Muito pouco conhecida e explorada, a cultura gastronómica do vinagre é quase somente limitada ao conhecimento do vinagre de vinho corrente. Quando muito, do de Jerez e, claro, do balsâmico de Modena. Por causa da etimologia da palavra “vinagre”, que nos induz no erro de pensar que todo o vinagre provém do vinho, entendi que algo ficaria mal explicado se não me referisse à importância da expressão italiana que traduz a palavra vinagre (“aceto”) que nada tem a ver com a palavra “azeite”, mas cujo nome resulta de dois processos de fermentação: a alcoólica (pela acção de açúcares) e a acética (pela acção de bactérias sobre o álcool, em combinação com o oxigénio).
Assim fica também explicada a razão de uma selecção que vai para além dos vinagres de vinho, transpondo a sua noção em sentido estrito: vinho acre. Outra curiosidade, connosco partilhada pelo enólogo Luís Sottomayor, é que também são as melhores castas (tal como nos vinhos) a dar origem aos melhores vinagres, sobretudo aqueles de uma só variedade. E estas são as suas sugestões: Touriga Nacional, que originaria um vinagre complexo, dominado por aromas florais e balsâmicos; Tinta Roriz, cujo vinagre teria aromas de fruto vermelhos vivos e um ligeiro rebuçado; Sauvignon Blanc, com aromas a frutos tropicais e ligeiramente vegetal; e En cruzado, que, à partida, teria uma boa acidez, evidenciando aromas minerais e a frutos brancos, tipo pêra. Tendo em conta estes vinagres, Sottomayor sugere para os tintos pratos mais suculentos e pesados, enquanto os brancos seriam para outros mais refinados. Já para o vinagre resultante de um “blend”, por exemplo, é aconselhável um prato de caça nobre como a galinhola. E porque não uma demorada “vinagrada” de alhos à portuguesa?
Parte integrante dos “lotes” do enxoval das noivas italianas medievais, elixir capaz de alterar e enriquecer a gastronomia mais comum, o vinagre balsâmico de Modena é originalmente produzido com uvas da região Reggia Emilia (onde se integra Modena) e é “balsâmico” pelo processo químico de produção inerente (bioxidação do álcool etílico em acético). Este ex-libris dos vinagres não lhe é apenas atribuído pela exclusividade da matéria-prima: uvas trebbiani, que normalmente permite produções prodigiosas e vinhos muito apelativos, com laivos de pêra e melão; e uvas lambrusco grasparossa, bastante açucaradas, que possibilitam um resultado com uma acidez equilibrada e uma paleta de frutas nos aromas que distinguem os balsâmicos. O milenar fenómeno de sucesso do vinagre balsâmico de Modena deve-se essencialmente à sua fermentação, que é feita sobre mosto cozido, e não sobre vinho, o que faz toda a diferença.
Naturalmente o processo de envelhecimento – nunca menor do que 12 anos e sempre em madeira, como o carvalho, o castanho, a cerejeira – contribui para o refinar do seu “bouquet”, o aperfeiçoar dos seus taninos e aromas e para o transformar num capricho gastronómico.
A denominação de origem protegida permite a colocação de três selos no vinagre balsâmico: o vermelho (envelhecimento com um mínimo de 12 anos) que combina com marisco e carnes pouco marinadas ou cru sobre carpaccios e saladas; o prateado ( de 12 a 25 anos) que se utiliza cru, e o dourado (com mais de 25 anos), complexo, perfumadíssimo e untuoso. Deve ser venerado e saboreado num fio sobre queijos de pasta dura, muito curados e picantes, em frutas frescas, em sobremesas cremosas e doces, onde lhe conferirá uma harmonia de acidez, riqueza aromática e um contraste de doçura, como por exemplo num pudim de ovos ou num gelado de cacau amargo.
Revista Wine/Texto: Isabel Sottomayor: Fotos: IMATEXTO/IMTX
Comentários