“O que mete comigo a mão no prato, esse me trairá.”
Mateus 26.13
“Não dar dinheiro aos privados!” é uma das mais flamejantes bandeiras da esquerda, no que concerne a política dos cuidados de saúde. Esta linha programática foi assumida pelo atual governo e, como é sabido, levou à não renovação de várias parcerias público-privadas, decisão com resultados demonstradamente negativos. Fiel ao slogan, a tutela também rejeitou o modelo das USF tipo C, apesar da gritante falta de médicos de família. Podemos concluir que a pureza ideológica se sobrepõe ao pragmatismo, necessário à boa condução política.
Posto isto, passemos à análise duma contradição confrangedora. Refiro-me à promoção da medicina privada descarada, em detrimento do SNS, incentivada pela ADSE. Os factos são estes: A ADSE deixou (há meses/anos?) de aceitar as requisições de ECD emitidas pelo SNS. Quer dizer, a ADSE deixou de comparticipar os ECD de seus beneficiários que optem por ser seguidos nos serviços públicos. No entanto, as requisições emitidas por prestadores privados são comparticipadas. Indubitavelmente, a ADSE está a empurrar os seus beneficiários para os consultórios privados. Intoleravelmente antiético, já que implica aumento de custos por parte do utente. Mas em matéria de conduta reprovável não ficamos por aqui.
É sabido que a ADSE é “um instituto público de regime especial e de gestão participada, integrado na administração indireta do Estado, com dupla tutela do Ministério da Presidência e do Ministério das Finanças, (…)”, portanto, não sendo uma empresa privada dedicada a gerir seguros de saúde, seria de esperar que tivesse uma política em sintonia com a filosofia do SNS público e não conflituasse com os seus mais básicos objetivos. Mas não! A insólita prática da ADSE (organismo paraestatal) de privilegiar os serviços privados vai ainda mais longe ao entrar em frontal contradição com a assumida doutrina estatizante, e adversa à atividade privada na prestação de cuidados de saúde, do atual governo. A tutela que recusa as USF C, em nome da fidelidade ao estandarte “não dar dinheiro aos privados”, é a mesma que tolera este ataque certeiro e indefensável aos cuidados de saúde estatais. A incongruência é total e merecia ser esclarecida.
Também não deixa de ser intrigante que, para além do governo, os partidos, nomeadamente os compagnons de route ideológicos do atual executivo, tão solícitos em arengar contra o desvio de recursos para os “privados”, não se tenham apercebido desta injustificável aposta nesses prestadores protagonizada pela ADSE. O mesmo se pode dizer dos sindicatos, da OM, das organizações dos profissionais dos CSP, dos próprios partidos da oposição (pelo menos de alguns) e dos médicos que militam em todos esses partidos.
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