Fadiga inexplicável e incapacitante, dores articulares e secura da boca, dos olhos, da pele e vaginal, estão entre os sintomas “palpáveis” da doença de Sjögren, uma patologia rara, caracterizada pela desregulação do sistema imunitário, que ataca tecidos e órgãos saudáveis. Uma doença que “pode aparecer em qualquer idade e em ambos os sexos, mas afeta nove vezes mais mulheres do que homens e surge mais frequentemente após os 45 anos de idade”, salienta Vasco C. Romão, Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Em Portugal, não obstante a inexistência de dados concretos sobre o número de cidadãos afetados por esta doença estima-se que se possa situar entre 5.000 a 6.000.
Embora não exista cura para a doença de Sjögren, vários tratamentos podem ajudar a controlar os sintomas, coadjuvados por fármacos. A Reumatologia é a especialidade da Medicina que se dedica ao estudo deste tipo de doenças reumatológicas sistémicas, as que envolvem vários órgãos e sistemas. “Todas as pessoas com a suspeita de doença de Sjögren devem ser encaminhados pelo Médico de Família para uma consulta hospitalar de Reumatologia”, alerta em entrevista Vasco C. Romão, coordenador da Consulta de Síndrome de Sjögren na ULS Santa Maria e também investigador.
Perceber as doenças também implica conhecermos um pouco da sua história. Henrik Sjögren, um oftalmologista sueco, identificou pacientes com esta doença na década de 1930. Em que contexto se deu esta descoberta?
Henrik Sjögren era um oftalmologista sueco (1899-1996), que foi enviado em 1929 pelo Colégio Sueco de Medicina para Jönköping, uma cidade a 300 km de Estocolmo, a fim de examinar um grupo de imigrantes de ascendência sueca provenientes da Ucrânia. Esta população tinha uma prevalência elevada de tracoma, uma infeção ocular [conjuntivite] crónica provocada pela “famosa” Chlamydia trachomatis, que originava secura ocular por destruição das células produtoras de muco. Um ano depois, em 1930, como interno de Oftalmologia em Estocolmo, observou uma senhora com diminuição da produção de lágrima, saliva e suor, associados a uma história de “reumatismo crónico”. A este caso foram acrescentados outros dois, semelhantes, tendo sido os primeiros três doentes descritos com secura ocular no contexto da doença atualmente designada por Doença - ou síndrome, designação a ser abandonada - de Sjögren. Em 1933, publicou a sua tese de doutoramento que incluiu dezanove doentes com esta patologia, dez dos quais com sinais de inflamação e deformação das articulações.
Como se manifesta a Doença de Sjögren?
A doença - ou síndrome, designação a ser abandonada - de Sjögren é uma doença reumática em que o sistema imunitário desregulado ataca tecidos e órgãos saudáveis, em particular as glândulas salivares e lacrimais. O processo inflamatório crónico destrói os tecidos e leva a sintomas como a boca e olhos secos. A falta de saliva e lágrima podem originar problemas dentários (cáries) com dificuldade em mastigar ou engolir, ou sensação de areia nos olhos e feridas na parte da frente do olho (córnea). Existe também uma inflamação no resto do corpo que origina outros sintomas frequentes como o cansaço intenso e inexplicável e as dores nos músculos e articulações. Pode ainda haver episódios de “papeira” na idade adulta e em até 30 a 40% dos casos afeta outros órgãos, causando sintomas como febre, suores à noite, perda de peso, inchaço das articulações ou gânglios linfáticos, manchas vermelhas ou roxas na pele, anemia, diminuição plaquetas e glóbulos brancos. Em casos mais raros pode ainda atingir os pulmões, rins, tiroide, fígado, pâncreas, nervos ou cérebro (muito raro).
Há mais do que um tipo de Doença de Sjögren?
Na verdade, há apenas uma Doença de Sjögren. O termo Doença de Sjögren secundária, historicamente utilizado e a ser progressivamente abandonado, designa casos em que existe uma outra doença reumatológica autoimune (artrite reumatoide, lúpus, esclerose sistémica, entre outras) e, em simultâneo, queixas de olho e boca seca, ou outros sintomas sugestivos. Hoje em dia sabemos que a Doença de Sjögren pode existir em simultâneo com outras doenças, não sendo “secundária” às mesmas, mas sim uma doença individualizada e específica.
É conhecida a causa para esta doença autoimune? Tem peso a predisposição genética ou questões ambientais?
Tal como a maioria das doenças reumatológicas imunomediadas não existe - ou não é conhecida ainda - uma causa única. Habitualmente existe uma predisposição genética geral para este tipo de doenças, como por exemplo, uma tia, avó ou primo com lúpus ou artrite reumatoide que forma um “terreno fértil” no qual alguns estímulos ambientais como o tabaco, infeções, stress, alimentação, entre outros, podem levar ao desenvolvimento da doença. Algumas infeções virais, como por exemplo a mononucleose, foram associadas ao aumento do risco de vir a ter doença de Sjögren, mas não foi até ao momento possível definir uma relação causa-efeito clara.
Há grupos de população mais afetados?
A doença de Sjögren pode aparecer em qualquer idade e em ambos os sexos, mas afeta nove vezes mais mulheres do que homens e surge mais frequentemente após os 45 anos de idade. Assim, as mulheres na idade pós-menopausa são o grupo mais afetado. Geralmente, as pessoas mais jovens (20-30 anos) não têm tantos sintomas de secura dos olhos e boca, apesar de terem ou poderem ter outros sintomas típicos, e o diagnóstico é feito apenas mais tardiamente.
Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico é feito com base nos sintomas, observação clínica e resultados de análises e outros exames complementares. A avaliação pelo Reumatologista, Oftalmologista e Estomatologista/Dentista é essencial e deve ser realizada sempre que possível numa fase inicial. O exame clínico avalia a existência e gravidade da secura da boca e olhos, de inchaços das glândulas salivares, gânglios linfáticos ou articulações, manchas na pele e outras alterações.
A função das glândulas salivares pode ser medida pela quantidade de saliva produzida num determinado período ou pela cintigrafia das glândulas salivares. A falta de lágrima e a pesquisa de úlceras (feridas) na córnea podem ser feitas em consulta de Oftalmologia. As análises mais importantes incluem os anticorpos antinucleares (ANA), anti-SSA/anti-SSB e o fator reumatoide. A biopsia das glândulas salivares labiais, um procedimento simples em que são retiradas algumas das glândulas salivares pequenas que existentes na mucosa da boca, identifica uma inflamação específica. O diagnostico é sempre clínico e feito com base na opinião do Reumatologista, tendo em conta a sua observação e o resultado dos exames. Nenhum exame faz o diagnostico isoladamente.
Há cura para esta doença ou apenas tratamento para o alívio dos sintomas?
Embora não exista cura para a doença de Sjögren, vários tratamentos podem ajudar a controlar os sintomas. Adicionalmente, alguns medicamentos imunomoduladores ou imunossupressores podem ajudar a modificar a evolução da doença. Por fim, existem em curso vários ensaios clínicos em fases avançadas que podem vir a originar no futuro medicamentos aprovados especificamente para esta doença.
Como é feito o tratamento?
Dado o envolvimento da boca e olhos, é fundamental ter bons cuidados de saúde oral e ocular, com avaliação frequente pelo Estomatologista/Dentista e Oftalmologista. O uso de lágrima e saliva artificial são importantes para aliviar os sintomas de secura. Em casos graves podem ser utilizados géis orais ou oculares, a ciclosporina tópica ocular, o que controla a inflamação das glândulas lacrimais, ou o encerramento do canal lacrimal. A pilocarpina aumenta a produção de saliva e está indicada para o tratamento de sintomas mais graves. Adicionalmente, as dores articulares e musculares podem ser tratadas com anti-inflamatórios ou, quando existe artrite (inflamação articular), corticoides em baixa dose ou medicamentos imunomoduladores como a hidroxicloroquina, o metotrexato ou a leflunomida. A fadiga pode melhorar com alguns destes e com o exercício físico. O tratamento de outras manifestações mais graves depende dos órgãos afetados e requer habitualmente doses mais altas de corticoides ou medicamentos imunossupressores.
É possível dar-nos uma estimativa do número de portugueses com esta doença?
Não existem dados concretos em Portugal. Pensava-se que fosse uma das doenças reumáticas inflamatórias mais comuns, mas estudos europeus recentes estimam que afete menos de 0,1% da população geral (0,03 a 0,05%). Isto significaria que até cerca de 5.000 a 6.000 portugueses podem ter a doença de Sjögren. O estudo PORTRESS, com base no Registo Nacional dos Doentes Reumáticos [Reuma.pt], é o primeiro a avaliar as características de mais de 1300 pessoas com esta doença em Portugal.
Em Portugal, os portadores desta doença encontram resposta por parte dos sistemas de saúde, nomeadamente no que respeita a consulta e acompanhamento posterior?
Todas as pessoas com a suspeita de doença de Sjögren devem ser encaminhados pelo Médico de Família para uma consulta hospitalar de Reumatologia. Apesar de ainda existirem algumas lacunas nalgumas zonas e hospitais do país, onde lamentavelmente não existe a especialidade de Reumatologia, o SNS em geral, e os reumatologistas em particular, têm capacidade para dar resposta ao diagnóstico, seguimento e tratamento das pessoas com esta doença.
A Reumatologia é a especialidade da Medicina que se dedica ao estudo deste tipo de doenças reumatológicas sistémicas - ou seja, que envolvem vários órgãos e sistemas -, tendo um currículo extenso e exigente de formação (internato) no diagnóstico, tratamento e monitorização de todas as doenças reumáticas, incluindo a Doença de Sjögren. A colaboração com outras especialidades, sobretudo neste caso Oftalmologia e Estomatologia, é fundamental para o adequado cuidado destes doentes. Adicionalmente, consoante o tipo de envolvimento de outros órgãos, pode ser necessária a avaliação e orientação por outras especialidades médicas, nomeadamente Pneumologia, Neurologia, Gastrenterologia, Hematologia, Ginecologia-Obstetrícia, entre outras. Assim, é de grande importância o acompanhamento destes doentes em centros com experiência e acesso a cuidados especializados.
No Hospital de Santa Maria (ULS Santa Maria) existe desde 2016 a Consulta Multidisciplinar de Síndrome de Sjögren, onde doentes com a suspeita desta patologia são avaliados no mesmo dia por especialistas da Reumatologia, Estomatologia e Oftalmologia. Após confirmado ou excluído o diagnóstico, é programado o seguimento e tratamento dos vários sintomas e da doença. Foram realizadas até à data mais de 900 consultas multidisciplinares, num modelo replicado recentemente com sucesso no Hospital Egas Moniz, ULS Lisboa Ocidental.
No nosso país está a ser feita investigação em torno desta doença rara?
Sim. Na ULS Santa Maria existe uma Consulta de Doença de Sjögren, onde os doentes desta patologia são acompanhados e, sempre que aplicável, propostos para participar em estudos. Temos também uma Coleção de Doença de Sjögren de amostras biológicas (sangue, saliva, glândulas salivares) no Biobanco da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. No Serviço de Reumatologia da ULS Santa Maria existem vários estudos em curso abordando diversas áreas da doença, desde mecanismos e causas da mesma, até tratamentos e ensaios clínicos com medicamentos inovadores. Estes estudos têm sido publicados em várias revistas científicas e apresentados em congressos nacionais e internacionais, incluindo o Simpósio Internacional de Doença de Sjögren, a decorrer em abril nos Países Baixos.
Adicionalmente, outros serviços de Reumatologia do SNS e do Setor Social e Privado, como por exemplo, o Instituto Português de Reumatologia, têm também estudos em curso, com números grandes de doentes.
Finalmente, é possível manter uma boa qualidade de vida com a Doença de Sjögren?
Apesar de ter sido considerada no passado como uma doença que não afetava de forma significativa a vida dos doentes atingidos, sabe-se hoje que a Doença de Sjögren causa uma grande redução da qualidade de vida. O impacto desta doença traduz-se a diversos níveis, desde logo através da fadiga inexplicável e incapacitante, e também das dores articulares e secura da boca, olhos, pele, vaginal. Várias dimensões da vida social, pessoal, profissional e relacional são afetadas e estão gravemente comprometidas. Ainda assim, tem havido progressos nos conhecimentos acerca desta patologia e a abordagem a diferentes níveis, farmacológica e não-farmacológica, é atualmente chave para melhorar a qualidade de vida das pessoas afetadas. O futuro próximo promete trazer-nos boas notícias, com mais alternativas para o tratamento adequado dos doentes acometidos por esta grave e complexa condição.
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