Em fevereiro de 1998, num processo hoje menos conhecido, Mandela e o segundo mês do ano voltam a ficar relacionados para sempre. Há precisamente 25 anos, o presidente sul-africano enfrentava as 35 maiores empresas farmacêuticas mundiais, e tal como o combate contra o regime iníquo do apartheid, foi Mandela quem venceu.
Desde há anos que a indústria farmacêutica fazia lobby para impedir medicação genérica. O objetivo era que mesmo após o fim da patente, a produção do fármaco continuasse a ser exclusiva da companhia, não sendo possível alternativas mais baratas. Em 1994, liderados pela Pfizer, conseguiram convencer a administração norte-americana a incluir no Acordo sobre Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, TRIPS em inglês, cláusulas que iam ao encontro das pretensões da indústria.
Este acordo foi devastador, não só para os países do sul global, mas também para países como o nosso, onde os recursos para a saúde são escassos. Em 1998, o custo da medicação para o VIH variava entre os 1.100 dólares, e os 10 mil dólares por pessoa/ano. Como comparação, hoje em dia nos EUA, o custo desta medicação varia entre 21.600 e os 54 mil dólares por pessoa/ano.
Esta foi a altura onde o VIH ceifava mais vítimas no país. Cerca mil pessoas faleciam por dia, com cinco milhões de infetados, o que na altura representava cerca de 1 em cada 8 sul-africanos. Seria totalmente irrealista controlar a pandemia causada pelo VIH, sem acesso a alternativas genéricas de menor custo.
Desta forma, o governo chefiado por Mandela emitiu licenças compulsórias para permitir a produção de medicação genérica contra o VIH. Este desenvolvimento permitiu ao país lidar com a enorme crise de saúde pública. Inspirado por esta ação, o Brasil ameaçava fazer o mesmo, mas recuou quando a indústria se comprometeu a diminuir significativamente o preço da medicação.
Com o apoio dos EUA e da Comissão Europeia, 39 grandes indústrias farmacêuticas colocaram o estado sul-africano em tribunal. Pretendiam o fim da licença compulsória e ter direito a uma indemnização. Mandela dizia que “a saúde não pode ser uma questão de rendimento. É um direito humano fundamental.” Fiel às suas palavras, envolveu-se diretamente na luta judicial, envergando t-shirts onde era possível ler “HIV Positive”, ou fazendo várias intervenções em defesa dos cidadãos sul-africanos.
O caso acabou por ser um tiro no pé da indústria. Mandela e a sua equipa conseguiram expor as falhas do sistema, nomeadamente a forma como o Sul Global era excluído do acesso à medicação, ou como a saúde e a vida de pessoas sem recursos não poderiam ser secundarizadas perante os lucros dos acionistas. O caso ficou conhecido como “39 empresas farmacêuticas contra Mandela”, teve ampla publicidade no ocidente e envolvimento de vários grupos de ativistas a favor dos sul-africanos. Em algumas cidades europeias e dos EUA, foram organizadas manifestações a favor de Mandela. Em 2001 a indústria desistiu, Mandela e os doentes de VIH ganharam uma importante vitória, que inspirou países como Brasil, Equador ou Tailândia, a alterarem as suas leis, para permitir o acesso mais célere a medicamentos genéricos.
Cerca de 25 anos após este episódio, que marcou a relação entre a propriedade industrial e o direito à saúde, voltámos a assistir a um debate semelhante. As vacinas contra a Covid-19, apesar de alavancadas com investimento público, não viram as suas patentes suspensas, mesmo durante o pico da pandemia. A OMS pediu esta suspensão de forma a permitir a produção descentralizada das vacinas. Isto teria permitido aumentar a produção deste bem e chegar mais rapidamente a quem precisa. Os recursos para combater um problema global deveriam ser igualmente globais e universais. Disponíveis e acessíveis a quem precisa e beneficia. Uma pandemia, seja o VIH ou o Sars-Cov-2, requer uma abordagem global. O nacionalismo de vacinas, e a priorização dos lucros em vez da saúde, é prejudicial para todos nós.
“Parece sempre ser impossível até estar feito”, disse Mandela. Parece-nos hoje impossível até o fazermos. Inspirados na última vitória de Mandela, vamos construir uma nova arquitetura de saúde global, que não deixe ninguém para trás.
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