Estamos tão habituados a consumir vinho, que não pensamos nele como um corpo vivo. As colheitas sucedem-se e os vinhos podem ter o mesmo rótulo, mas não são iguais. E parte dessa ciência começa precisamente na vinha, e nos cuidados que lhe são administrados.
Niepoort é, atualmente, um nome incontornável no mundo dos produtores de vinho. Mas a sua história é muito recente nesta área. Até à quinta geração, eram apenas comerciantes de vinho do Porto. Foi Dirk Niepoort que mudou o paradigma, sendo também um dos pioneiros na produção de vinho do Douro. A primeira quinta adquirida foi a de Nápoles, perto da Régua, com 15 hectares, somente em 1987. Hoje em dia, a Niepoort é muito mais do que produtor do Douro. De norte a sul do país, lá está a partilhar o savoir-faire adquirido ao longo de anos.
Dirk Niepoort quebrou com dogmas e conceitos instalados. Mas há já uma sexta geração a fazer o seu caminho, mais precisamente na figura de Daniel Niepoort, que com a sua simpatia, nos recebe na Quinta de Baixo, em pelo coração da Bairrada. Daniel é uma pessoa simples, que cresceu no mundo do vinho, mas é um jovem cheio de ideias e que assumiu a direção de enologia das quintas nos últimos anos. É ele e Sérgio Silva, o enólogo da Quinta de Baixo, que nos fazem a visita pelas propriedades, num dia de calor tórrido de julho. A acompanhar-nos está Pisca, a cadela de Daniel, que também sabe bem receber os seus convidados. Muitas vezes, é ela que lidera o caminho entre vinhas, e é cada vez mais uma figura conhecida por todos os que conhecem a família e o universo Niepoort.
Na Bairrada, e sobretudo na Quinta de Baixo, as castas dominantes são Maria Gomes, Bical, Cerceal ou Rabo de Ovelha, nas brancas e Baga, Castelão, algum Pinot e um pouco de Syrah, nas tintas. A ideia da Niepoort, também para esta região, são vinhos leves e pouco alcoólicos.
“Quando se provam os vinhos sente-se muito o giz. É um solo calcário, característico da região”, explica Sérgio Silva, enólogo da Quinta de Baixo.
Dirk Niepoort comprou esta quinta em 2012. Mas desde 1992, 20 anos antes, que tinha a Bairrada debaixo de olho, região que considera ter um de enorme potencial. A sua grande inspiração era a casa Dores Simões e os seus vinhos elegantes, e após um desafio da produtora Filipa Pato fez um vinho fortificado, em 2010. Dois anos depois avançou com a compra da Quinta de Baixo, com 22 hectares.
A Sérgio Silva deu a tarefa de converter as propriedades num modelo de agricultura biodinâmica. E é possível perceber-se na visita às vinhas. Quando há equilíbrio na natureza, as coisas funcionam melhor, respeitando os seus ciclos. É verdade que evoluímos bastante, mas foi preciso chegar-se ao século XXI para se perceber que quanto mais simples melhor. E que, se calhar, antigamente é que era bom.
Assim, fazem rotação de sementeiras, importantes para a vinha, de forma a ajudar na regeneração do solo, ao mesmo tempo que o vai equilibrando, dando-lhe os nutrientes e a biodiversidade vegetal e animal necessária para que funcione.
O solo é muito calcário, o que o torna muito seco no verão. Mas, com a chegada do outono, volta tudo a ficar verdejante. “Isto antes era tudo mar e ainda hoje existe aqui uma vala hidráulica que vai desaguar na ria de Aveiro”, explica Sérgio Silva.
Não é estranho ter ovelhas a pastar nas vinhas durante o ano. Este “exército” garante o controlo de ervas, ao mesmo tempo que produz fertilizante natural. Uma integração de ecossistemas. A verdadeira máxima de quanto mais simples melhor. E não há nada mais simples do que respeitar os ciclos da natureza.
Um dos pontos da visita é a passagem por um lote com 1,8 hectares, que dá origem ao ex-libris da Quinta de Baixo, o Lote D. Curiosamente, esta vinha, na realidade, tem o formato de um L. Daqui também sai uma parte para o Poeirinho. E o que faz destas vinhas e deste vinho algo tão especial? O facto de as vinhas terem perto de 150 anos. O antigo dono, hoje com mais de 90 anos, ainda é vivo e é o próprio enólogo da Quinta de Baixo quem está a documentar essa história, com a sua ajuda. Algo tão raro que é difícil de acreditar. E é isso que parece distinguir estas vinhas velhas de outras: a oportunidade de se saber quais as razões que a levaram a ser assim – a forma como foi plantada, a envolvente, as castas escolhidas, a forma como se fazia o vinho a partir daqui, plantada pelo avô e pelo pai do antigo proprietário.
“O lote era feito na vinha, na plantação, e não na adega. Temos aqui 95 a 96% de Poeirinho (Poeirinho era o nome antigo da casta Baga na região). Depois eram misturados com 2 a 3% de uva branca e 2 a 3% de outras uvas tintas. E o que estas misturas faziam? Davam o equilíbrio da harmonia da Baga, que é uma casta muito rija, e punham essas uvas para amaciar o vinho”, explica Miguel Silva, responsável pelo núcleo de enologia da Quinta de Baixo.
Pela sua disposição, percebemos que estamos numa vinha diferente das que a circundam. Começando pelo facto de as mesmas serem em pé de galo e sem qualquer tipo de alinhamento, o que impossibilita o recurso à mecanização. Aqui, os trabalhos são manuais, feitos por uma equipa específica que foi formada de acordo com a filosofia da Niepoort. E sabemos que hoje em dia esta é uma realidade cada vez mais rara se pensarmos que esta é uma das áreas onde a mão de obra mais escasseia.
Por todas estas razões, o Lote D é um vinho de terroir muito específico - todas as suas características organoléticas refletem a vinha de encosta virada sul, com muito calcário. Tem pretensões de ser um tributo aos grandes vinhos bairradinos do passado: leves na cor e no grau alcoólico, mas com enorme potencial de envelhecimento.
A grande paixão que Dirk e Daniel Niepoort têm por este vinho fazem com que seja especial. Todos os anos, esta vinha é vindimada e vinificada em separado.
Mais à frente, nova paragem. Há uma frase marcante de Dirk Niepoort que resume a filosofia da empresa: “Nós aprendemos com o passado. Trabalhamos para o futuro”. E é isso que encontramos, num dos projetos mais arrojados da Niepoort: uma vinha nova, velha. Sim, não é engano. Aqui está uma vinha nova, cultivada de uma forma particular, cujo objetivo é tirar o seu maior potencial daqui a várias décadas. Esta vinha foi feita de forma a assemelhar-se às antigas vinhas da Bairrada, em altura.
Um presente para uma geração que ainda está para nascer – Daniel ainda não tem filhos. E talvez seja loucura pensar-se a tão longo prazo, mas não é algo de estranhar para quem conhece a forma de trabalhar da Niepoort. De alguma forma, a marca parece estar sempre à frente do seu tempo.
A visita termina com um almoço de leitão – ou não estivéssemos na Bairrada – acompanhado pelos vinhos da Quinta de Baixo.
Fique a conhecer a melhor cada vinho.
Água Viva espumante 2016
Espumante feito a partir da casta tinta Baga. A cor tem uma tonalidade muito leve de uvas tintas e a bolha é fina e persistente. No nariz, é delicado e muito expressivo. Tem notas de frutos vermelhos, como cereja e groselhas, nuances florais e de ervas frescas, e um toque de brioche e avelã, que o tornam mais sério. Na boca é equilibrado. É estruturado, num perfil elegante, leve, delicado e brilhante. Termina longo, com boa acidez e persistência.
Gonçalves Faria branco 2015
Com uma cor violeta de ligeira concentração, o aroma é muito fino, profundo e complexo. Notas de frutos do bosque em harmonia com um intenso perfil mineral, características da casta Baga, onde as notas de giz saltam do copo, expressando todo o terroir das vinhas. Embora muito jovem, impressiona pela harmonia, com os taninos finos envolvidos em notas de fruta fresca. De enorme estrutura e potência, todo o conjunto é delicado, elegante e muito fino, graças à frescura da fruta e à excelente acidez. Final refrescante, salino e muito focado no terroir de calcário. Um vinho para beber em novo e sentir a sua harmonia, mas com potencial de envelhecimento.
Gonçalves Faria branco 2016
Mostra um aroma mineral muito fino, austero, pleno de notas de limão muito frescas, em boa harmonia com um ligeiro fumado. Com um bom volume de boca e estruturado, tem boa presença no palato. A elevada acidez equilibra o conjunto, num perfil fino e refrescante. Final de boca longo, marcadamente mineral. Irá evoluir bem em garrafa.
Lagar de Baixo tinto 2018
Com uma cor rubi, apresenta um aroma fresco, pleno de frutos vermelhos e especiarias.A fruta é muito fresca e vibrante onde expressa o terroir das vinhas. Na boca, sente-se a fruta e a frescura da casta Baga com um final longo. O Lagar de Baixo é um vinho que se deixa envolver.
Lote D branco 2017
Este vinho reflete a frescura e o caráter delicado que define a Niepoort num ano tão quente e seco. Apesar de jovem, apresenta um equilíbrio impressionante e taninos finos. O nariz é a reflexão pura da casta Baga, com notas florais, de frutos silvestres, fumadas e coriáceas que complementam o caráter com tons de giz reminiscente do terroir das vinhas. Na boca, apresenta uma estrutura e sofisticação incríveis. A fruta vibrante e a excelente acidez produzem um vinho delicado, elegante e excecionalmente fino. O final é refrescante, salino e expressa claramente o seu terroir calcário. Este vinho pode ser apreciado enquanto jovem, exibindo a sua harmonia, mas também promete um grande potencial de envelhecimento.
Poeirinho Garrafeira 2015
Mostra uma cor em tons violeta. Nariz de enorme complexidade, muito expressivo nas notas de frutos vermelhos, algumas especiarias e com um lado floral muito fresco. A pureza de aromas e a sua enorme frescura impressionam. O terroir calcário vibra no aroma e potencia a elegância e finesse da casta Baga. Na boca, é muito fino, complexo e de enorme precisão. Muito polido e com uma excelente acidez, mostra uns taninos muito delicados. Pleno de caráter, este Garrafeira tem um bom equilíbrio. Final de boca refrescante, mas muito longo e fino, vai crescendo à medida que se vai provando. Elegante, mas profundo, este vinho irá envelhecer muito bem em garrafa.
VV Vinhas Velhas Branco 2018
Vinhas centenárias de Bical e Maria Gomes. Tem origem nas características vinhas velhas da Bairrada. A cor é levemente citrina e brilhante. No nariz é discreto, com notas de citrinos, alperces, nozes, e nuances florais de ervas frescas que lhe conferem complexidade e sofisticação. É um branco sério e distinto. Na boca apresenta estrutura, elegância, acidez e salinidade. Termina longo, persistente e picante.
Nat Cool 2020
Leve na cor, mostra um perfil fresco e floral, muito franco e expressivo. O caráter da casta Baga está bem presente, com boas notas de morango, rosas secas e algumas especiarias. O aroma mineral, remete-nos para o calcário e para um clima marcadamente atlântico. Fresco, direto e sedutor, é um vinho que não pesa, que se deixa beber com facilidade. Versátil na ligação com a gastronomia.
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