciliária - um tratamento realizado em casa. O doente recebe uma máquina de diálise e todos os materiais necessários, aprendendo a técnica para fazer o seu próprio tratamento. Pode ter o apoio de um cuidador e continuar a ser seguido em consulta pelo seu Nefrologista. Não dispomos de dados referentes à Hemodiálise domiciliária, mas esta é seguramente reduzida, bem como a sua oferta quando os doentes fazem a escolha do tratamento. Ainda assim, os avanços tecnológicos permitem agora que seja adotada essa possibilidade, que poupará tempo e dinheiro em transportes e permitirá uma diálise de muito melhor suavidade e qualidade, uma vez que não há a limitação económica e a do tempo da sessão de diálise, ao contrário do que acontece nas modalidades anteriores, ambas com essa limitação.
O impacto
Sendo uma doença com um grande impacto no nosso sistema de saúde (20.713 doentes em TSFR em Dezembro 2020) e com mais de 12.000 doentes em tratamento de hemodiálise, sobretudo em clínicas privadas (a hemodiálise hospitalar representa apenas 7%), há que dar aos doentes condições para uma livre escolha, permitindo que o mercado funcione sem monopólios e cartéis, para um preço justo.
Segundo a Autoridade da Concorrência, em Portugal, o mercado da hemodiálise tem assistido a uma consolidação da posição dos incumbentes, sendo que as barreiras à entrada e à expansão são uma forte limitação à concorrência. Consequentemente, o elevado grau de concentração pode limitar os incentivos a concorrer pela qualidade e pela proximidade das clínicas e não favorecer uma maior capacidade de escolha dos doentes.
Historicamente, o Estado nunca foi capaz de dar a resposta necessária à sobrevivência dos doentes em fase terminal e no passado muitos doentes tinham de ir a Espanha fazer o tratamento para sobreviverem. A liberalização total do mercado, estendendo o «Preço compreensivo» a todas as modalidades de tratamento, pode beneficiar os doentes na sua liberdade de escolha e, ao mesmo tempo, incentivar a concorrência justa, que levará a que os preços pagos pelo Estado se reduzam.
Também neste contexto o Estado deveria estimular a livre concorrência, permitido que os doentes tenham acesso a melhores opções em termos sociais e de qualidade de vida, porventura até sem custos acrescidos.
Um artigo do médico Jorge Silva, Diretor do Serviço de Nefrologia do Hospital Garcia de Orta.
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