Se o casal de turistas brasileiros que momentos antes nos diz “não podemos entrar aqui que vamos engordar”, quando espreitam pela porta da pastelaria do Bairro Alto Hotel, soubesse que aqui as iguarias têm metade do açúcar que supostamente deviam ter, certamente teria mudado de ideias.
Além disso, esta não é uma pastelaria comum, é uma pastelaria-boutique. E em que é que isso se traduz? Vamos esquecer as montras pejadas de todos os tipos de bolos. Aqui, as iguarias até estão em exposição, mas como se de uma relojoaria ou peças de joalharia se tratassem. Na realidade até podemos considerar que são joias raras, se pensarmos no universo da pastelaria lisboeta.
É o chef Bruno Rocha e a chef de pastelaria Maria Ramos que nos recebem no espaço no início do rua do Alecrim, junto ao Largo Camões, no coração de Lisboa. Num fim de tarde de abril, onde o calor já começa a alegrar os dias, são eles que nos apresentam as novidades da carta, que foi renovada recentemente e que dá o tom para o segundo ano de vida da pastelaria.
“Este ano eu e a Maria fizemos um trabalho, durante o inverno, em que passámos uns dias a visitar espaços e a provar coisas que estivessem mais relacionadas connosco, com café de especialidade, em Lisboa”, explica-nos Bruno Rocha que nomeia projetos como o Isco, o Copenhagen Coffee Lab ou a Milkees como alguns dos locais onde fizeram estas visitas de estudo.
A ideia passou por manter clássicos portugueses como o pastel de nata, a empada ou a merenda, mas “por que não trazer o registo mais internacional, pensando nas pessoas que passam aqui? Nós vimos isso nos outros projetos. E agora há muitos nómadas digitais que compram um cinnamon roll, pedem um café “to go” e vão passear o cão. Nós vimos de tudo”, explica-nos o chef.
A inspiração internacional veio, mas mantendo a premissa que caracteriza a restauração do Bairro Alto Hotel, ou não estivéssemos a falar dos comandos de Bruno Rocha. A aposta até pode incluir alguns bolos conhecidos além-fronteiras, mas feitos com produtos portugueses, nível de açúcar controlado e gramagens mais curtas, para não haver bolos excessivamente grandes, ou seja, desperdício. Mesmo as inspirações não vão muito longe. O cinnamon roll é inspirado no folar de Olhão, os donuts são feitos a partir de um chocolate sem açúcar, de António Melgão, de Montemor-o-Novo. Nas receitas portuguesas, a merenda é com queijo dos Açores, o pastel de nata leva banha de porco alentejano. Aliás, o best-seller é sem dúvida este clássico da pastelaria portuguesa, que aqui, nos indicam, deve ser comido à colher.
Questionamos: o que acham os americanos de um donut feito de chocolate sem açúcar? “Óbvio que isto é uma provocação e tem a sua piada porque eles são da terra dos donuts. E gostam. A primeira venda que tivemos de um hóspede foi precisamente este bolo. Ele escolheu através da televisão e pediu para servir no quarto”, relembra Bruno Rocha.
As novidades, no entanto, não se ficam apenas pela oferta internacional. O pão de Deus é também um reforço. “Tem sido giro pôr os estrangeiros a comer pão de Deus com queijo ou fiambre, que é uma coisa muito mais nossa”.
Quem conhece a filosofia do Bairro Alto Hotel sabe que uma das principais preocupações é evitar-se o desperdício. E isso não foi esquecido na pastelaria. Mensalmente já vendem à volta de dois mil bolos e o crescimento tem sido sustentado. O controlo de números é rigoroso e integrado com toda a oferta do hotel de forma que nada vá fora. Se algo sobrar é transformado em algum tipo de sobremesa para o staff. Mas acima de tudo está a qualidade dos produtos e das matérias-primas, num local que oferece um serviço de cinco estrelas.
“Há uma preocupação em dar o máximo de qualidade possível dentro do nosso registo [de evitar desperdício]. Nada disto é aproveitado para o dia a seguir, a montra todos os dias é renovada. E é um trabalho duro. Muitas vezes as pessoas não fazem ideia do trabalho que está aqui para chegarmos às 10h e termos uma vitrine composta”, afirma o chef.
A montra de cada dia começa a ser preparada no dia anterior. “O pão de Deus de amanhã, já o tenho a levedar no frigorifico. Nós fazemos uma massa e só no dia a seguir é que vamos ver o resultado”, explica-nos a chef de pastelaria Maria Ramos. “Tentámos ao máximo ter uma massa que desse para mais registos. Foi o que aconteceu ao brioche. Desta massa conseguimos tirar os cinnamon rol, o pão de Deus e os donuts. A partir da massa-mãe, cada um leva uma porção diferente, com levedações diferentes e tempos de cozedura diferentes”, acrescenta.
Como apoio à pastelaria está a mezzanine com uma vista privilegiada para a montra de bolos e para o Largo Camões. O convite é ficar e há até hóspedes que optam por aqui trabalhar por haver condições para tal.
“O conceito não está desvirtuado. Mantém obviamente esta matriz de estarmos em Portugal, mas é uma pastelaria dedicada e cuidada e não há aqui pós nem melhorantes. É tudo feito de raiz, levedado, com paciência”, conclui Bruno Rocha.
Pairings de café e bolos
Provar bolos não se apresenta como má ideia, mas fazer pairings de bolos e café é um outro nível. A ideia é mesmo essa, conduzir os clientes para a escolha ideal de acordo com a bebida pedida. Além da oferta mais tradicional entre expressos, opções com leite ou de filtro, há outro tipo de bebidas como o chai latte, golden milk e bebidas com sabores, mais festivas, como pumpkin spice. Tudo com especiarias do hotel.
Entramos de cabeça na experiência da pastelaria-boutique, com uma masterclass improvisada do barista Rodrigo Tavares, que nos faz uma incursão pelo mundo do café de especialidade. “O objetivo do café de especialidade é todo o cuidado que há no tratamento do café, desde o grão verde até ele ser moído e preparado para qualquer método em que irá ser usado”, explica-nos. Assim como os bolos têm receita, também o café, adianta-nos. Avancemos então para as provas.
Ato 1 – Café expresso acompanhado de cinnamon roll
“Trago o expresso para começar. Não sei se têm algum bolo em mente?”, questiona Rodrigo. A resposta (óbvia) é pastel de nata. “Temos um blend muito trabalhado para o gosto português, bastante intenso, bastante cremoso, duradouro na boca, o after taste é muito presente. E em termos de consistência, podem mexer à vontade que ele vai voltar à sua consistência normal”, que é como quem diz, a espuma não se desfaz.
Mas a sugestão (menos óbvia) é cinnamon roll. “O café em si é bastante intenso. Se acompanhado com algo doce, o café irá parecer bastante desagradável. O cinnamon roll, devido a ser baixo em açúcar e ter notas de especiarias que é algo também presente no nosso café, irá talvez enaltecê-lo”, conclui.
Maria Ramos faz as explicações do bolo. “No cinnamon roll colocamos manteiga, açúcar, canela e alcaravia, que é da família dos cominhos. Em Portugal, não se encontra nas lojas de especiarias, só em ervanárias, porque é bom para o estômago”.
Não se distraia do seu café com as explicações. Quanto mais frio fica, mais se vai notar a sua acidez.
Ato 2 – Cappuccino acompanhado de pão de Deus
“No cappuccino sigo a mesma receita do expresso, 20 gramas, e depois tem 180 ml de leite. Tem cerca de 30% de creme, 20% de expresso e o resto é leite. Se provarem vão sentir o creme consistente, que é algo agradável, não é uma espuma como às vezes podem encontrar. O leite não vai estar queimado, vai ser bastante doce e com a mistura do café parece que se nota diversos sabores. Com a receita que usamos, o nosso cappuccino fica quase a saber a um bolo, é bastante agradável”, explica-nos o barista.
O bolo sugerido como pairing é o pão de Deus. “O cappuccino é uma bebida de conforto e encaixa muito bem com o pão de Deus devido à sua massa”, conclui.
Na nossa cabeça repetimos o mantra “tem menos açúcar, tem menos açúcar”. Maria responde às nossas preocupações. “Posso dizer que para 1,200 kg de farinha só colocamos 110 gramas de açúcar. As especiarias é que vão enganar o palato”.
Ato 3 – Café de filtro com donut de chocolate negro e flôr-de-sal
“O café de filtro é feito quase como se fosse um chá, só que não podemos seguir os mesmos parâmetros porque o café é algo muito mais intenso”, afirma Rodrigo. O que salta à vista nesta bebida é a sua cor, mais clara daquilo que estamos habituados a identificar no café.
“A cor é quase um âmbar, um castanho meio transparente. O aroma fica muito mais leve na chávena, mas na boca é um café intenso, com um after taste bastante presente na boca”.
Questionamos qual a intensidade deste café, cujo grão é proveniente do Peru. “Se pensarmos que num café comum acabamos por extrair 40 a 50% da cafeína do grão, neste acaba por ser entre 10 a 15%”, complementa o barista.
O donut foi um dos bolos mais desafiantes. “Foi muita tentativa erro, umas vezes levedava muito, outras vezes levedava pouco, o buraco não ficava no sítio, ou ficavam ovais. Foi um pesadelo até chegarmos aqui”, confessa-nos a chef de pastelaria. Acresce o facto de o chocolate usado não ter açúcar para aumentar o nível de dificuldade.
Ato 4 – Um after para um café expresso com pastel de nata
Voltamos semanas mais tarde, numa manhã de domingo, para provar aquele bolo que sobrou, mas que afinal é o best-seller: o pastel de nata.
“Nós fazemos os pastéis de nata como antigamente. A massa em si é barrada com manteiga e banha porque é uma coisa portuguesa e sempre foram feitos assim”, explicou-nos a chef de pastelaria, na nossa primeira visita.
É Rodrigo Tavares quem nos volta a receber. Fazemos o pedido e como é suposto nesta pastelaria, o pastel de nata é acompanhado com uma colher, o que os remete para a infância. Quem de nós não comeu um pastel de nata à colher nessa altura?
Comprovamos que o bolo é efetivamente menos doce do que os típicos “primos” que encontramos por aí.
Os preços na pastelaria-boutique do Bairro Alto Hotel começam em 1,50€ (pastel de nata), na pastelaria e 2€ (expresso), na parte de cafetaria.
O SAPO Lifestyle visitou a pastelaria a convite do Bairro Alto Hotel.
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