Situemo-nos espacialmente: Mercado da Ribeira em Lisboa, em concreto a praça de alimentação do Time Out Market. Agora, centremo-nos no tempo: uma terça-feira de abril cerca das 13h30. O entorno: Casa apinhada em tonitruante algazarra, em modo discussão parlamentar (estas duas últimas palavras valem muitas imagens). Sabe quem conhece este espaço, não o Parlamento, mas o Time Out Market, que afirmar aqui lotação esgotada é apontar soma a umas largas centenas de comensais. Todos eles, em determinadas manobras para suprir um dos princípios elementares da sobrevivência, comer.
Ora, é da condição humana refinar os impulsos primários por diversas razões, como sejam o pudor público e a coesão social. E se há campo nestes ímpetos básicos onde a Humanidade elaborou é precisamente o da cozinha. Aqui, há quem o saiba fazer bem mesmo quando entra no clube da comida de food hall, simples, prática e sem grande fogo-de-artifício. O que não invalida levar para a mesa cozinha desinteressante, monótona e sem singularidade.
Podemos aqui juntar à prosápia que nos há de levar ao cerne deste artigo, um adágio popular que se aplica a quase todas as configurações da existência comunitária: “a galinha da vizinha é (sempre) mais gorda do que a minha”. E, ao que parece, é um princípio universal quando cai o olho sobre o prato do vizinho.
Isto mesmo se passou quando o articulista desta peça almoçava à hora já indicada, no também já referido lotado mercado, tomado por estes meses pré canícula por hordas de insaciáveis nacionais e estrangeiros devoradores de Lisboa. Comedores de todas as cozinhas, formatos, cartas sazonais e petiscos que a capital tem atualmente para oferta gustativa.
É certo que no caso vertente, sobre o prato, não descansava nenhuma galinha, antes a tenrura da carne de uma barriga de porco confitada, acompanhada com puré de ervilhas e couve pak choi (15,50 euros), sucedendo a um peixinho do dia, salteado de rebentos de soja, couve, cenoura, cogumelos e espargos (9,80 euros).
Por três vezes sentiu-se o presente escrevinhador vigiado pelos vizinhos do lado. Um ombro com ombro à mesa que incluía um olhar interessado sobre o conteúdo que descansava no prato, avançando deste para a etapa seguinte, a alimentar. “Onde foi buscar a comida?”, soou com curiosidade por três vezes, com a pronuncia de três línguas distintas: italiano, espanhol e francês.
Invariavelmente soltou-se a resposta, apontando para uma das fachadas que extrema o mercado, mais concretamente para o balcão de canto de onde tinha viajado a barriga de porco, o peixe do dia, assim como uns quentinhos e apaladados Pimentos padron com flor de sal (6,00 euros), uns queijos e compotas caseiras com pão em dose variada e bem nutrida (9,50 euros) e uma sopa de legumes da Ribeira (2,00 euros), esta a recordar que até num simples creme se pode acrescentar uma boa pitada de alma.
A resposta à curiosidade carecia, apenas, de dois nomes Alexandre Silva. Aqui, no bulício do Time Out Market, o chefe de cozinha não é a estrela Michelin do LOCO, não é a cozinha experimental que elaborará no novo espaço que se prepara para abrir, o I+D; nem o homem que recentemente se atreveu a produzir queijos, dos bons, no seu restaurante.
Alexandre Silva é, aqui, no Mercado, Alexandre Silva inscrito, desde 2014, na placa que orla o topo do balcão. Nestes pouco mais de 15 metros quadrados de cozinha está a casa mãe do chefe apaixonado pela redescoberta do produto português. Foi aqui que Silva, nascido na Abrigada, no concelho de Alenquer, deixou a sua primeira assinatura sem a subscrever sob a de terceiros.
Isto depois de ter consolidado estudos na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa e de um fulgurante arranque profissional no restaurante Bocca (de 2007 a 2012) e, mais tarde como Chefe Executivo no Alentejo Marmóris Hotel & Spa como Chef Executivo e no Bica do Sapato.
Na Ribeira, Alexandre Silva não conforma a sua cozinha ao facilitismo de argumentar o ambiente descontraído e veranil. Nem tão pouco relaxa no investimento na infraestrutura da cozinha para preparar uma ementa contida no número de pratos, perto de dez principais mais três sobremesas e umas quantas entradas.
Ainda há poucos meses, Alexandre e a sua equipa num golpe de eficiência alteraram em 48 horas a imagem e os equipamentos da copa deste balcão no Mercado Time Out. Juntaram-lhe, ainda, uma garrafeira com uma boa amplitude de referências de vinhos nacionais.
Néctares servidos a copo que emparelham com uma carta pouco dada a mudanças. O que não é o mesmo que dizer uma carta reacionária. Mesmo quando levamos à mesa uma Hamburguesa ela chega-nos em modo Alexandre Silva, ou seja, é de carne de boi, traz queijo da Ilha, compota de cebola roxa e batatas fritas rústicas (9,80 euros). E, tal como a Tiborna de bacalhau com ovo escalfado e pimentos assados (9,90 euros) ou o Pica-pau de atum, batata-doce, mel, pickles e Kimchi [condimento coreano], é-nos apresentada irrepreensivelmente empratada. E sabe bem sermos mimados com cozinha bonita mesmo quando sob os pratos e talheres temos um tabuleiro.
Melhor ainda quando se fecha a refeição com uma dupla de sobremesas de dose generosa e sem o constrangimento de as receber em mãos dentro de um copinho de plástico. Neste caso um abrir de mesa doce com uma Banana caramelizada com espuma de crumble de amendoim e tofee (4,00 euros), para passar a um Bolo húmido de chocolate com amarelo salgado e gel de lima (4,00 euros). Bem apresentado e de sabores em bom equilíbrio. Se pesa na consciência a alarvidade calórica deste fim de refeição? Sim, mas se é para estragar dietas que se faça com bom gosto e com carácter alimentar.
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