No calendário, estamos a 29 de março. Neste dia, os chefs Alexandre Silva e Alex Atala, do restaurante D.O.M, em São Paulo, cozinham a quatro mãos no restaurante do primeiro, em Lisboa, a propósito dos sete anos do Loco. Aguardamos a chegada dos chefs num espaço frenético, de entra e sai de pessoas, na preparação do evento que vai acontecer mais tarde.

Sentamo-nos à mesa com ambos para falar sobre um tema que lhes é caro: sustentabilidade. O que é afinal sustentabilidade? De que forma se pode traduzir? Que aspetos afeta?

De caminho falamos sobre hábitos de consumo ou redes sociais. Mas também sobre os sete anos do Loco, a pressão que se sente, ou não, por fazer parte do Guia Michelin (o Loco conquistou uma estrela Michelin na gala que aconteceu em novembro de 2016, apenas 11 meses depois de o restaurante abrir), e sobre pesca sustentável nas Berlengas.

Nota: A entrevista foi conduzida em conjunto com os dois chefs, mas partida em duas partes devido à sua dimensão. Esta é, assim, a parte um da entrevista.

O chef Alexandre Silva tem focado muito do seu trabalho no tema sustentabilidade. Mas quando pensamos nele relacionado com a restauração, o que é que isso quer dizer propriamente?

Quer dizer duas coisas: em primeiro lugar aquilo que as pessoas acham que é, a sustentabilidade ambiental, e quando se fala é a primeira coisa que vem à cabeça. Mas a verdade é que a sustentabilidade não é só isso, é mais do que isso. Obviamente que a ambiental é a mais importante.

Talvez aquela em que as pessoas pensam mais diretamente.

Exatamente. Mas depois temos a sustentabilidade social, económica, financeira. A preocupação de um restaurante é muito mais do que só preocupação ambiental porque infelizmente poucos são os restaurantes que se preocupam, na verdade, com essa sustentabilidade ambiental. Muitos falam, mas poucos se preocupam. Preocupam-se mais com a sustentabilidade financeira do que provavelmente com tudo o resto. E aqui o fundamental é conseguirmos unir as três disciplinas - económica, ambiental e social - partirmos daí e todas serem importantes. Não só ser aquela que é melhor para nós.

Qual foi o seu ponto de viragem?

O meu ponto de viragem foi quando abri os meus negócios. Eu acho que sustentabilidade é uma palavra que existe desde sempre na restauração. Desde que, pelo menos, trabalho. Agora, se calhar, é uma palavra nova para a comunicação social, no sentido de ser importante falar dessas coisas agora. Mas nós já falámos há muito tempo sobre isso. A verdade é essa. E é pena que só agora se fale de sustentabilidade porque percebemos todos, se calhar tarde demais, vamos ver, que é realmente importante. Agora, nós, e eu sigo o trabalho do chef Alex (Atala) há muitos anos, desde que sou cozinheiro, e isso é um dos valores primários do nosso trabalho. Eu parto do princípio de que um restaurante deve ser sustentável. Parto do princípio que, antes de entrar num restaurante, este tem que ter uma cozinha boa, uns pratos deliciosos, um serviço de sala como deve ser, um serviço de vinhos como deve ser. Parto sempre desse princípio. E nem sequer devia. Não é justo pormos isso em causa nos restaurantes, porque é assim que devia ser.

E quais são os principais desafios que encontra neste caminho? Uma coisa é teoria e outra coisa é prática.

Tudo tem o seu tempo e nós não podemos estar à espera de que as coisas aconteçam de imediato. Claro que estamos na era digital, as coisas acontecem muito depressa, desde que se inventou o mail. Antes era preciso 15 dias para termos uma resposta a uma pergunta. Hoje em dia é imediato. Nós falamos com o outro lado do mundo numa velocidade gigante. Nós colocamos um prato no Instagram e passados 30 segundos o mundo todo sabe o que se está a fazer. Ou seja, é estranho falarmos sobre isso, o que é realmente a novidade. Eu acho que as coisas têm o seu ciclo, têm o seu tempo. Nós não podemos estar à espera de que os tomates sejam bons o ano todo ou que haja ananás o ano todo. Infelizmente, já não pensamos muito sobre isso. Nós já achamos estranho quando, imagina, compramos uma peça de fruta, provamos e dizemos "É boa!". Nós achamos estranho quando é boa, quando é má já não achamos estranho. Isso é muito esquisito. Mas o mais triste é ouvir alguém com 30 anos falar comigo, dar uma dentada num pêssego e dizer "ah, não comia um pêssego assim desde a minha infância". Isto é triste de ouvir. Porque as coisas levaram uma velocidade tão grande, é preciso alimentar o mundo tão depressa, que as coisas deixaram de ter importância.

A própria indústria levou-nos a consumir nesse sentido.

E agora percebemos que está tudo errado.

Chef Alexandre Silva em entrevista:

No dia a dia, há algum ingrediente que evite usar?

Eu evito usar ingredientes que não são produzidos em Portugal. Tudo o resto uso, desde que sejam bons para mim.

Sente que tem uma responsabilidade acrescida para buscar um caminho quando a maior parte não está ainda focada nestes temas? Ou há muita iliteracia alimentar?

As pessoas não querem saber. Não é não sabem, é não querem saber. Com a informação que existe nos dias de hoje, uma criança com seis anos já sabe ler, consegue perceber isso perfeitamente. Por isso, um adulto também há de conseguir, com certeza. As pessoas não querem ver. Todos nós sabemos que um relógio parado está certo duas vezes por dia. Por isso, só não vê quem não quer. Só não vê aquilo que é errado, quem não quer. Todos nós sabemos distinguir o certo do errado. É muito fácil. E temos essa consciência. Como também temos a consciência de que temos que assumir o que somos. E se nós somos pessoas que não estamos minimamente preocupadas com a alimentação, ok, tudo bem, não estás preocupado com a alimentação. É um direito teu. Somos todos livres, até certo ponto. Mas agora não andes aí a mentir a toda a gente que tu és contra tudo isso. Está tudo bem, não é um problema. É um problema a longo prazo, para ti, em termos de saúde ou para a comunidade se forem todos atrás dos seus ideais. Há pessoas que ainda não dividem o lixo em casa. Há pessoas que dizem, e eu já ouvi com os meus ouvidos, que "ah, vou dividir para quê se depois eles não vêm recolher o lixo". Estão mais preocupados com a parte final, que não lhes compete, do que fazer o trabalho inicial em casa. E isto é assim em tudo. É no lixo, é na educação dos filhos, é em tudo. Para mim é assustador.

Quando fui ver o concerto de Roger Waters, ele apresentou músicas de Pink Floyd com 50 anos, com vídeos atuais sobre guerra. E eu virava-me para o meu primo e dizia "já viste? Músicas com 50 anos, com vídeos atuais. Nós não evoluímos nada". Colocas um vídeo da guerra entre a Rússia e a Ucrânia e tens uma coisa super atual. Nós não evoluímos nada e estamos piores ainda. Por isso, acho que nós cozinheiros fazemos muito pela comunidade e pelos países onde estamos integrados. Agora, não depende só de nós. E eu não posso recriminar só porque há coisas que não correm tão bem ou há coisas que não chegam onde nós acreditamos que elas deviam chegar. É quase o nosso sonho. Mas um sonho que é só nosso. Se dependesse de nós, as coisas, possivelmente, estariam diferentes. Mas não depende. O consumidor é que tem a palavra final.

Por exemplo, até 2035 os carros a combustível fóssil, gasóleo e gasolina, vão acabar. Mas se fôssemos perguntar às pessoas "queres que os carros movidos a gasóleo ou a gasolina acabem em 2035?" diriam que não. Ou quase todas diriam que não. Nós temos que ser obrigados a fazer algumas coisas, caso contrário, não vamos mudar porque não temos amor pelo próximo. Estamo-nos a borrifar para as outras pessoas. Tudo virou exagero. As redes sociais são uma seringa cheia de veneno, injetada na vida das pessoas sem necessidade nenhuma, as pessoas escondem-se atrás disso tudo. E isso é um cancro que em pouco tempo destrói aquilo que está em construção, sem necessidade nenhuma. A reputação das pessoas, os projetos que antes de começarem ficam logo pelo chão. Isso é uma vergonha.

Nota que no seu restaurante as pessoas se preocupam mais com esta questão?

Se tenho tempo da antena e tenho esta oportunidade, não vou desperdiçar, diz o chef Alex (Atala). Aqui é igual. As pessoas vêm e são quase colecionadores de troféus. Vão colecionar um troféu. Já tive aqui clientes com uma lista para mostrar os restaurantes onde já estiveram.

Mas não há interesse?

Há todo o tipo de clientes. Há pessoas que estão realmente interessadas nisso. Há pessoas que não estão nem aí, mas depois, quando tu conversas com elas, percebem que há aqui um tema interessante e com riqueza e começam a absorver essa informação. Há outras que vêm e já puxam o assunto. Apanhamos de tudo nos restaurantes. E temos que saber lidar com isso.

Na prática, como aplica essa sustentabilidade?

Vou dar um exemplo. Aquilo que nós fazemos neste momento é tentar dar as melhores condições às pessoas que trabalham connosco. Tentamos o máximo possível trabalhar com produtores pequenos, que respeitam os ciclos como nós respeitamos e dão o mesmo valor às coisas como nós damos. E depois conseguirmos perceber se isto tudo em termos financeiros, é possível ou não. Porque se não for possível, não vale a pena. A não ser que eu tenha um mecenas que injete dinheiro todos os meses para conseguir ser o artista e fazer as coisas que me vêm à cabeça, em que acredito. As coisas não são assim. Temos que juntar estas três coisas, que são as principais. E depois perceber: é possível isto? É. Ok, continuamos. É possível mais isto? Vamos perceber. É? Continuamos. Como o chef Alex (Atala) diz, ser 100% sustentável é uma utopia. Até aquelas pessoas que acreditam nisso, que usam aquelas roupas XPTO, se formos esmiuçar aquilo tudo, percebemos que é difícil.

O chef Alex Atala foi um dos seus convidados na celebração dos sete anos do Loco. Como é ele que surgiu nesta equação?

(Começa a ecoar no restaurante uma música de Funkadelic).

Todos os chefs convidados tinham de ser alguém que tivesse feito parte do nosso percurso alguma vez. E o chef Alex fez parte do meu percurso desde que eu me lembro de ser cozinheiro. Sempre segui o trabalho dele, de querer ser como ele, de colocar um carimbo de “eu estou aqui, tenho direito à palavra e vou, com a minha palavra, tentar mudar alguma coisa”. E ajudou muito chegar aqui hoje e ter a honra de ter o chef Alex sentado nesta mesa. E todos eles têm de ter sempre alguma relação. É difícil explicar, sabes? É muita emoção e pouco racional, no sentido que tem que ser mais emotivo do que racional. Este restaurante, o Loco, sempre foi mais emotivo do que racional. Tive a sorte de criar um restaurante com emoção que em termos racionais até funciona. E tive a sorte de não ter de me preocupar muito com a parte racional, caso contrário, este restaurante não existia hoje. Tem muita emoção aqui. É um bocadinho esta música de Funkadelic. É muito isto, percebes? Agora estou a ouvir esta música e parece que foi de propósito.

A primeira vez que a ouvi, lembro-me que como se fosse hoje: ia sozinho numa rua em Lisboa, pós pandemia, tudo vazio, e há um quiosque nos Paços do Concelho, em frente à Câmara Municipal de Lisboa, sem ninguém, e estava a passar esta música, em "altos berros". E eu passo, sem ninguém, isto a ecoar naquela praça, e eu sentei-me no pelourinho a ouvir até ao fim. E este restaurante é muito isso. Foi uma coisa que aconteceu na minha vida, que eu não consigo explicar muito bem, e ainda bem que não consigo. Porque se conseguisse, acho que o restaurante não existia. Normalmente quando abrimos restaurantes é sempre com uma base racional, fazemos um plano de negócio, as coisas têm que dar certo, têm que faturar X ou pagar Y. E aqui não foi assim. Foi acreditar numa coisa que eu não tinha a certeza que iria correr bem, mas eu via tudo acontecer na minha cabeça.

Foi "Loco"?

Loco aparece por isso mesmo. Porque aquilo que eu quero que as pessoas pensem é que Loco deriva de loucura, mas na verdade não, vem da palavra em latim "in loco", que quer dizer "no local", aquilo que se vive aqui, neste momento.

O projeto Anzol+ surgiu da necessidade de fomentar a implementação de medidas e boas práticas na captura e manipulação dos recursos marinhos, sempre numa perspetiva de equilíbrio entre a preservação dos recursos e a sua exploração económica. Na sua génese está a inovação e a transferência de conhecimentos entre cientistas e pescadores de anzol e pequenos palangreiros, que operam na zona de Peniche e do Arquipélago das Berlengas, desenvolvendo ainda outros projetos como a LIFE Berlengas e a MedAves Pesca.

Os chefs tiveram a oportunidade de ir às Berlengas. Como correu a experiência?

Eu sou um apaixonado pelas Berlengas, por toda a ideia à volta daquilo. Tenho a sorte de conseguir ter-me integrado naquela comunidade, de alguma maneira. E ter alguém como o Alex Atala no Loco e não o levar lá, era um prejuízo enorme porque temos muitos valores em comum e este é um deles e ele tinha que conhecer aquele arquipélago. Tinha de estar ali, de sentir as pessoas, sentir aquele mar. É um sítio único no mundo. Nós portugueses damos pouco valor àquilo. São poucos os que conhecem aquela ilha, aquele arquipélago. Eu tinha de mostrar e foi por isso que fomos lá. Tenho sempre a necessidade de mostrar o bom que se faz em Portugal. Neste caso, o bom que se faz em Portugal em termos de uma pesca sustentável, de pesca artesanal, com pessoas boas, com uma comunidade de pescadores que está toda unida. É uma coisa que até dá vontade de chorar, só de pensar nisso. E tem que ser mostrado, tem que ser falado para o mundo inteiro, porque é raro existir.

E que peixe trouxeram de lá?

Não trouxemos peixe. Cozinhámos lá com o Carapau das Berlengas, que apanhámos.

Os sete anos, nas relações, normalmente costumam ser um ponto crítico. O Loco faz sete anos. Como está a relação neste momento?

Sabes que eu, quando abri este restaurante, dei-lhe um prazo de validade de sete anos. Porque queria que passados sete anos o Loco fosse outra coisa. Outra coisa no sentido de dar outro passo para continuar o caminho. E pronto, o ano ainda não acabou. Vamos ver. Para já é consolidar estes sete anos e continuar a marcar esta posição de resiliência, de fazer aquilo que acreditamos. Este restaurante foi feito por isso. E depois o futuro, vamos ver.

Aquela pergunta que é um pouco redonda, mas que temos de fazer: qual o balanço destes sete anos?

Super positivo. Atingimos, em metade da vida, aquilo que eu pensava só atingir em sete anos. Por isso foi super positivo. Conheci aqui pessoas magníficas. Tivemos sempre equipas excecionais. E foi um restaurante que marcou sempre as pessoas que começaram por cá. E acho que continua a marcar. Por isso, o saldo é positivo. Todos os restaurantes têm altos e baixos. Não há sítios perfeitos para trabalhar. Mas se colocar numa balança o que foi realmente mais importante e o que mexeu connosco foram as coisas positivas. Termos pessoas desde o início a trabalhar connosco. Isso é o mais importante.

Chef Alexandre Silva em entrevista:

Este ano o guia Michelin vai deixar de ser ibérico e passar a ser apenas de Portugal. Uma coisa que se começa a falar é da questão da saúde mental e da pressão que há, muito por causa do Guia, e que existe à volta dos chefs. Sente essa pressão?

Depende do valor que dás às coisas. Quando nós abrimos o Loco, nunca foi a pensar nas estrelas Michelin. Mas quando ganhámos, e tivemos a chance de ganhar uma estrela no primeiro ano de vida, eu fiquei super contente no sentido em que o Guia Michelin estava a mudar preconceitos que tinha. É quase a Igreja Católica. Até está a mudar alguma coisa e isso é importante para a nova restauração. Se nós conseguimos fazer parte desse caminho, tudo bem. Se não fizermos parte desse caminho, também está tudo bem. Nós vamos fazer aquilo que queremos fazer. O Guia Michelin olhou para isto, concedeu-nos uma estrela. Foi muito bom para o nosso negócio. Em termos de estabilidade financeira, foi muito bom, muito importante. Agora, se sinto pressão com isso? Não sinto. Nenhuma. Nunca senti.

E sentiu-se muito a diferença do antes e do depois? Ou seja, a estrela foi um catalisador importante?

Sim, foi. Sentiu-se que o restaurante ganhou uma credibilidade diferente. Mas foi só isso. O só, atenção, não é menosprezar. Mas em termos de pressão, ninguém aqui sente essa pressão porque também faço questão de passar essa tranquilidade para as pessoas. Temos de continuar a fazer aquilo em que acreditamos. No outro dia esteve cá o Sá Pessoa a cozinhar e falámos sobre isso. Vamos imaginar que perdíamos a estrela. Eu ia perguntar ao Guia: "porque é que perdemos? Eu estou melhor agora do que estava antes!". Estamos 300 vezes melhor do que o que estávamos no primeiro ano quando abrimos. Isto é tudo muito fácil de lidar. É aceitares que as coisas são assim. Eu acredito muito no meu trabalho. Se eles acreditarem, melhor. Se não acreditarem, também está tudo bem. Já tenho outras coisas na minha vida para me tirar o sono.

Também chegamos a um momento em que não é preciso provar mais nada?

Acho que também é preciso ter consciência das coisas. Eu antes de ser cozinheiro, sou cliente de restaurantes. Também sei avaliar as coisas, também sei perceber em que posição é que nós estamos. Não tenho nenhum problema com isso. Está tudo bem.