Coube à Organização Mundial da Saúde (OMS) lançar o alerta, ao incluir a obesidade na lista das epidemias mundiais. Em si, o facto não é uma novidade; há anos que o sabemos, o que não inibe a urgência de o recordar face à eloquência dos números à escala global. Para mais, considerando que a obesidade e o excesso de peso, são fatores de diminuição drástica da esperança e da qualidade de vida. Mais, favorece doenças como a diabetes mellitus tipo II, a hipertensão arterial, o risco cardiovascular. À laia de exemplo, estima-se que a hipertensão seja 2,5 vezes mais frequente nos indivíduos obesos, face a pessoas de peso normal.
Resumidamente, voltando aos dados da OMS, mais de uma em cada dez pessoas no nosso planeta é obesa. Um número que cresce se considerarmos o excesso de peso. Crê-se que mais de dois mil milhões de seres humanos sofram desta condição. Anualmente, 2,8 milhões de pessoas morrem de doenças associadas ao excesso de peso ou obesidade.
É a própria OMS que nos dá a definição de obesidade, “uma acumulação anormal ou excessiva de gordura corporal que pode atingir graus capazes de afetar a saúde”, assim como é a mesma organização sediada em Genebra, Suíça, que estima, num futuro, a pouco mais de cinco anos, números aos quais não podemos subtrair preocupação: A estimativa é de que, em 2025, perto de 2,3 mil milhões de indivíduos atinjam excesso de peso. Na mesma data, mais de 700 milhões de seres humanos terão obesidade.
O nosso país, de acordo com o “Retrato da Saúde em Portugal”, de 2018, publicado pelo Ministério da Saúde, corre alinhado com este mundo de pesos inflacionados. Os números não são brandos. De acordo com o documento, perto de 60% da população portuguesa (5,9 milhões de indivíduos) sofre de excesso de peso (aqui considerada a pré-obesidade somada à obesidade). A própria Direção-Geral da Saúde não hesita em sublinhar ser este “provavelmente, o principal problema de saúde pública entre nós”. Ainda em linha com o “Retrato da Saúde em Portugal”, oito em cada dez indivíduos idosos apresentam excesso de peso.
No que toca, em particular, à obesidade infantil, sublinhe-se que não vale traçar a régua e esquadro as linhas entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. O problema começa, hoje, a ser partilhado. Diz-nos Joana Sousa, nutricionista e professora na Faculdade de Medicina de Lisboa, “apesar de ser considerado um problema de saúde pública em países desenvolvidos, é já considerado também em países em desenvolvimento, particularmente em áreas urbanas. Em África, o número de crianças com excesso de peso abaixo dos cinco anos aumentou quase 50% desde 2000. Quase metade das crianças com menos de cinco anos com excesso de peso, em 2016, viviam na Ásia”.
Substanciando em números, diz-nos a docente: “Mais de 340 milhões de crianças e adolescentes com idade entre os cinco e 19 anos apresentavam excesso de peso em 2016. A prevalência entre crianças e adolescentes de cinco a 19 anos aumentou dramaticamente de apenas 4% em 1975 para pouco mais de 18% em 2016”.
Estreitando a análise e olhando para dentro de fronteiras, “em Portugal, nos últimos dados do ´Childhood Obesity Surveillance Initiative` (COSI) da OMS/Europa, de 2016, indicam-nos que, aos seis anos, 28,7% das crianças tinham excesso de peso e esta prevalência aumentava aos sete anos e aos oito anos para 30,7% e 32,8%, respetivamente”, sublinha Joana Sousa.
Números preocupantes, embora, de acordo com a nutricionista, seja “possível mostrar uma tendência invertida na prevalência de excesso de peso infantil, já que de 2008 para 2016, verificou-se uma redução de 7,2%, isto é de 37,9% para 30,7%, respetivamente. Relativamente à prevalência de obesidade, verificou-se igualmente uma diminuição passando de 15,3% em 2008 para 11,7% em 2016”.
Obesidade, uma questão de saúde pública e individual
Para lá da crueza dos números, há consequências medidas à escala individual, na saúde imediata e na qualidade de vida futura. “A probabilidade de crianças obesas permanecerem adultos obesos é elevada”, alerta Joana Sousa, acrescentando, “esta relação é também evidente quando falamos na probabilidade de virem a desenvolver uma diversidade de problemas de saúde quando adultos, nomeadamente doença cardiovascular, resistência à insulina [frequentemente um sinal precoce de diabetes], distúrbios músculo-esqueléticos [especialmente osteoartrite - uma doença degenerativa altamente incapacitante das articulações], alguns tipos de cancro [endometrial, mama e cólon] e incapacidade”.
A probabilidade de crianças obesas permanecerem adultos obesos é elevada
Um elenco muito pouco simpático, mas que, de acordo com a professora da Faculdade de Medicina de Lisboa, pode ser prevenido. Como? “Com políticas integradas, ambientes não obesogénicos [que não contribuam para o ganho de peso]”. Neste contexto, para a docente, as “escolas e comunidade são fundamentais para moldar as escolhas alimentares e estilos de vida dos pais e das crianças, tornando mais fácil a escolha alimentar saudável e a prática de atividade física regular”.
No que toca a bebés e crianças na primeira infância, Joana Sousa, segue as recomendações da OMS que apontam para o início precoce da amamentação até uma hora após o nascimento, a amamentação exclusiva nos primeiros seis meses de vida”. Já o início da diversificação alimentar [introdução de alimentos sólidos] aos seis meses, deve fazer-se com opções nutricionalmente adequadas e seguras, complementando com a amamentação contínua até pelo menos aos dois anos de idade.
Mais tarde, com a criança em idade escolar e adolescentes, há que “limitar o consumo de alimentos com elevada densidade energética, estes, fontes de gorduras e açucares simples; potenciar o consumo de fruta e vegetais, cereais integrais e frutos oleaginosos”.
Uma componente alimentar a que não deve ser alheia a “prática de atividade física regular. Pelo menos 60 minutos por dia”, sublinha Joana Sousa.
A professora não isenta a indústria alimentar do papel preponderante na redução da obesidade infantil, e aponta caminhos como a “redução do teor de gordura, açúcar e sal dos alimentos complementares e outros alimentos processados; assegurar que escolhas saudáveis e nutritivas estejam disponíveis e acessíveis a todos os consumidores”. Um princípio de promoção de bons hábitos alimentares que, a montante, devem implicar a “prática de marketing responsável, especialmente aqueles destinados a crianças e adolescentes”.
A este propósito, Joana Sousa sublinha “as últimas políticas públicas alimentares em Portugal, no âmbito do ´Programa Nacional de Promoção da Alimentação Saudável` (PNPAS) e da ´Estratégia Integrada de Promoção da Alimentação Saudável` (EIPAS), com o compromisso assumido por vários intervenientes chave da indústria alimentar para a reformulação de produtos alimentares no que respeita à redução da gordura trans, sal e açúcar nos alimentos considerados de elevada fonte destes nutrientes”.
Pensar a mesa próxima da família e longe dos alimentos processados
Também a nutricionista e docente na Escola Superior de Hotelaria de Hotelaria do Turismo (ESHTE), Cláudia Viegas, nos recorda o papel importante da cadeia produtiva. “No que respeita ao combate à obesidade tem sido feito algum trabalho, especialmente com a indústria, no sentido de tentar melhorar o perfil nutricional de alguns produtos, nomeadamente reduzir o açúcar e a gordura que neles encontramos”.
Dificilmente a indústria consegue colocar à nossa disposição, no mercado, alimentos ou refeições equilibradas e com um custo baixo
A nutricionista, contudo, adverte que “a alimentação não deve ser pensada tendo por base um consumo regular de alimentos processados. Dificilmente a indústria consegue colocar à nossa disposição, no mercado, alimentos ou refeições equilibradas e com um custo baixo”.
“Acresce que os alimentos processados têm, normalmente uma pegada ecológica maior, quer em todo o processo de produção e fim de vida das embalagens, quer pelos processos industriais que lhes estão associados”, recorda-nos Cláudia Viegas.
Para a docente, há um trabalho importante a fazer no sentido de mudar não apenas hábitos alimentares, mas a forma como vivemos e pensamos a alimentação. “Há que comer em casa, cozinhar, aprendendo e recuperando as técnicas culinárias e o nosso conhecimento dos alimentos. Tudo isto significa adquirir os alimentos no seu estado mais próximo da natureza, preferencialmente sem processamento ou com um processamento mínimo, explorar formas, texturas, sabores, temperos e algumas tradições, nomeadamente os aspetos centrais da dieta alimentar que incluem uma alimentação de base mais vegetal, com pouca carne, privilegiando ainda o convívio à mesa em família e/ou com os amigos”.
Neste sentido, para a docente, “comemos melhor e desenvolvemos competências associadas à alimentação, aspeto particularmente importante quando falamos de alimentação infantil” e conclui: “Há, ainda, que recordar que temos de olhar para o problema da obesidade não de forma isolada, mas de forma integrada na nossa sociedade. Há que repensar a forma como olharmos para o trabalho, que invade cada vez mais as nossas vidas pessoais e familiares. É preciso vivermos mais devagar, com mais tempo, tempo para comprar e adquirir alimentos, tempo para cozinhar, tempo para o lazer e a atividade física”.
Gustavo Alves, a consciência de que conhecer é saber promover a mudança
Foi a mudança de vida, para “hábitos saudáveis”, que Gustavo Alves, Diretor de F&B no Altis Grand Hotel, atualmente com menos 12 quilos, empreendeu em conjunto com a família. Um caminho de conhecimento também incentivado por “uma urticária aguda. Melhorei significativamente da urticária, sinusite e insónias, problemas dos quais sofria antes”, como nos confidencia.
“Decidi retirar alguns alimentos e implementar algum exercício físico no meu quotidiano. A mudança na minha alimentação foi influenciada, em parte, pela minha mulher, que ao longo dos anos foi estudando e mudando hábitos familiares. Ter uma alimentação saudável sempre foi uma preocupação para nós na educação dos filhos”.
De acordo com Gustavo, “o mais difícil foi de facto chegar à consciência de perceber, o alcance e importância de uma alimentação saudável na nossa vida”.
Na prática, a mesa do também professor na ESHTE, deixou de ver carne produzida industrialmente, “só como frango e vitela de produção familiar, em pequenas quantidades, e apenas uma a duas vezes por mês. Habitualmente como peixe ao almoço, ao jantar criei o hábito de jantar cedo e opto por refeições ligeiras. Retirei totalmente o leite, evito pão branco e massas”.
Paralelamente, Gustavo Alves aumentou consideravelmente a ingestão de legumes e fruta em casa e só de origem biológica e produção local. Fruta sempre antes das refeições, assim como ingestão de líquidos. Bebo todas as manhãs em jejum um copo de água morna com o sumo de um limão. Durante a manhã bebo um litro de chá e bebo bastante água durante o dia”.
Quanto à muita informação que circula sobre as benesses e defeitos desta ou daquela dieta, “diverge muito e facilmente nos podemos perder. É importante ter alguém que nos guie e oriente, ler muito e implementar as mudanças que nos fazem sentido e com as quais nos sentimos bem”, conclui.
Luís Castelo, e uma luta, a de banir os alimentos processados
Um processo de conhecimento em torno da alimentação, foi aquele que também trouxe até ao momento presente Luís Castelo, Chef na Oficina Oito, em Lisboa. “Antes havia mais seis quilos e agora há um peso ´natural`". O nosso interlocutor explica-nos como: “Há cinco anos voltei à universidade onde me inscrevi no curso de Produção Alimentar em Restauração da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Ao longo do curso, em várias cadeiras ligadas à nutrição, fui percebendo que existe uma série de alimentos que fazem parte da nossa alimentação que não são propriamente os mais saudáveis, sobretudo os alimentos processados e os que contêm elevados índices de gorduras saturadas e açúcares, nomeadamente as carnes vermelhas, ou pior ainda as carnes cor-de-rosa [fiambres e afins]”, conta-nos.
Um tomate na salada é um alimento integral e saudável, um molho de tomate feito em casa não é assim tão integral, mas é mais saudável do que o molho de tomate comprado
Luís Castelo percebeu, paralelamente, algo muito importante, “como o conceito de alimentos integrais que, até então, estavam associados, na minha mente, ao pão sem sabor do tempo dos nossos avós, que só era comido por quem estava verdadeiramente doente”. Porém, para o chefe de cozinha, o conceito de alimento integral mudou completamente após alguns estudos, “por exemplo, um tomate na salada é um alimento integral e saudável, um molho de tomate feito em casa não é assim tão integral, mas é mais saudável do que o molho de tomate comprado”.
“Não me considero fundamentalista nem me enquadro em nenhuma categoria como vegetariano, ou tantas outras que estão agora na moda. Como quase tudo, até carnes vermelhas, embora estas tenham deixado de constar da lista de compras lá de casa. As carnes vermelhas, quando passamos muito tempo sem as consumir, acabamos por deixar de ter prazer quando as voltamos a provar. Alguns cogumelos, vegetais grelhados ou um peixe fresco, também grelhado, deixam a melhor carne a um canto”. No rol de alimentos “quase banidos” pelo mentor da cozinha da Oficina do Oito estão “as gorduras saturadas, os açúcares processados e os alimentos que não consigo identificar a sua origem”.
“Julgo que existe hoje muito mais informação e acesso ao que podemos considerar uma alimentação saudável face há uns anos. Por outro lado, este excesso de informação e até de oferta pode confundir os consumidores com vontade de mudar para uma alimentação saudável. Por vezes as informações até são contrárias porque as fontes das mesmas são muitas - das televisões às redes sociais”.
Para Luís Castelo, “o IVA devia ser mais alto nos alimentos que são realmente nocivos, como os altamente processados, calóricos ou açucarados. Já o imposto, devia ser mais baixo nos alimentos frescos e integrais. É preciso sublinhar que as pessoas com menos poder económico (e normalmente com menos educação a nível alimentar) vão sempre optar por alimentos mais baratos. Contudo, se for mais barato comprar legumes e peixe fresco do que uma refeição já pronta, que vai ao micro ondas, o Estado estaria a ajudar quem pior come e que mais tarde acaba por recorrer ao Sistema Nacional de Saúde por disfunções e doenças relacionadas com a alimentação”.
Ainda no que toca a políticas promotoras de uma alimentação saudável, Luís sustenta que esta “devia chegar, também, às cantinas escolares para que os alunos possam aprender a comer melhor”, a que se adicionaria um pedido aos pais, “que alterem hábitos domésticos menos bons. É também fundamental que as crianças aprendam a cozinhar de forma saudável desde cedo”.
No que toca à dinâmica para mudarmos a nossa alimentação, Luís Castelo indica-nos um caminho para separarmos o trigo do joio: “Uma forma fácil de fazer esta mudança é procurar comer só o que conseguimos identificar como ingrediente. A partir desta ideia é fácil deixar de comer um puré e preferir o alimento que se reconhece no prato”.
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