Há alguns anos, no programa da SIC “Eixo do Mal”, Luís Pedro Nunes soltou esta tirada: “No outro dia fui ao Chiado e até ouvi falar português!”. A clara ironia já refletia, na época, o excesso de turismo na zona. Isso fica evidente quando tentamos chegar ao Chiado: o trânsito infernal e as mudanças que a área sofreu nos últimos anos parecem afastar cada vez mais os portugueses de uma das zonas mais nobres de Lisboa.
Miguel Reino chegou ao Chiado, depois de uma década na Praia do Pêgo, na Comporta, em outros tempos, mais precisamente em 2009 — um ano marcado pela crise, mas também numa época em que o Chiado ainda era passeio habitual dos portugueses, fosse para fazer compras, fosse por trabalho ou para ir ao teatro. Passaram-se 15 anos, e essa passagem do tempo mudou muita coisa.
O SAPO Lifestyle foi convidado para um almoço e respondeu ao convite. No final da refeição, Miguel Reino senta-se à mesa e partilha a sua história. Afinal, são mais de cinco décadas ao serviço da restauração, e grande parte desse tempo dedicado a um produto que nos devia ser ainda mais precioso: o peixe.
Antes de chegar a Lisboa, o Aqui Há Peixe teve uma breve passagem pelo Algarve. Como foi essa experiência?
Foi o período entre a Comporta e Lisboa. Foi uma parceria com o Lake by the Sea, que era do grupo Amorim.
Isso foi em que ano?
Em 2008. Em 2009, vim para cá. Saímos do Algarve em novembro, viemos para Lisboa à procura e encontramos este local em 2009.
Quando compramos um produto ou vemos um produto no mercado, tem de se idealizar o que é que se vai fazer com ele, principalmente não estragá-lo
O objetivo nunca foi ficar no Algarve?
O objetivo era ficar onde fosse possível, mas o que aconteceu? O grupo Amorim tinha a concessão da praia, e aquilo esteve três ou quatro anos a correr mal. Connosco, correu muito bem. Quando correu bem, a Marina de Vilamoura triplicou a renda, e aí eles saíram.
O Miguel começou a trabalhar em restaurantes com 16 anos. Hoje tem 62. Mais de cinco décadas depois, o que o faz continuar nesta área?
Só pode ser o amor. Acho que é. É o prazer, é o desafio, porque a cozinha é um desafio. Quando compramos um produto ou vemos um produto no mercado, tem de se idealizar o que é que se vai fazer com ele, principalmente não estragá-lo. E isso é que é o maior desafio. É ter o prazer de cozinhar, o prazer de receber. É a minha paixão, e dá-me até hoje o incentivo e o estímulo. Há altos e baixos, com certeza. Às vezes, uma pessoa tem vontade de mandar os tachos pelo ar.
Como é que é a rotina diária? É fácil comprar peixe fresco?
No começo, como tudo, tem de se fazer sempre estudo de mercado: qual é o peixe que se adapta melhor. E começámos com o fornecedor do Aqui Há Peixe da Comporta, que ia fazer compras ao Marl. Até hoje, fazemos a compra na lota da noite. Como deve calcular, depois de 15 anos ele já sabe exatamente a qualidade que o Aqui Há Peixe exige. Portanto, a confiança é essa.
E é por isso que não abre à segunda-feira?
É um pouco, apesar de hoje em dia, com as lotas de segunda à tarde, ser possível encontrar produto. Mas a tradição na cabeça das pessoas é que à segunda-feira não há peixe. E vir ao restaurante cujo nome é Aqui Há Peixe, onde só vendo peixe, já nem vendo carne... Porque eu tive um restaurante de carne, que foi um sucesso, em Lisboa, nos anos 1990, que era O Picanha, nas Janelas Verdes. E mantive sempre a picanha no restaurante, só que ultimamente, de há uns dois ou três anos para cá, as pessoas estão a consumir menos carne. E também abriram aqueles restaurantes mais específicos em carne, com as maturadas. Em relação aos legumes, vêm do Mercado de 31 de Janeiro. Cheguei a trabalhar com a Açucena Veloso. Só que sou muito específico. E a Açucena trabalhava com os chefes todos. Então havia muita comunicação do que é que eu comprava, o que é que eu não comprava. E gosto de ser mais recatado, mais discreto, porque, por exemplo, o pampo é um peixe que muito pouca gente usa.
É uma das suas apostas na carta de hoje.
Eu uso qualquer peixe, trabalhei com muito peixe dos Açores, como bicudas, peixe-porco, boca-negra, charela. Só trabalho com peixe fresco. Logicamente, que aqui o carro-chefe é a dourada e o robalo.
Mas por causa dos clientes?
Acho que é por causa dos clientes. Voltando ao início e ao desafio, as pessoas não acreditavam que, no centro de Lisboa, podia haver peixe grelhado como na praia... Ficaram a pensar se isto ia dar certo ou não. E aqui a realidade é a tradição, o saber grelhar e a qualidade. As pessoas deram muito valor a isso. Há dois peixes que sempre tivemos aqui, o robalo e o pregado, porque são peixes da nossa costa, mas também sargo, dourada e corvina.
Gosta de manter a tradição de ir ao mercado?
Gosto de ir aos mercados. Em qualquer viagem que faça, vou a museus e vou a mercados. Gosto de ver o que é que se está a trabalhar, tanto nas carnes como no peixe, nos mariscos, nos legumes. Qualquer cidade, em qualquer país, vou sempre ao mercado. É assim desde pequenino.
Acho que o português gosta imenso de peixe, mas houve uma época em que se tinha medo de o comer
Quais são aqueles pratos estrela, que nunca irá tirar da carta?
Trouxe muitos pratos do tempo da Comporta. Lá havia muito peixe grelhado, porque estávamos na praia. Mas trouxe o arroz negro, o tamboril, o espaguete de carabineiros. O que acontece? O cliente vem e volta com água na boca, com aquilo que lhe deu prazer. Já tive vários pratos, que pus e tirei, mas estes são os básicos. E depois tem sempre o prato do dia, nisso posso pôr criatividade. Tem variadíssimas coisas: gaias, carapaus fritos, arroz de lingueirão.
Como é que está a relação dos portugueses com o peixe?
Acho que o português gosta imenso de peixe, mas houve uma época em que se tinha medo de o comer. Porquê? Ou era pelo preço, ou era por o peixe não ser bom. Agora, acho que já têm mais confiança em comer outra vez peixe. E sabe o que é que acho que também se procura? Uma coisa mais tradicional. Tem muita variedade hoje em dia, mas as pessoas cansam-se um pouco. Nos últimos seis a oito anos houve muita novidade e um grande boom de cozinhas internacionais, principalmente asiáticas. E apareceram muitos conceitos e empresas de restauração. E com todo este turismo, em que se come igual aqui ou noutra cidade qualquer, quando se come um prato tradicional, as pessoas sentem a diferença.
Quando chegou aqui em 2009, foi um ano também muito particular.
Sim, foi o início de uma crise.
Como foi estar em Lisboa nessa época?
Foi logo uma aventura. Comprei o trespasse da casa e no dia seguinte tinha tudo bloqueado no Banco de Portugal porque a empresa a quem comprei tinha dívidas. E depois foi a parte de fazer as obras, sem dinheiro, sem nada. Mas, ao longo da vida, o que é importante é termos crédito. Portanto, fiz as obras porque tiveram confiança em mim e fui pagando. A decoração foi do saudoso Pedro Espírito Santo, que se disponibilizou e fez isto tudo. E os fornecedores também sempre acreditaram. Como nunca deixei ninguém mal, tenho essa credibilidade.
Queria ter comprado este espaço?
Sim, isso queria eu, quando o prédio foi vendido. Ainda tentei, mas não foi possível. Acho esta casa lindíssima. É um grande spot, é uma construção do Marquês de Pombal.
O espaço sempre foi assim?
Aqui [na sala principal] era um bar, nem se viam os arcos. E o arquiteto fez a decoração segundo os princípios do feng shui - a entrada deve subir, não descer, para o negócio subir. E faz todo o sentido entrar por baixo, pela cozinha, porque uma das coisas que sempre fiz em restaurantes foi ter cozinha à vista. Quando trabalhava nos hotéis, era tudo cozinhas fechadas, quase não se vê a luz do dia. Nos meus restaurantes sempre foi cozinha aberta, desde Búzios.
Como foram esses primeiros tempos?
Os primeiros tempos foram como qualquer negócio que abre novo, é devagar, degrau a degrau. Veio a crise, veio a Troika, mas o Chiado ainda tinha algumas empresas aqui sedeadas e alguns moradores. Era mais fácil vir ao Chiado. Pela clientela portuguesa, tínhamos principalmente almoços. Conseguimos superar isso e veio logo a seguir [a época] dos vistos Gold, onde houve investimento estrangeiro, houve uma grande mudança.
Em que ano foi isso, lembra-se?
Acho que 2014. Começou a haver uma certa movimentação no imobiliário, e aí começaram a aparecer os turistas residentes, basicamente franceses.
E tornaram-se clientes do restaurante?
Sim, pelo peixe, porque também não havia muitos restaurantes onde se comesse peixe.
Talvez nas marisqueiras.
Sim, nas marisqueiras e em tascas, com aquelas garoupas penduradas. Mas restaurantes específicos, não havia. Também não havia muita oferta em Lisboa, nesse aspeto, e nós tivemos um bom período.
Será que Lisboa ainda é a terra do bitoque?
Eu sou fã. Quando estou de folga, como bitoques, pizzas e frango assado (risos).
Mas voltando ao Chiado, o facto de hoje se manterem aqui não será mais um problema do que um benefício, pensando na clientela portuguesa?
Isso sentimos, sim. Além de ser um ponto turístico, o acesso está terrível. Quando viemos para o Chiado, era uma tradição vir-se aqui, ainda havia lojas para se vir ao Chiado.
Era o passeio de fim de semana.
Era passeio, mas era cultural, com os teatros. As lojas que temos hoje encontram-se em qualquer lado. E os escritórios também saíram.
Considera-se o último reduto desse tempo?
Está a tirar-me as palavras da boca, porque eu acho isso. Quando chegámos aqui havia três restaurantes. Agora são 12, um pouco repetitivos. Eu era o único que vendia peixe, que tinha frutos-do-mar, e agora há outros.
O Chiado vai ser sempre o Chiado
Mas o Miguel mantém-se fiel à tradição.
Ah, sim. No outro dia vieram dois senhores com um limão da Austrália, chamavam-lhe limão-caviar. Eu nunca tinha ouvido falar. "Dê-me um que eu vou abrir". Abri o limão ao comprido e disseram-me que não podia ser assim. “Sim, e agora?” Este limão não tem sumo. "Não, é limão-caviar. Abre e depois estes gomos são o caviar". E eu disse: "Tenho praticamente 40 anos de profissão. Agradeço, mas esses conceitos não cabem aqui, quero manter uma tradição, porque aqui não há muita cozinha portuguesa e eu pretendo manter isso".
E considera algum dia mudar de espaço?
Nós estávamos com contrato até 2024, acabava em junho, e recebemos uma carta em 2023 para entregarmos a casa. Mas eu gosto desta casa, com 15 anos, e o Chiado vai ser sempre o Chiado. Ainda pensámos em sair daqui, mas com 62 anos, no pós-COVID, com empréstimos ao banco... E quando se está no Chiado, vai-se para onde? O presidente e o vice-presidente [da Câmara Municipal de Lisboa] vieram aqui e perguntaram-me qual é a minha opinião. Acho que os autocarros a passear turistas na rua da Misericórdia, na rua do Loreto, onde só cabe um autocarro, mais os autocarros da Carris, mais os tuk-tuks, mais os Ubers, nós, que somos cidadãos de Lisboa, não temos qualidade de vida, nem podemos deslocar-nos à vontade. Tem de haver circuitos diferentes, não podem ser os mesmos. A rua do Alecrim, a rua da Misericórdia, o Príncipe Real, está tudo entupido. A Avenida da Liberdade, a Rua da Conceição, tudo entupido e não pode ser. Tem de haver uma alternativa. Eu ando de mota, portanto é diferente. Agora, quem não anda de mota...
Então, e qual é a vossa solução? Vão sair?
A solução foi renovarmos o contrato, com a renda [a subir] quase para o dobro. Pensei: "Mudar daqui para onde?". E investimento para fazer um restaurante assim bonito? Quanto é que vou gastar? Endividar-me mais aos 62 anos? Isso não. Então, fiz as contas. Vou pagar mais nos próximos três anos, mas não tenho de fazer mais nenhum investimento. Portanto, é rentabilizar e pagar o que temos para pagar. Daqui a três anos, logo vejo. Não me vou reformar. Talvez pense num restaurante mais pequeno, tipo bistrô.
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