No dia em que a mãe de Carlos Afonso, visitou o restaurante O Frade, não se sentou à mesa do enorme balcão em forma de U com capacidade para acolher 16 comensais. A mãe do chefe de cozinha d´O Frade, arregaçou mangas, fez-se à copa e preparou um tacho de favas, apaladas pelo chouriço e toucinho fritos. Carlos, 33 anos, a par do primo Sérgio Frade, 37 anos, sócios no restaurante de portas abertas há meia dúzia de meses, agradeceu o comer de conforto e aconchego da mãe. No dia que se seguiu, as favas emparelharam com o restante elenco na carta desta casa de comeres alentejanos, à beira Tejo, na Calçada da Ajuda em Lisboa.
Este breve apontamento de abertura serve para ilustrar aquilo que Carlos e Sérgio, trazem para animar a alma deste O Frade, com cozinha simples, mas com sabor, reconfortante e com apego pelas origens. No caso vertente, o do duo de protagonistas, reminiscências da cidade de Beja e de uma casa fechada há perto de 20 anos, o restaurante de nome homónimo, O Frade.
Carlos recebe-nos ao balcão do seu restaurante lisboeta. Espaço de decoração despida do desnecessário. O balcão, já aqui ilustrado, é a peça central. Convida à cumplicidade entre os comensais. Não falta a azulejaria trigueira de inspiração lusa, as fotografias de talhas de dimensão épica, e um ´velhinho` rádio Philips, a recordar-nos que as memórias também entram nos modernos restaurantes e que uma pontinha de nostalgia também pode caber numa ementa.
Memórias não faltam a Carlos que recorda a infância alentejana. “Brincávamos na rua, eu, e o meu primo. No restaurante, recordo-me, dos `despiques` no final das refeições, com o Cante Alentejano, entoado pelos homens”. O nosso interlocutor também aprendia a cozinhar com a mãe. Carlos voga em palavras para a infância e para a juventude. Depois, quis “ganhar mundo” e fez-se à estrada. “Andei pela Bélgica, Holanda, País Basco”. Trabalhou com chefes de cozinha de nomeada, como Hans Neuner, no Ocean, no Algarve, Alexandre Silva, no Marmóris, em Vila Viçosa e em Espanha, no Azurmendi, com Eneko Atxa.
Chegada a hora de ter o seu negócio próprio, Carlos associou-se a Sérvio Frade e vice-versa, naturalmente. O primo, para além da herança familiar ligada ao restaurante O Frade, em Beja, trazia um histórico associado aos vinhos, mais concretamente aos de Talha. Neste ponto, a narrativa entronca no avô de Sérgio. Conta-nos Carlos: “Quem tinha tabernas sabia fazer vinho e, naquela zona destacava-se Vila de Frades. Os avós do meu primo compraram casa na Rua da Biscainha e abriram uma taberna. Isto em 1966.
Na época, as pessoas levavam os seus petiscos para acompanhar com o vinho. Nos anos de 1990, já era uma casa de pasto e, depois, fez-se restaurante. Quando o restaurante fechou o meu tio [pai de Sérgio], restaurou um monte alentejano da família e começou a produzir vinho”. Uma atividade que, na altura, tinha um caráter familiar, para consumo próprio, “e onde nos juntávamos para grandes almoços”, recorda o nosso anfitrião.
Hoje, os vinhos com a assinatura Do Frade, todos exclusivamente produzidos em talhas, provêm de três terroirs diferentes, em Beja, Vila de Frades e Mangancha. A empresa cresceu e das três talhas iniciais, chega a este 2019 com 40 talhas. Destas verte uma produção anual de 15 mil garrafas. Néctares que nos são dados a provar neste O Frade, em Belém.
Degustamos um trio de vinhos a emparelhar com a cozinha de raiz alentejana, mas onde não faltam os retoques conferidos por Carlos Afonso. Nos copos verte um branco de 2016 D. Alice (em homenagem à mãe de Sérgio), das castas Arinto e Antão Vaz, com estágio de seis meses em talha, igual tempo ao descanso que é dado ao Escolha DOC, também um branco, de 2016 e ao 1856 DOC branco, este proveniente de uma talha do ano correspondente ao inscrito na designação do néctar.
Venha, então, a comida. E é boa, diga-se de passagem. Carlos pensou na infância, pesou a experiência adquirida e olhou para o panorama da restauração lisboeta. “Considerámos que há pouca oferta de cozinha realmente tradicional”. Um bom pretexto para, sem invenções desnecessárias, nos apresentar uma carta comedida, flexível no que aos produtos respeita.
O pão, robusto, vem do Alentejo, assim como os queijinhos, enchidos e azeitonas. Prólogo para pratos como os ovos com muxama (8,50 euros), cremosos e com boas lascas de atum. Não falta à convocatória as Lulas com grão (8,00 euros), de bom tempero, e uma “Galinha acerejada” (7,50 euros). Quem já provou uma galinha corada sabe como estamos perante um prato de aproveitamento. Explica-nos Carlos: “Antigamente todas as famílias tinham a sua capoeira e havia a galinha poedeira. Como envelhecia, ficava com uma carne rija. Era, então, cozida durante horas e servia para a canja. Como não havia métodos de conservação pelo frio e a carne da galinha era consumida dias a fio, uma estratégia passava por fritá-la, depois de regada com vinagre, para lhe disfarçar o sabor”.
Aqui n´O Frade, o sabor da galinha não tem de ser disfarçado. Carlos leva-a ao forno e dá-lhe uma boa entrega de alho e azeite. Não falta a golpada de vinagre. O resultado é um assado muito agradável e reconfortante.
Ainda nas carnes, um dos preferidos do chefe de cozinha, o Arroz de Pato (11,00 euros). No caso vertente, a chegar-nos à mesa caldoso, de sabor envolvente e guloso. Diferente da cartilha dos arrozes de patos convencionados, mas nem por isso menos interessante.
Ainda no que ao cardápio respeita nesta casa de tempero alentejano, destaque para os Ovos com túbaras, a Papada à Alentejana (6,00 euros), o Coelho de coentrada (9,00 euros) e o Faisão de escabeche (9,00 euros). Não estranhe o leitor se e quando visitar este O Frade, se deparar com uma novidade na carta. Carlos e Sérgio não querem estar presos a um menu pouco flexível. Isto, embora não abdiquem de alguns acepipes indissociáveis dos comeres da planície. Que o digam a Encharcada (3,50 euros) ou o Requeijão com marmelada e mel (3,50 euros) que nos chegam à mesa. Pedem bis, assim como a Mousse com hortelã da ribeira (3,80 euros). É tradição, mas não finta o pé à inovação.
Comentários