Todos sabemos como o peso social e cultural impera sobre as nossas escolhas e perceção que os outros têm sobre nós. Sendo a Filipa vegan, houve algum momento em que ponderou não adotar na alimentação do seu filho os princípios do veganismo?
Todos nós fomos educados segundo as crenças dos nossos pais e cuidadores pelo que não faria sentido que fosse diferente com a nossa família. Sabendo que uma alimentação 100% vegetariana/vegan bem planeada fornece todos os nutrientes importantes e essenciais para a nossa saúde, nunca coloquei a hipótese de oferecer uma alimentação não vegetariana ao Lourenço.
Quando os nossos filhos são pequenos e dependem inteiramente de nós, temos o dever de cuidar deles da forma que nos faça mais sentido. Não se trata de teimosia nem tão pouco de forçar uma crença. Trata-se de querermos dar o melhor aos nossos filhos e educá-los de acordo com os nossos valores. Estou consciente de que a nossa alimentação ainda não está devidamente normalizada para que deixem de existir olhares reprovadores vindos do exterior. No entanto, não faria qualquer sentido incutir ao meu filho hábitos e crenças com os quais não me identifico.
Porque razão é, em termos gerais, mais fácil à sociedade ver como ´natural´ que uma criança tenha uma alimentação cárnica do que de base vegetariana, ou mesmo vegan?
A maioria dos portugueses foi educada com base na crença de que a proteína animal é essencial para a sobrevivência do ser humano ou que o leite de vaca é determinante para fortalecer os nossos ossos. Nunca se falou tanto de alimentação vegetariana como hoje se fala. No entanto, nem sempre foi assim. Até há alguns anos não existia muita informação sobre este tema. É por isso normal que a maioria das pessoas esteja ainda receosa ou alheia à mudança. Aos poucos, o vegetariano e o veganismo estão a ser introduzidos na nossa sociedade e acredito que a tendência passa por começar a normalizar esta opção e forma de estar na vida.
É uso dizer-se que alimentar é cuidar e amar. Curiosamente, mais facilmente damos um doce aos nossos filhos do que por, exemplo, uma tacinha de húmus com palitos de cenoura. Amamo-los mas não transferimos esse cuidado para o prato. Concorda?
A maioria das pessoas não se questiona em relação à alimentação. Por exemplo, a maioria das creches serve como lanche papas industrializadas e cheias de açúcar. Quem vende aquele produto sabe perfeitamente o que está a vender. No entanto, grande parte dos seus consumidores pensa que está a adquirir uma refeição importante para o desenvolvimento do seu filho. Provavelmente, o pediatra que aconselhou a compra dessa mesma papa, fê-lo convicto de que era a melhor opção. O que quero dizer com este exemplo, é que se estivéssemos devidamente informados sobre estes produtos, como o açúcar presente nas papas para bebés, por exemplo, certamente iríamos procurar outras opções.
A maioria dos portugueses foi educada com base na crença de que a proteína animal é essencial para a sobrevivência do ser humano ou que o leite de vaca é determinante para fortalecer os nossos ossos. Nunca se falou tanto de alimentação vegetariana como hoje se fala.
Filipa, a infância e a adolescência são períodos de um rápido crescimento físico e desenvolvimento cognitivo. Uma dieta vegan supre todas as necessidades alimentares neste período?
A alimentação vegetariana na infância e adolescência está já amplamente estudada e são cada vez mais os estudos que referem os benefícios associados a uma dieta 100% vegetal em qualquer faixa etária. Em Portugal, a Direção Geral de Saúde publicou um manual a respeito deste tema que se encontra disponível para descarga e consulta no site. Logicamente têm de existir cuidados para garantir o aporte de todos os nutrientes necessários, como aliás deve acontecer em qualquer regime alimentar.
Em termos concretos como conseguimos, no quadro de uma alimentação vegan, ir buscar todos os nutrientes necessários ao desenvolvimento da criança?
De uma forma sucinta, a criança vegetariana/vegan consegue obter a proteína através das leguminosas, dos cereais, preferencialmente integrais, e das oleaginosas, frutos secos e sementes. O cálcio é obtido através do consumo de vegetais de folha verde como os brócolos, espinafres, nabiças, couve portuguesa, agrião; de algumas sementes e frutos secos ou de produtos alimentares fortificados com esta vitamina e adaptados para este regime alimentar, como as bebidas, iogurtes e queijos vegetais. Garantir níveis adequados de vitamina D no organismo, através da exposição solar consciente ou de suplementação, ajuda na absorção do cálcio, o que se aplica a qualquer regime alimentar. Os ácidos gordos essenciais [ómegas 3 e 6] encontram-se em sementes como a linhaça e frutos como o abacate.
A alimentação vegetariana na infância e adolescência está já amplamente estudada e são cada vez mais os estudos que referem os benefícios associados a uma dieta 100% vegetal em qualquer faixa etária.
O ferro está presente em leguminosas e vegetais de folha verde e para ser mais facilmente absorvido pelo organismo podem ser utilizadas algumas estratégicas, como demolhar sempre as leguminosas e adicionar um alimento rico em vitamina C à refeição. Por último, a vitamina B12 deve ser garantida através de suplementação ou produtos alimentares fortificados aptos para vegetarianos, pois não conseguimos garantir níveis adequados através dos alimentos no seu estado natural.
Neste âmbito, se estivermos a falar de um bebé, como se considera essa alimentação?
No caso de um bebé amamentado, por exemplo, a suplementação que referi pode ser feita pela mãe, passando assim para o leite materno. Assim que o bebé inicie a alimentação complementar, é recomendado que se inicie a suplementação desta vitamina. É comum ouvir que a alimentação vegetariana não é natural pelo facto de termos de recorrer a suplementação.
Na realidade, todos nós, independentemente do regime alimentar que praticamos, suplementamos a vitamina B12, entre outras. Encontram-se à venda inúmeros produtos alimentares, vegetarianos e não vegetarianos, fortificados com esta vitamina. Níveis adequados desta vitamina em animais da indústria pecuária intensiva são possíveis porque a sua ração [alimentação] foi também ela fortificada. Por este motivo, considera-se a carne e os ovos como uma boa fonte desta vitamina. O que não significa que seja natural.
A Filipa é uma forte defensora da amamentação nos primeiros meses de vida. Hoje, assistimos a alguma pressão para substituir o leite materno por leites industriais. Presumo que seja liminarmente contra? Ou não?
A decisão de amamentar é pessoal e diz respeito a cada mulher. Não faço de todo julgamentos de valor a quem pense de forma diferente ou tenha tido experiências diferentes da minha. Apesar de ter decidido, e conseguido, amamentar o Lourenço em livre demanda até aos dois anos, há muitos casos em que por motivos vários as mães precisam de recorrer ao leite de fórmula. Para os vegetarianos, existem alternativas à fórmula de leite de vaca [ex. a fórmula de soja ou de arroz].
Pessoalmente, considero o leite materno como o alimento mais saudável e completo que posso dar ao meu filho nos seus primeiros anos de vida, e vejo a amamentação também como uma forma de afeto e mimo, ajudando a estabelecer uma ligação entre ambos. Por esse motivo, esforcei-me muito e procurei ajuda para conseguir estabelecer adequadamente a amamentação, pois ao contrário do que pensava antes do meu filho nascer, este processo não foi natural e intuitivo. Partilhando um pouco o nosso caso, se não estivesse convicta em relação a este tema, teria provavelmente desistido de amamentar nas primeiras semanas de vida do Lourenço.
A pressão social faz-se sentir nesta fase, e é normal desistir nas primeiras tentativas, principalmente quando estamos tão sensíveis do ponto de vista físico e emocional e as coisas não acontecem como idealizámos ou imaginámos. Acredito que se existisse mais apoio e informação adequadas nesta fase o número de crianças amamentadas através de leite materno seria superior.
Pessoalmente, considero o leite materno como o alimento mais saudável e completo que posso dar ao meu filho nos seus primeiros anos de vida, e vejo a amamentação também como uma forma de afeto e mimo, ajudando a estabelecer uma ligação entre ambos.
Ainda nos primeiros anos de vida do seu filho, a Filipa adotou o método Baby Led Weaning. Quer explicar-nos no que consiste?
A partir dos seis meses, comecei a introduzir outros alimentos para além do leite materno na alimentação do meu filho, num registo de Baby Led Weaning (BLW). De forma resumida, esta é uma forma de introduzir os alimentos sólidos sem a interferência do adulto, deixando o bebé livre para explorar os alimentos. Comecei por oferecer vegetais cozidos, como brócolos, cenoura, batata-doce, e frutas macias e maduras, como a banana, manga, pera, cortadas em palitos ou de forma que ele conseguisse agarrar e levar à boca.
Esta é uma forma de facilitar a descoberta dos alimentos, sendo que estes são apresentados ao bebé na sua forma real, para que ele os consiga identificar com mais rapidez. Se tudo o que oferecermos ao nosso bebé for transformado em sopa, papa ou puré, será mais difícil que ele faça a associação dos alimentos que tem no prato. O BLW permite também desenvolver com mais rapidez a autonomia do bebé na hora da refeição.
Tendo em consideração a nossa dinâmica familiar, optei por combinar o BLW com as sopas (e papas caseiras), dando sempre liberdade para que ele decidisse quando e quanto queria comer. Para além de ele adorar sopas e papas de cereais e fruta, esta é uma boa forma de garantir o aporte de nutrientes necessários para um bom desenvolvimento numa fase tão importante de crescimento. Importa também referir que durante todo este processo o meu filho continuava a ser amamentado em livre demanda, o que me tranquilizou no que diz respeito ao fator nutricional.
É fácil encontrarmos nos lineares produtos adaptados a estas idades ´tenras`, ou o ideal é optarmos por produção caseira?
Embora se encontrem cada vez mais produtos alimentares destinados a bebés e crianças com ingredientes naturais, interessantes do ponto de vista nutricional e pouco processados, é importante dedicar algum tempo na sua procura, não descurando a leitura das listas de ingredientes e informação nutricional. No entanto, se os pais tiverem possibilidade e interesse em explorar a confeção caseira, acho que esta é uma excelente opção. As papas e bolachas, por exemplo, são muito fáceis de confecionar em casa e desta forma conseguimos controlar a qualidade dos ingredientes utilizados.
A Filipa partia de uma posição vantajosa. Ou seja, há muito que adotou um estilo de vida vegan. É razoável numa casa onde não se pratica o veganismo introduzir esses princípios na alimentação de uma criança, sem que demos, pais, o exemplo?
Na minha opinião, não teremos o mesmo grau de sucesso ao oferecer certos alimentos aos nossos filhos, se eles não virem os pais a comê-los com prazer. Os bebés e crianças tendem a imitar o que os adultos fazem e no que diz respeito à alimentação não é de todo diferente. Se nos virem a comer fritos, fast food ou guloseimas, não é de estranhar que mostrem mais interesse neste tipo de alimentos e que torçam o nariz às frutas, aos vegetais, às sementes e às leguminosas. “Liderar dando o exemplo” é uma das minhas máximas para incentivar a hábitos alimentares saudáveis. Só dando o exemplo conseguimos influenciar positivamente os nossos filhos.
Embora se encontrem cada vez mais produtos alimentares destinados a bebés e crianças com ingredientes naturais, interessantes do ponto de vista nutricional e pouco processados, é importante dedicar algum tempo na sua procura, não descurando a leitura das listas de ingredientes e informação nutricional.
Podemos dizer, considerando a pergunta anterior, que pode ser uma alteração do paradigma de vida de toda a família?
Conheço inúmeros casos de famílias que mudaram os seus hábitos alimentares com a chegada de um filho. O facto de querermos o melhor para os nossos filhos possibilita alargarmos o nosso conhecimento sobre diversos temas, nomeadamente na alimentação. Mesmo que não tivéssemos até então grande interesse por aquilo que comíamos, é normal que um bebé nos incentive a procurar mais informação e a questionar determinados hábitos.
O filhote da Filipa está neste momento com dois anos. Ou seja, já revela as suas escolhas e encontra-se mais permeável à influência de outras crianças. Como reage ele?
Neste momento o Lourenço ainda não dá sinais de compreender as diferenças entre aquilo que comemos e aquilo que outras famílias comem. No entanto, não pede para comer um prato que contenha carne ou peixe, se o vir à frente, o que acontece em almoços/jantares com a família e mais recentemente na creche. Sei que não deve faltar muito tempo para que nos comece a questionar a esse respeito e acredito que na altura terei a resposta certa para lhe dar. Quanto à questão da influência, acredito que nestas idades eles ainda são mais “influenciáveis” pelos pais do que por outras crianças.
Aplicando-se, como está a ser a interação escolar no que respeita à alimentação?
O Lourenço entrou este mês na creche e até ao momento não me posso queixar no que diz respeito à alimentação, principalmente comparando com o que acontece na grande maioria das escolas. A creche disponibiliza um menu vegetariano para o almoço e dois lanches, sendo que um deles contém lacticínios (papa ou iogurte). O que temos feito neste caso é levar uma papa caseira/iogurte vegetal para ele de casa. No que diz respeito ao almoço, poderá acontecer que as refeições contenham lácteos ou ovos e neste caso ou a creche prepara uma alternativa sem estes produtos ou levamos de casa a refeição para aquele dia. Na primeira semana que ele passou na creche, o menu do almoço foi sempre 100% vegetariano.
Filipa, ser vegan não se resume apenas à vertente alimentar, é uma forma de estar na vida. Como se transporta esse todo para a prática de cuidador/a de uma criança de tenra idade?
No que diz respeito ao nosso lifestyle enquanto família vegan, não compramos roupa, calçado ou acessórios com peles e materiais de origem animal. No que diz respeito aos produtos de higiene [pasta de dentes, champô, creme para muda de fralda, hidratante], escolhemos produtos sem ingredientes de origem animal e não testados em animais [vegan friendly]. Em relação à medicação, se não encontrarmos uma alternativa válida recorremos à medicação convencional. Felizmente, só muito pontualmente precisamos de o fazer. Levou vacinas, porque consideramos que esta é uma questão que se sobrepõe a qualquer ideologia ou desejo de não contribuir para a exploração animal. Não vamos com ele a zoológicos, oceanários ou quintas pedagógicas e não assistimos a “espetáculos” que utilizem animais, como os circos e touradas. Em alternativa, promovemos o contacto dele com a natureza e o respeito para com todas as formas de vida.
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