Contar a história gastronómica da Madeira com recurso a produtos tradicionais da ilha que o viu nascer. É isto que Octávio Freitas tenta fazer diariamente no Desarma, que abriu portas em janeiro de 2023, e classifica como um dos seus projetos de vida. A paixão e o fascínio pelos sabores e matéria-prima da região foram o motor para se aventurar na criação deste restaurante de fine dining localizado no hotel The Views Baía e que, dentro de pouco tempo, lhe valeu aquele que é o galardão mais cobiçado pelos chefs de cozinha: uma estrela Michelin conquistada em fevereiro de 2024.

Seja à mesa ou ao balcão, todos os clientes que passarem pelo Desarma vão poder vivenciar uma experiência gastronómica que rapidamente se transforma numa verdadeira lição de História onde, através de cada prato, são convidados a descobrir a genuína cozinha desta ilha com 500 anos de história situada no centro do Oceano Atlântico. “Quando eu penso na Madeira e penso em gastronomia eu não penso num prato. Não consigo pensar num prato”, afirma Octávio Freitas, de 42 anos, que considera que a verdadeira gastronomia madeirense não se revê na tradicional refeição de garfo e faca onde, frequentemente, o bolo do caco, a poncha e a espetada assumem o papel principal. Na sua opinião, esta reside nos petiscos típicos, mas pouco afamados que podem ser desfrutados em pé e sem talheres nas várias tascas e bares espalhados pelo arquipélago.

Chef Octávio Freitas Desarma
Chef Octávio Freitas Desarma créditos: Tiago Maya

Nestes estabelecimentos locais, é possível comer os famosos dentinhos – petiscos de vários tipos servidos em pequenos pires e com um palito –  que, de tasca para tasca, podem alternar entre galhas de espada frita, atum de cebolada, carne em vinha d'alhos ou macarrão frio. Todos eles são servidos como manda a regra: com pão, papas de milho e um copo de poncha, bem cheio, a acompanhar. Tal como explica o chef, as tascas madeirenses são uma tradição praticamente centenária que, devido à inexistência de restaurantes na região durante o século XX, serviam de local de refeição e de convívio aos madeirenses e onde era possível comer estes snacks reforçados a qualquer altura do dia.

“Isto servia de pequeno-almoço, servia de lanche e servia também de alternativa ao brunch madeirense. Este é o verdadeiro brunch madeirense. Hoje em dia, pela ilha toda, consegue-se encontrar este género de gastronomia que acontece mais desta forma do que propriamente no prato”, refere sobre estes petiscos que eram feitos com uma base de cebolada, especiarias e regados com molho vilão. Para as classes mais pobres, existia uma versão low-cost, composta apenas por meio pão com molho, que era vendida em tabuleiros nas ruas do Funchal.

Consciente do forte potencial e da pouca divulgação destas iguarias que, à semelhança de tantos madeirenses, marcaram a sua infância e juventude, Octávio Freitas desafiou-se a trazê-las para a mesa do Desarma com uma abordagem mais moderna, criativa e refinada e, desta forma, proporcionar uma viagem repleta de sabor, tradição e autenticidade a todos aqueles que o visitam.

Um restaurante que, da decoração ao conceito gastronómico, quer desarmar os clientes

Restaurante Desarma
Restaurante Desarma créditos: Henrique Seruca

Ao fim de 16 anos como Chef Executivo do The Views Hotels, que é considerado o maior grupo hoteleiro da ilha da Madeira, a pandemia foi a tempestade perfeita para a concretização de um sonho antigo: a abertura do seu primeiro restaurante no rooftop do The Views Baía. Desarma foi o nome escolhido para este espaço que nasceu no 9º piso deste hotel de quatro estrelas que se distingue pelo seu carácter muito próprio. O primeiro elemento diferenciador é a decoração da sala principal, em tons de verde, acobreados e amadeirados, que nos transporta para o interior de um bananal. O projeto de interiores foi entregue a Nini Andrade Silva que também teve a missão de desenhar uma cozinha, de formato octagonal e com cerca de 100 m2, que desse a Octávio Freitas o espaço e condições necessárias para cumprir a máxima do Desarma: nada se compra, tudo se transforma. “Fazemos o pão, fazemos os vários tipos de manteigas, fazemos os enchidos, fazemos os presuntos, os bombons, os gelados… Todos os processos são transformados por nós”, diz, aludindo a esta necessidade muito concreta.

De forma a fazer a diferença no seu primeiro projeto de restauração, Octávio Freitas apostou num conceito diferenciador, onde pudesse dar a conhecer uma Madeira que, apesar de não existir nos guias turísticos, podia ser experienciada à mesa através das criações da sua autoria que, dado o pouco receituário do arquipélago, se centraram no produto. Munidos de Sentidos (6 momentos, 175€ por pessoa sem harmonização), A Batalha do Chef (9 momentos, 195€ por pessoa sem harmonização) e Bancada do Chef (12 momentos, dos quais três são improvisados de forma a surpreender o cliente, 275€ por pessoa sem harmonização) são os três menus disponíveis onde o desafio é desarmar os clientes com cada prato e deixá-los sem palavras com cada garfada que põem à boca. “É uma batalha sem pólvora, uma batalha de sentidos travada na boca. O que vai acontecer é muito à volta dos sabores, dos aromas e é uma batalha tranquila, amiga.”

Cozinha Desarma
Cozinha Desarma créditos: Henrique Seruca

A Bancada do Chef é uma experiência premium que tem a particularidade de ser servida ao balcão e permite ver Octávio Freitas em ação em tempo real e onde os seus pedidos são ordens para a sua equipa de 11 cozinheiros que respondem, sem hesitar, ‘Sim, Chef’ a cada um dos seus comandos. É a eles que confia a responsabilidade de confecionar os cerca de 30 jantares para os quais é difícil arranjar reserva desde que entraram para o Guia Michelin. Um feito alcançado no espaço de um ano e que espera duplicar muito em breve. “Na primeira reunião sentei toda a gente e disse: ‘Quero uma estrela’. Logo. E quando ganhei uma cheguei aqui e disse a toda a gente ‘Quero duas’”, conta sobre esta ambição pessoal que também se tornou numa ambição coletiva da equipa com quem trabalha diariamente.

Tem crianças? Pode deixá-las no Kid’s Club do Desarma

De forma que os clientes com filhos possam desfrutar da sua experiência gastronómica de forma tranquila, o restaurante criou um Kid0s Club. Localizado junto à cozinha, este espaço criado a pensar nos mais novos oferece várias opções de diversão, como é o caso de jogos e uma piscina de bolas insuflável. Os pais que requisitarem este serviço- que carece de reserva obrigatória - não têm de se preocupar com refeições uma vez que existe sempre uma baby-sitter a supervisionar estes clientes de palmo e meio. A melhor parte? É totalmente gratuito e não existe restrição de idades.

Jantar no Desarma é, também, uma oportunidade para descobrir a origem e a história dos sabores e produtos tradicionais que distinguem e caracterizam a Madeira. Esta é uma história que começa na casa dos madeirenses, nas tascas, nas festas populares e salta para o prato com uma apresentação fine dining. Em cada momento, o chef português resgata para o presente factos e curiosidades que não devem ficar de fora para quem quer conhecer as tradições gastronómicas e as técnicas de confeção tão características deste arquipélago. “Aquilo que eu quis fazer no Desarma foi desarmar um bocado esta questão da tradição, mas de uma forma que também não fosse demasiado presunçosa ou que não fizesse sentido. As histórias são para se contar iguais a elas próprias.”

Bancada do Chef: 12 momentos, alguns improvisos e muitas histórias para ouvir na primeira pessoa

Bancada do Chef Desarma
Bancada do Chef Desarma créditos: Tiago Maya

Na Bancada do Chef embarcamos numa viagem gastronómica composta por 12 momentos que se dividem em quatro capítulos: Encontro (momento 1, 2 e 3), Ofensiva (momentos 4, 5, 6, 7 e 8), Ataque (9 e 10) e Rendição (11 e 12). No “Encontro” o chef brinda-nos com um conjunto de finger food que  podem ser comidas em uma ou duas dentadas: começamos pelo Atum Curado (espetada de atum com biscoito de folha de louro e creme alho assado), passamos para as Lapas Secas (bolacha de lapas em pó e gel de cogumelos com tártaro de novilho) e, por fim, para as Ovas de Espada (bombom de ovas de espada, com miga de centeio, molho vilão e uma lâmina de gaiado). “Estes três snacks representam uma coisa que eu gosto muito aqui na Madeira: que é uma comida sem garfo, sem faca e que se come de pé. Aqui não temos garfos também, a diferença é que estão sentados, mas podiam comer de pé”, declara.

Cada um deles remete-nos para os sabores e petiscos que caracterizam as festas populares da Madeira e onde a espetada em pau de louro é presença assídua. Esta surge representada no corte de atum - fumado em tempo real - e cujo sabor se assemelha à carne degustada neste tipo de celebrações religiosas, onde as vacas estão penduradas à beira da estrada em barracas forradas com folhas de louro provenientes da floresta Laurissilva. E como se encontrava a melhor proteína? Octávio Freitas explica: “Íamos parando nas barracas e o tipo da barraca cortava um bocadinho de carne crua. Provamos a carne crua, com o sal e com o louro, e íamos de barraca em barraca para ver qual era a mais tenra.”

A Vieira (servida com creme de aipo e chocolate branco, uma emulsão de vinho branco e baunilha e topping de pota frita) e o Carabineiro (com geleia de maracujá e plâncton) inauguram a “Ofensiva”. “Este era um dentinho dos arraiais. O meu avô levava isto dentro do bolso, ia parando nas tascas todas, tirava a pota, com a faca cortava uma fatia, dava uma a cada um, pegavam no copo de vinho e comiam a pota”, recorda sobre este molusco da família da lula. “Lembro-me que, em Câmara de Lobos, toda a gente no estendal tinha pota de uma ponta à outra”, conta, entre risos, sobre a sua secagem que era feita na casa dos madeirenses e indispensável nos períodos festivos. Na versão recriada no Desarma a pota, depois de seca, é cortada às tiras finas e frita. De acordo com o chef, este é dos pratos que mais surpreende os clientes devido à sua combinação inesperada de sabores e texturas onde o doce, o salgado e o crocante convivem entre si.

O Carabineiro (com geleia de maracujá e plâncton) traz o sabor a mar para o menu. Este é cozinhado a baixa temperatura com pickle, vários tipos de algas e plantas e uma maionese feita com gelatina de cabeça de cherne e plâncton. Com as cascas e cabeça do carabineiro nasce uma telha que, depois de tostada, é servida com pó de tomate e leitão.

Bancada do Chef Desarma
Bancada do Chef Desarma créditos: Tiago Maya

O pão com molho de cebolada surge à mesa do Desarma através do momento do Pão de Trigos Ancestrais. Este é composto por uma opção de massa-mãe e fermentação lenta feita com 50% centeio e 50% de trigo integral produzido na ilha da Madeira acompanhada por um caracol de cebola caramelizada, manteiga envelhecida durante quatro dias, banha de porco de vinha d’alhos e redução de cebola. A este momento junta-se a secção dos Presuntos Marítimos que reúne diferentes enchidos do mar, secos e fumados servidos em lascas, onde o espadarte e a barriga de lírio convivem com o chouriço de barriga de atum envolta em especiarias e ao rabo de katsuobushi envelhecido. Destaca-se ainda o Gaiado – um tipo de peixe seco da família do atum que ainda é servido nas tascas em forma de petisco – cujo processo de secagem e fumagem caiu praticamente em desuso, mas foi resgatado no Desarma.

“Isto é recuperar um pouco uma coisa que havia na Madeira: a cura. Isto tinha a ver com o processo de conservação do pouco peixe que havia. No Caniçal tínhamos os gaiados, em Câmara de Lobos tínhamos as gatas, que é da família do tubarão e era chamado o bacalhau de Câmara de Lobos”. O chef classifica esta etapa como “um momento tipicamente português” uma vez que reúne quatro elementos que nunca faltam à mesa: pão, azeite, manteiga e enchidos. “Este é dos momentos mais complexos tecnicamente para a cozinha. Isto não daria trabalho se comprasse a manteiga, os enchidos [já feitos]”, adianta sobre este momento que só é feito ao balcão.

Bancada do Chef Desarma
Bancada do Chef Desarma créditos: Tiago Maya

A produção do Galatrixa e do Cagarra – dois D. O. P. Madeirenses com a assinatura de Octávio Freitas – despertarem em si o desejo de fazer um prato com apenas dois ingredientes: uva e beterraba. O resultado está no Uvas, que vem encerrar este capítulo e reúne gel de uva preta, pickle de uva branca fumada, beterraba grelhada e várias texturas de beterraba em pickle de vinagre e Chardonnay. Este é finalizado com dois bombons com pó de casca de uva recheados com queijo de cabra e gel de uva branca e, posteriormente, regado com sumo de beterraba, vinho e vinagre de malte.

Bancada do Chef Desarma
Bancada do Chef Desarma créditos: Tiago Maya

O capítulo do “Ataque” divide-se entre o peixe e a carne. Começamos pelo Cherne dos Açores, temperado com molho de lima e manteiga de kefir e grão-imperial de caviar, onde a estrela principal é o acompanhamento: o funcho. Através deste prato, Octávio Freitas quer mostrar a diversidade desta planta tradicional que pode ser consumida de diferentes formas e que serve para muito mais do que rebuçados. Este integra diferentes texturas de funcho assim como uma salada crua temperada com vinagrete de frutos secos. “Temos um prato, o funcho, que deu o nome à cidade do Funchal”, refere sobre as origens daquela que é a capital da ilha da Madeira.

Informações

Morada: Hotel The Views Baía. Rua das Maravilhas, 74. 9000-177 Funchal

Telefone: 291 700 220

Email: info@desarma.pt

Horário: De Quarta a Sábado entre as 19h00 e as 21h00

Segue-se um prato de caça, o Pombo, que é caramelizado com manteiga e ervas aromáticas, passado pela brasa e servido com mistura de cereais e uma emulsão de aveia. Este é ultimado com um caldo de vitela e cogumelos, sendo que as trufas brancas dão o toque final. À semelhança do Pão de Trigos Ancestrais, este é um dos momentos que só podem ser desfrutado exclusivamente ao balcão. “Isto acaba por ser um bocadinho uma masterclass. Quem está no balcão tem essa expectativa do contacto com o chef”, diz.

Lista Vinhos Madeira 100 Medos Desarma
Lista Vinhos Madeira 100 Medos Desarma créditos: Tiago Maya

Se os pratos nos levam numa viagem pela história da Madeira e do mundo, na harmonização damos um salto até aos Açores, ao Alentejo e à Bairrada, para terminar a beber um dos maiores símbolos do arquipélago: o Vinho Madeira. Atualmente, o Desarma é detentor da maior carta de vinhos da Madeira do mundo onde constam mais de 100 referências disponíveis para consumo, com 50 delas a copo. “Temos blends, temos Barbeitos, temos Henriques & Henriques, temos uma coleção privada de produtores que já não existem na ilha da Madeira”, esclarece sobre esta carta, intitulada “100 Medos”, que vem conferir exclusividade ao espaço. É num frigorífico vertical que o sommelier João Barbosa guarda este “baú do tesouro” com referências adquiridas a colecionadores e frasqueiras que datam do século XIX.  “Beber um vinho a copo de 1860 estamos a falar de lagares mecânicos. Não havia automóveis na Madeira, não havia estradas na Madeira. Havia estes socalcos todos, uvas que eram apanhadas hoje e vindimadas uma ou duas semanas depois”, menciona o chef natural de Câmara de Lobos.

Bancada do Chef Desarma
Bancada do Chef Desarma créditos: Tiago Maya

O menu termina com a “Rendição” onde os sabores frios e a fruta da estação sobressaem. A amora e a framboesa foram o ponto de partida para a pré-sobremesa “Amora” onde o sorbet de fruta, a panna cotta com caju, o chocolate branco, o crumble de framboesa e a granita de iogurte se juntam. O momento do Calhau de Chocolate remete-nos para as praias de calhau rolado, de areia branca e negra que surgem no prato, mas em formato doce. Esta sobremesa visualmente apelativa é recheada com mousse de chocolate, banana caramelizada e caramelo salgado. A Banana da Madeira é homenageada através do gelado de banana, previamente cozinhada e flamejada com vinho Madeira, que acompanha este momento que é polvilhado com crumble de amêndoa.

“A comida conta a história da Madeira: começou pelas festas, passou pelo Funchal, passou pelo Seixal, falou em várias partes da ilha da Madeira, falou da descoberta da Madeira, do funcho, da rota das descobertas, das especiarias, do peixe, da cebola, do vinho Madeira, da [floresta da] Laurissilva. Este menu contou tudo o que tinha para contar sobre a ilha da Madeira”, conclui.

O SAPO Lifestyle esteve na Mdeira a convite do Desarma