HealthNews (HN) – Como se apresenta a Alzheimer Portugal?
Catarina Alvarez (CA) – A Alzheimer Portugal é uma associação que foi constituída já há 36 anos. Tem âmbito geográfico nacional e tem uma missão muito específica que é a de contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas que vivem com demência e dos seus cuidadores e familiares. Somos, por um lado, uma associação de doentes, que representa e dá voz às pessoas que vivem com demência e aos seus cuidadores e familiares; que participa na definição e implementação de políticas públicas; que colabora com a investigação no sentido de encontrar soluções farmacológicas e não farmacológicas no que respeita às demências. Mas somos também uma IPSS e, portanto, prestamos apoio direto e específico, qualificado, a quem vive com demência e às suas famílias, através das nossas respostas sociais, mas também através de vários projetos e iniciativas que desenvolvemos na comunidade. Finalmente, somos ainda uma entidade formadora certificada e, portanto, temos também a responsabilidade de capacitar os cuidadores informais e os profissionais na área das demências. Estamos espalhados pelo país. Temos a sede em Lisboa, delegações, núcleos e gabinetes de apoio no sentido de ampliar o mais possível a nossa capacidade de intervenção, e uma linha nacional de apoio para quem precisa de nos contactar. Fazemos parte da Plataforma Saúde em Diálogo, assim como do movimento europeu na área das demências, sendo um membro muito ativo da Alzheimer Europe.
HN – Quais são as principais necessidades ou os principais desafios na área das demências em Portugal?
CA – Diria que o principal desafio atual e a principal necessidade, considerando uma visão mais política do tema, é implementarmos de forma efetiva a estratégia nacional da saúde para as demências – que foi publicada em 2018, mas que tarda em ser implementada de modo efetivo. Outro aspeto também muitíssimo relevante é o facto de termos de ampliar a nossa visão sobre as políticas públicas para as demências, não enquadrando apenas os aspetos relacionados com a saúde, mas também os aspetos relacionados com as necessidades sociais de apoio e de respostas de quem vive com demência e das suas famílias. Isto porque, à época, não conseguimos desenhar uma estratégia que englobasse não só o setor da saúde, mas também o setor social. Este é um aspeto fundamental, que deve acontecer para uma efetiva resposta às pessoas doentes e aos seus cuidadores informais. A este propósito, importa referir que elaborámos um manifesto intitulado “Pela Memória Futura” que explica de uma maneira muito objetiva aquilo que entendemos ser prioritário desenvolver em Portugal para melhorar a vida de quem vive com demência e dos seus cuidadores.
HN – Humanização em saúde é o tema da conferência anual da Plataforma Saúde em Diálogo. Aplicado ao Alzheimer e às demências, o que é que isso implica?
CA – Deixe-me recuperar a questão do nosso manifesto e dos seus quatro princípios-chave. O primeiro princípio-chave é priorizar, ou seja, nós ainda não priorizamos, em Portugal, as demências, e é fundamental, até porque há cada vez mais pessoas a viver com demência no nosso país. As estimativas são de cerca de 200 mil pessoas atualmente, mas perspetiva-se um aumento até perto das 350 mil em 2025, portanto é fundamental tornar esta problemática uma prioridade social e de saúde pública. O segundo princípio-chave no nosso manifesto é concretizar, portanto, tendo definido políticas públicas, importa implementá-las. O terceiro princípio-chave é consciencializar. Continua a haver demasiado desconhecimento e estigma em relação às demências, portanto importa informar e sensibilizar a comunidade em geral, e também os profissionais e os políticos. E, finalmente, o quarto e último princípio-chave, que é aproximar, que tem a ver com a necessidade de integrar cuidados. A própria estratégia define um percurso de cuidados e, para que esse percurso de cuidados inclua todas as pessoas que vivem com demência em Portugal, tem que haver uma eliminação das assimetrias que existem do ponto de vista geográfico, do ponto de vista do acesso aos cuidados por razões económico-financeiras, e temos que ter a tal ligação/aproximação intersectorial e envolver estes dois setores (saúde e social) que, no fundo, têm de contribuir ambos para uma melhoria efetiva de quem vive com demência e das suas famílias.
No que respeita à pergunta que agora me fez e que tem a ver com a conferência deste ano da Plataforma Saúde em Diálogo, que vai abordar o tema da humanização em saúde, lembrar primeiro que a humanização é um valor, e é um valor que se desdobra em variadíssimos princípios que se vão aplicar também, naturalmente, à temática específica das demências. Não vou elencar todos porque seria demasiado exaustivo, mas menciono alguns, designadamente: o respeito pela dignidade intrínseca da pessoa humana, a valorização da individualidade e da personalidade do utente e o respeito pela sua autonomia e pela participação na tomada de decisões em saúde. Não há um tratamento curativo para a generalidade das demências, mas pode-se viver melhor com demência. Agora, para viver melhor com demência, os cuidados, de facto, têm que ser humanizados do princípio ao fim do curso da doença, incluindo os cuidados de fim de vida. Para concretizar melhor aquilo que eu pretendo dizer, podemos considerar três fases importantes deste percurso de cuidados. Uma primeira fase é a do diagnóstico, porque as pessoas precisam de estar corretamente diagnosticadas para terem acesso à informação, ao suporte e às intervenções farmacológicas e não farmacológicas que existem para melhorar a autonomia, o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas que vivem com demência. A humanização de cuidados é aqui espelhada por uma comunicação compassiva deste diagnóstico. Ainda demasiadas vezes o diagnóstico não é comunicado à pessoa ou é comunicado de uma forma desalinhada com o que se entende por uma comunicação humanizada. O diagnóstico deve ser encarado como um ato moral e ético de respeito pelos pacientes, uma oportunidade de resiliência e um passo necessário em direção ao planeamento do futuro. A comunicação compassiva do diagnóstico é uma tradução prática do valor da humanização em saúde.
Depois, se avançarmos no percurso de cuidados, passamos para uma segunda etapa que é a do planeamento. Nesta fase, a humanização em saúde é também muito relevante, desde logo no empoderamento e no acompanhamento da pessoa, no sentido de empregar todas as estratégias para que a pessoa consiga efetivamente perceber a informação que lhe é transmitida, participar no desenho do plano e nas várias tomadas de decisão, o que também implica o respeito pelos seus valores e pelas suas escolhas, apesar da demência, e pelo seu projeto de vida. No caso da demência, estes aspetos são ainda mais desafiantes porque vamos ter de lidar com a alteração progressiva das capacidades cognitivas e funcionais, pelo que os profissionais têm de potenciar as suas capacidades de comunicação e relacionamento para conseguirem uma participação efetiva da pessoa no que respeita ao planeamento dos seus cuidados.
Finalmente, um terceiro passo muito importante do percurso de cuidados, em que a humanização é imprescindível, tem a ver com a própria intervenção, sendo que esta ainda assenta num paradigma de um modelo de cuidados tradicional, em que o foco é na doença e na tarefa e não na pessoa e na sua perspetiva. Há ainda demasiadas vezes uma abordagem one size fits all quando, na realidade, a intervenção deveria ter em atenção as necessidades e as preferências individuais para ir ao encontro, nomeadamente, daquele princípio da humanização em saúde que é a centralidade da pessoa, que deve ser determinante na definição e na organização de toda a intervenção, não só no Serviço Nacional de Saúde, mas em todo o sistema de saúde português e nas respostas sociais. Na minha perspetiva, uma mensagem que é muito importante transmitir é que a humanização é um valor fundamental, mas está sempre em perigo de ser ignorado e desrespeitado, razão pela qual precisamos de defendê-lo. Portanto, a criação da Comissão Nacional para a Humanização dos Cuidados de Saúde no SNS é muito bem-vinda, na nossa perspetiva, porque é fundamental defender este valor, e esta defesa faz-se respeitando-o em todo o percurso de cuidados, desde a fase do diagnóstico até aos cuidados de fim de vida.
HN – Ainda em Portugal, como é estão a ser concretizados os direitos destes dois grupos: cuidadores informais e doentes sem apoio familiar?
CA – Ainda bem que ao falar sobre humanização em saúde falamos em direitos, porque a visão da própria associação é, de facto, a criação de uma sociedade que, efetivamente, defenda e proteja os direitos das pessoas que vivem com demência e dos seus cuidadores, e que inclua de modo efetivo as pessoas que vivem com demência e as suas famílias na comunidade.
No que respeita aos cuidadores informais, podemos dizer que houve alguns passos dados no sentido de reconhecer a importância insubstituível do seu papel. A criação do estatuto foi um passo importante, em 2019, que aconteceu na sequência de reivindicações de cuidadores informais e de pressão, no melhor dos sentidos, junto não só do Governo e da Assembleia da República, mas também do Presidente da República. Com o estatuto, passámos a ter em Portugal uma política pública específica para os cuidadores informais, o reconhecimento de um conjunto de direitos e, também, naturalmente, de um conjunto de deveres e de medidas de apoio. Se me perguntar se a publicação do estatuto resolveu todos os problemas dos cuidadores informais, a resposta é não. Estão ainda muito poucos cuidadores informais efetivamente reconhecidos ao abrigo do estatuto. O processo de reconhecimento ainda não é conhecido e adotado pela generalidade dos cuidadores informais. Permanece a crítica de que o processo é relativamente burocrático, ainda que ao longo destes anos tenha havido alguma flexibilização e alterações legislativas no sentido de desburocratizar o processo. As medidas de apoio que constam do estatuto ainda não são todas aquelas de que precisamos para que os cuidadores informais sejam melhor apoiados. O próprio subsídio de apoio financeiro que é concedido tem critérios de atribuição muitíssimo apertados e, portanto, apenas pessoas que vivem numa condição de enorme vulnerabilidade socioeconómica é que têm direito a este apoio. Naturalmente que esse apoio tem de ser alargado a mais cuidadores informais.
No que respeita às pessoas que vivem com demência, há um caminho maior a percorrer, tendo em conta o desconhecimento e o estigma que persistem na sociedade portuguesa. Ainda assim, já foram dados alguns passos no sentido do reconhecimento dos direitos da pessoa com demência, designadamente através da alteração do regime jurídico das interdições e inabilitações, para o chamado Regime do Maior Acompanhado. Essas alterações de natureza jurídica e judicial foram muito importantes porque vêm empoderar quem vive com capacidade jurídica diminuída, transformando o regime no sentido de apoiar e acompanhar em vez de substituir, sempre que possível. Este regime está ancorado na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que também se aplica às pessoas que vivem com demência, e prioriza a sua autodeterminação e autonomia. Portanto, eu diria que ainda precisamos de continuar a caminhar no sentido de reconhecer os direitos, designadamente das pessoas que não têm retaguarda, mas não só, porque as pessoas que têm cuidadores informais também precisam de ver os seus direitos assegurados, e isso até se pode tornar difícil porque os familiares priorizam muito a segurança da pessoa que vive com demência e a própria pessoa valoriza, como todos nós valorizamos, a sua autonomia e independência. E, portanto, às vezes as pessoas têm dificuldade em conseguir exercer estes direitos, de autonomia, de liberdade e de autodeterminação, exatamente porque as pessoas que lhes estão mais próximas as substituem precocemente nesse exercício. Portanto, aqui o caminho é mais longo, mas está-se a fazer, e a associação tem tido um papel importante na defesa do efetivo exercício dos direitos das pessoas que vivem com demência.
Entrevista de Rita Antunes
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