Tem de nome Graciosa, espraia-se por perto de 12 Km de comprimento por 8 Km de largura nas águas atlânticas. Qual nave oceânica abriga o território pouco mais de quatro mil habitantes. No extremo noroeste do Grupo Central do arquipélago dos Açores, tem esta ilha em latitude de diversidade e riqueza natural e humana uma dimensão inversamente proporcional aos seus modestos 60 Km2 de área. A Ilha Branca a que Raul Brandão se afeiçoou na sua obra da década de 1920, As Ilhas Desconhecidas, reserva-nos um património gastronómico singular com dois eixos bem definidos, não fosse este um território insular, tributário daquilo que a terra e o mar oferecem.

Um património gastronómico que nos últimos meses mereceu a atenção da estudiosa do fenómeno alimentar, a terceirense Helena Juliano. Com a especialista em gastronomia partilhamos uma conversa em torno do seu trabalho de campo, iniciado em fevereiro deste ano, calcorreante da ilha Graciosa. Um labor de inventário do património local, sob os auspícios da autarquia da de Santa Cruz da Graciosa, que viria a associar-se a um outro projeto de âmbito mais alargado, o Saborea. Desta forma, nasceu o “Saborea-Património Gastronómico da Graciosa”, promovido pela Câmara do Comércio de Angra do Heroísmo, a ADCA-Agência para o Desenvolvimento da Cultura nos Açores, juntamente com o já referido município.

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Já no passado mês de junho, três chefs, dois do continente (Nuno Bergonse e André Cruz) e um dos Açores (Paulo Lourenço), tiveram a oportunidade de comprovar e provar in loco aquilo que Helena Juliano percebera mal iniciara o seu périplo pela ilha Branca. Num workshop de quatro dias, o trio de chefs andou no terreno a conhecer as práticas e os produtos regionais, como o almoço regional de matança, pesca artesanal em barco típico, visitas a produções agrícolas locais, fábricas de produtos regionais, a produtores de vinho ou a restaurantes, entre outros, numa imersão no património da ilha. Aos chefs juntaram-se pescadores, produtores e cooperativas para maior conhecimento da ilha.

Antes de enveredarmos no terreno fértil da gastronomia graciosense, perguntamos a Helena Juliano o que lhe ocupou as pesquisas desde a nossa última conversa, em 2021, quando participava num projeto análogo na ilha do Pico, como aqui demos prova. “Estive ligada a um projeto da pastelaria conventual da ilha Terceira, território rico nesta área devido à quantidade de mosteiros existentes. Tal como em outras ilhas açorianas, essas riquezas vão-se perdendo, sendo que sobre algumas das receitas não se conhece a verdadeira origem. Em muitos destes doces, associava-se o que havia em maior quantidade, como as gemas e o mel, a produtos de uso comum em casa, caso da abóbora, do feijão e da cenoura. É muito interessante avaliar a doçaria mais pobre, aquela que é a original, anterior ao êxodo migratório, face àquela que provém do regresso das pessoas dos Estados Unidos e do Brasil e que trouxeram consigo o amendoim, o coco e o cacau. Ao introduzi-los na nossa gastronomia as coisas vão mudando e evoluindo. Há ainda antigas pasteleiras que sabem fazer os doces ancestrais. Há que saber manter esta memória”, sublinha Helena Juliano que, de momento, trabalha nas fichas técnicas dos doces. Dentro em breve, este levantamento estará disponível online e, depois, em livro físico.

helena juliano
Helena Juliano, responsável técnica do evento que reuniu chefs com protagonistas da cozinha da ilha Graciosa. Saborea-Património Gastronómico da Graciosa

Um contacto porta a porta

Olhemos, então, para a ilha Graciosa, a partir das palavras da nossa interlocutora: “comecei a trabalhar no inventário em fevereiro deste ano, no contacto porta a porta, a conhecer as pessoas, a obter as receitas antigas, a provar, e, depois, a fazer a depuração de toda essa informação, daquilo que é interessante. Fiz um levantamento de todos os produtores locais, das capturas de pescado e marisco e que tipo de produção agropecuária existe”.

“A meio do caminho, o receituário que resulta do inventário do património gastronómico da ilha, um projeto da Câmara Municipal da Graciosa, cruza-se com o projeto Saborea. Este vai aproveitar todo o know-how do referido levantamento para o pôr em prática com três chefs. Estes, percebem quais os sabores que são intrínsecos à ilha, o que é possível repescar e introduzi-los como um produto atual. Isto sem que se perca a sua verdadeira identidade. O objetivo é fazer da Graciosa um local de turismo gastronómico sustentável”, sustenta Helena Juliano.

Ainda de acordo com a especialista em alimentação, “o grande problema da gastronomia tradicional é que, muitas vezes, as pessoas são aliciadas a introduzirem produtos contemporâneos porque acham que é mais cativante. A Graciosa é uma ilha pequena, onde é evidente a sazonalidade. No fundo, o que as pessoas procuram nas suas casas, no dia a dia, são os sabores mais genuínos. Quem nos procura é isso que quer. É desolador chegar a um destino turístico e não conhecer os hábitos gastronómicos da população local. É triste assistir à uniformização da restauração”.

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Meloa da Graciosa. Saborea-Património Gastronómico da Graciosa

Um mundo de ingredientes e sabores

Da teoria à prática, como define Helena Juliano a riqueza gastronómica da Graciosa? “A cultura no que respeita aos produtos hortícolas e frutícolas não evoluiu muito nos últimos anos, o que não é obrigatoriamente mau. Passo a explicar: os produtos apresentam-se como eram há 40 ou 50 anos, com grande pureza. A agricultura é muito artesanal. Há, de facto, dois ou três agricultores que conseguiram suplantar essa dimensão e bastam à família, à ilha e a outras ilhas. O Alho da Graciosa é um produto certificado desde 2021, com Indicação Geográfica Protegida (IGP). Um alimento muito aromático, de dentes pequenos, muito compactos e rosados. Confere um sabor singular aos pratos”, conta Helena, para acrescentar outros produtos à categoria dos imperdíveis da ilha: “Destaco, também, o Meloa da Graciosa, a Abóbora, muito abundante [um dos objetivos do workshop foi diversificar a confeção da abóbora]. Também são muito trabalhados a couve e o repolho, assim como o nabo e a fava”.

lapas
Lapas. Saborea-Património Gastronómico da Graciosa

Dos hortícolas para as carnes, Helena Juliano destaca a “muita carne bovina e de qualidade. Há mais cabeças de gado do que população [risos]. Claro que muita desta carne é exportada. Também encontra muita criação de aves, com perus, galinholas, galinhas, patos, que se alimentam em campo aberto. No workshop confecionou-se em fogo lento o galo velho de produção caseira. Uma nova abordagem, pois os restaurantes tendem a apresentar nas suas ementas o frango grelhado ou frito. O porco continua a ser uma das carnes mais consumidas nas ilhas o que é explicado pelas práticas do passado, quando não havia métodos de conservação. Nos enchidos, a Linguiça é muito característica, pois apresenta pouca gordura. Por sua vez, a Morcela tem menos arroz do que na ilha Terceira e mais cebola e salsa”.

Da terra para o mar, o peixe da Graciosa é “muito bom e fresco. Aliás, é muito bem trabalhado na ilha. Deve ser das ilhas dos Açores que serve o peixe mais fresco”, salienta Helena Juliano que enumera a lista de peixes com mais captura e consumo: “a Veja, o Sargo, o Chicharo, a Cavala, o Pargo, o Goraz, o Atum, o Cherne, entre outros. O marisco é excelente, como o Caranguejo, a Lapa, o Cavaco. No que toca às confeções com sabor a mar, destaco o Molho à Pescador, muitas vezes confecionado em alto-mar, um prato muito rico em termos de paladar e comido sobre uma fatia de pão, com a posta de peixe e o caldo por cima. Encontra-lhe nos ingredientes o alho e a predominância do açaflor (açafroa) – ainda muito produzida na Graciosa. Temos também o Caldo de Peixe que se aproxima de uma caldeirada. Faz-se o peixe frito, o peixe assado e o grelhado. Por exemplo, nos peixes menos nobres, estes são assados na folha da figueira e adiciona-se a ‘milhanga’, um molho com cebola, açaflor, cominhos e alho”.

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Saborea-Património Gastronómico da Graciosa

Queijo, vinho e Sopas do Espírito Santo

Um rol de produtos alimentares, onde Helena Juliano não deixa escapar o Queijo, “muito bom, com cura ligeira, de um a dois meses, embora o queijo com 18 meses de cura seja divinal”; assim como o Pão. “Tem muito riqueza e variedade. No passado, a Graciosa era um grande produtor de cereais, nomeadamente o milho e o centeio. A massa sovada, que chamam rosquilha ou pão doce, é mais densa e aromatizada com erva-doce. O pão de milho e o pão caseiro, cozido em forno de lenha, são excelentes”.

Querendo-se pão e vinho sobre a mesa, diz-nos Helena Juliano que “a Adega e Cooperativa da Graciosa tem feito um notável trabalho no que respeita aos néctares. Além de terem a comercialização e exportação da meloa e do alho, estão a produzir o vinho branco, com as castas predominantes, o Arinto e o Verdelho. Fazem-se, de momento, testes com espumantes. Julgo que teremos em breve boas surpresas”.

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Sopas do Espírito Santo. Saborea-Património Gastronómico da Graciosa

Traço indissociável da cultura açoriana, as Sopas do Espírito Santo são “divinais na Graciosa. Atrevo-me a dizer que é a melhor Sopa do Espírito Santo dos Açores, muito leve, com pão embebido separadamente e que as pessoas podem levar ao prato. É um caldo de carne, mas com muitas couves e repolhos. Sobre as sopas coloca-se o fígado e o sangue aos 'cubinhos'. É do género cozido à portuguesa, mas com os temperos açorianos”.

No que à doçaria respeita, “pela pesquisa que fiz, chego à conclusão que dada a simbiose que existe entre a população da Terceira e Graciosa, quase toda a doçaria vem da Terceira, mas evoluiu aqui naturalmente. Por exemplo, temos a Queijada da Graciosa que é oriundo dos Covilhetes de Leite da Terceira, mas que evoluiu muito bem. As doceiras souberam trabalhá-la no ponto de açúcar. Os Rochedos de Chocolate mantêm-se muito iguais aos da Terceira, como ali eram apresentados no passado”.

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Queijadas da Graciosa. Saborea-Património Gastronómico da Graciosa

Em jeito de conclusão, Helena Juliano sublinha que “o interessante na semana do workshop que juntou os chefs aos protagonistas da Graciosa é assistir ao entusiasmo partilhado. Por exemplo, os chefs apreciaram as algas marítimas frescas e comestíveis com um sabor muito intenso. Os Açores são nove ilhas e seria ótimo que este género de iniciativas fosse abrangente a todas elas. Em causa está a identidade do nosso povo. Acresce que quem nos visita quer provar o que é nosso. Tudo isto acaba por ser um incentivo aos produtores, por exemplo para criarem microempresas familiares que, em meios mais pequenos podem fazer a diferença”.