“Com os pés fincados em suas raízes e os olhos voltados para o futuro, Alex Atala é acima de tudo um apaixonado. Pelo Brasil, pela natureza, pela gastronomia, pela vida”, começa por nos apresentar a biografia do chef no site do seu restaurante referência, o D.O.M, sediado em São Paulo, com duas estrelas Michelin e que chegou a estar em quarto lugar na lista de melhores restaurantes do mundo.

“Movido por desafios e um grande sentimento de indignação, Atala consegue com extrema delicadeza e técnica transformar essa energia criativa em experiências inesquecíveis para quem tem a oportunidade de provar suas invenções”, complementa-se.

Alex Atala visitou Portugal no final de março de 2023 a convite do chef de Alexandre Silva para um jantar a quatro mãos. Como não aproveitar a sua presença para trocar dois dedos de conversa? Estamos a falar de um chef que chegou ao topo, que foi considerado uma das 100 pessoas mais influentes, pela revista Time, em 2013, autor de livros, fundador do Instituto ATA, figura presente em programas de culinária no Brasil, nomeadamente o MasterChef Brasil. Quando pensamos no nome de Alex Atala, a Amazónia é ligação direta graças ao trabalho que tem desenvolvido com os povos e comunidades tradicionais ao longo dos últimos 30 anos.

Conversámos com o chef sobre sustentabilidade, sobre clientes, sobre as Berlengas e sobre o peixe português.

Nota: A entrevista foi conduzida em conjunto com os dois chefs, mas partida em duas partes devido à sua dimensão. Esta é, assim, a parte dois da entrevista.

O Chef Alex Atala tem trabalhado e falado sobre o tema sustentabilidade. Mas quando pensamos nesse tema relacionado com a restauração, o que é que isso quer dizer propriamente?

Eu sempre acho que a perfeição não existe. A aproximação da perfeição é um compromisso que nós temos que ter a cada dia. Então toda vez que me perguntam se um restaurante é sustentável, a primeira coisa que eu vou falar é não. Isso não quer dizer que não esteja presente a sustentabilidade. Ele não é sustentável porque eu tenho muito mais pontos de flanco, de que eu não sou sustentável. Vou te dar o primeiro exemplo: trago ingredientes da Amazónia, são a quatro mil quilómetros. Mas o serviço que eu presto para os ingredientes, para as comunidades produtoras naquela região, talvez seja tão importante ou mais importante que o impacto ambiental que eu faço.

Então, eu quero ser sustentável, quero ser perfeito. Sei que eu não sou, mas o compromisso de cada dia é ir melhorando os processos para que se chegue nisso. Também acho que não devia provar para as pessoas que eu sou um cara honesto, como não devia ter que provar para as pessoas que eu sou um homem. Não deveria ter que provar que eu sou sustentável, porque acredito que esse seja o protocolo do futuro. Você não precisar afirmar. Você é. Se você é, não precisa expor.

Os próprios processos dificultam uma coisa que gostaríamos que fosse simples?

Acho que sustentabilidade é uma palavra difícil hoje. E eu vou te explicar melhor isso. Muitas empresas tomam atitudes sustentáveis como nós vamos no dentista. Não por prazer. Não é legal ir no dentista. A palavra sustentável hoje, ela é carregada de culpa. "Ah, nós não fizemos, o mundo vai acabar." E não deveria ser isso. A sustentabilidade devia ser cool, devia ser sexy. Devia ser um valor primário do homem como ser humano, como ser correto, ético, honesto. Eu acredito que a nossa geração ainda não é sustentável, não vai ser sustentável, mas nós podemos sim gerar novas gerações com atitudes de ética onde está a sustentabilidade.

Ainda estamos a algumas gerações de isso acontecer?

Sim, mas nós estamos no caminho, porque nos anos 2000, muitos chefs, três estrelas Michelin não acreditavam em cozinha sustentável. Não vou citar, mas um chef europeu, três estrelas Michelin, referente para todos nós, recordo-me de dizer "esse discurso é uma bobagem".

A sustentabilidade devia ser cool, devia ser sexy. Devia ser um valor primário do homem como ser humano

Mas para si, qual foi o ponto de viragem?

Para mim foi há quase 30 anos, quando comecei a trabalhar com a Amazónia, com valores, com pessoas ou com povos tradicionais. Tive de recorrer aos antropólogos para entender porque estava trabalhando com uma cultura que era muito diferente da minha, valores que são muito diferentes dos meus. Então, fui falar com os antropólogos. E um olhou na minha cara e falou "Muito bom, você quer aprender bastante coisa da Amazónia, mas o que é que vai devolver para a Amazónia? O está deixando de bom lá? Ou vai ser só mais um a tirar coisas de lá, para o seu benefício"? Se eu tenho que entregar uma comida deliciosa para você, para poder cobrar um preço mais caro e ganhar estrelas Michelin, entendi que o meu fornecedor, seja ele uma indústria, seja ele um pequeno produtor, seja ele um indígena que colhe cogumelos ou frutas na Amazónia, precisa ter a sua recompensa, que nem sempre é dinheiro.

Estamos a falar dos anos 1990?

Ninguém falava, as pessoas riam quando se falava dessas coisas. Dar de volta, sustentabilidade. As pessoas nem entendiam isso.

Mas como referiu, devia ser um valor primário do vosso trabalho?

Acho que esse é um compromisso do chef, mas é um compromisso do produtor, um compromisso do Governo, um compromisso do mercado, é um compromisso do cliente.

E quais são os principais desafios que encontra neste caminho? Uma coisa é teoria e outra coisa é prática.

Se a cada vez que encontrar uma dificuldade parar, eu nunca vou fazer. Não são as dificuldades que me fazem parar. É a crença, é o compromisso da aproximação à perfeição. Nós temos todas as dificuldades, mas tenho muito menos dificuldades do que eu tinha nos anos 1990. A gente tem que entender que o tempo também é um ingrediente para essa receita. Assim como eu não posso fazer uma massa de pão agora e querer que ela cresça no forno, que ela fermente sozinha, ou fermente rápido, eu tenho que esperar. Fazer essas mudanças de cultura e de comportamento também tem uma demanda de tempo e eu não posso apressar. Tem um livro que eu gosto muito que se chama "Não apresse o rio (ele corre sozinho)" (de Barry Stevens).

As pessoas riam quando se falava dessas coisas. Dar de volta, sustentabilidade. As pessoas nem entendiam isso

Há algum ingrediente que evite usar?

Eu cresci numa geração que falava que a comida do futuro ia ser pílulas de astronauta. Passaram uns 50 anos. A comida mudou? Como é que vai ser daqui a 50 anos? Vai mudar? Talvez mude a nossa relação com a comida. Se eu perguntar para você, para 10 pessoas, para 100 pessoas, para 100 mil pessoas o que é comida boa, não vamos ter um comum senso. Agora, se eu perguntar o que é comida ruim, aí sim, nós temos um comum senso.

Eu acredito que a vida vai ser mais sustentável, as atitudes serão mais sustentáveis, os valores serão mais sustentáveis, a partir do momento em que eu aprenda a dizer não. Esse não conta. Mais uma vez, eu prefiro dizer quando as pessoas me perguntam, "você é sustentável?", eu prefiro falar "Não". Eu não sou sustentável e posso apontar e me sinto tranquilo em dizer: eu ainda não sou. Tem outras coisas como manter um restaurante limpo, ter uma equipa feliz. Não devia ser um orgulho. Eu vou sempre falar, a sustentabilidade começa com a palavra "Não" e com o compromisso de manter este marco. O mais fácil é você falar "Ah, eu não compro produto a mais no inverno porque eu não tenho. E aí eu vou comprar o ruim". Se no inverno eu não tenho, não tenho. Mantenha o não.

Chef Alex Atala em entrevista:
créditos: Marcus Steinmeyer

Sente que tem uma responsabilidade acrescida para buscar um caminho quando a maior parte não está ainda focada nisso?

Eu sempre brinco que para existir a mentira, não tem que existir o mentiroso. Tem que existir quem acreditou na mentira. Senão ela não era mentira, era uma falácia. A mentira existe porque alguém acreditou nela. Eu falo isso pelo seguinte: enquanto o mercado não mudar, muita gente não muda. Muito restaurante, muito comerciante, muita empresa não vai mudar. Por isso que eu digo para você que a chave é a palavra "não". Quando o mercado não comprar mais fast food, talvez a fast food não exista. Quando o mercado não comprar comidas ultra processadas, a indústria ultra processada muda. Ela não quer deixar de existir. Enquanto o mercado oferecer produto ultra processado e nós, como cidadãos, na nossa individualidade, comprarmos, estamos a fazer a mentira existir.

Se no inverno eu não tenho [produto], não tenho. Mantenha o não

Nota que no seu restaurante as pessoas se preocupam mais com esta questão?

Muitas delas estão mais preocupadas em fazer uma selfie com o chef, do que com o que elas vão comer. Se elas forem me orientar, eu não faço mais nada. Eu vou virar exatamente o que elas querem que eu seja, que é só tirar uma foto do lado delas, no Instagram. Tenho que aproveitar aquele momento em que ela veio ao meu restaurante, que ela veio, na expectativa dela, postar uma selfie comigo, para a fazer experimentar uma comida e falar "Uau, isso é diferente". E tenho, nem que seja 5 minutos, [o tempo de] olhar para a cara dela e falar "isso foi produzido em tal lugar da Amazónia, você já esteve lá?". Eu tenho certeza de que aquela pessoa, que foi no meu restaurante, já foi para Nova Iorque, para Lisboa, para Paris, para Miami. Mas para aqueles lugares da Amazónia ela nunca foi e, quem sabe, nunca irá. É um facto que as pessoas vêm aos restaurantes mais para postar a foto do restaurante. Mas eu sempre vou olhar aquilo como uma oportunidade de conseguir chegar a ela.

E tem conseguido?

Menos do que eu gostaria, mais que eu esperava (risos). É porque há 20 anos não esperávamos nada. Há 20 anos, outros chefes riam e falavam "esse cara é maluco". A maluquice hoje já é quase uma realidade. Acredito que é um caminho. As pessoas vão a um restaurante para estar nele, para fazer uma foto, postam uma comida. Mas elas vieram até ali. E se elas vieram até ali é porque outras coisas eu construí para que elas viessem até ali. Ainda que elas não entendam, aquela é uma chance de quem sabe fazer diferença.

Enquanto o mercado oferecer produto ultra processado e nós, como cidadãos, na nossa individualidade, comprarmos, estamos a fazer a mentira existir

Na prática, como aplica essa sustentabilidade?

Eu sempre brinco e falo que tenho dois chapéus: um de mercenário e outro de missionário. Mas não temos de olhar para eles como conflitantes. No nosso mundo, ou você é mercenário ou você é missionário. Ou é do bem ou é do mal. E ninguém é só uma coisa. Tudo o que fazemos na vida vai ter um lado negativo. O importante é que o lado positivo seja maior que o negativo. Como é que você pode ter um instituto (Instituto ATA) e ter um dos restaurantes mais caros do Brasil (Restaurante D.O.M, duas estrelas Michelin) enquanto milhões de pessoas estão passando fome? É uma verdade, não está errado. Aquele restaurante caro, que gera emprego para poucas pessoas, que poucas pessoas podem pagar para ir comer lá. Mas com 20 anos de trabalho, quantas famílias que estavam numa miséria ou, às vezes, até uma etnia indígena, que, não só não tinham dinheiro, mas não tinham autoestima, agora passaram a ter. O lado missionário, o lado mercenário, nem sempre são conflitantes. É muito cómodo, nestes momentos que nós vivemos hoje, de internet, de polarização, as pessoas falarem que são só boas ou enxergarem os outros como só maus. Nós precisamos lembrar ou chegar a um momento onde os impactos positivos que façamos sejam sempre maiores que os negativos.

Chef Alex Atala em entrevista:
créditos: Marcus Steinmeyer

Os negativos vão existir sempre. A gente vai diminuir, vai atenuar, vai tentar a perfeição. Estava brincando, voltando de um jantar no restaurante Pigmeu (em Campo de Ourique), a gente estava conversando um pouquinho e aí eu brinquei com eles e falei "eu nunca fui o melhor aluno da classe! Não é possível, com 50 anos que alguém continue querendo que eu o seja”. Já não era bom quando eu era criança (risos). Eu não vou ser perfeito, vou ter meus defeitos o importante é que eu consiga fazer coisas melhores a cada dia.

Como recebeu o convite de Alexandre Silva para vir cozinhar ao Loco, num destes jantares especiais?

Não sabia o dia, não sabia a data. Sinceramente falei assim: “Me fala a data, e eu vou estar lá”. Passa por várias coisas. Primeiro, porque eu gosto de Portugal, vim muitas vezes. E há muitos anos, quando o restaurante D.O.M começou a subir nas listas e a ser muito conhecido, descobri que as maiores votações que eu tinha vinham de Portugal. Sempre me senti muito querido, em Portugal, pela comunidade de cozinheiros. Há cinco, seis anos, não me lembro exatamente da data, vim aqui a primeira vez. E vim sem expectativa. Ninguém me falou "olha, é um chefe incrível e você vai comer..." Não. Eu falei, "vamos a um restaurante novo em Lisboa, que é muito bom". Cheguei aqui e me impressionei muito. E aí conheci o Alex (Alexandre Silva) e já tivemos empatia. Depois, via Instagram, a gente foi mantendo contacto, um vendo a vida do outro. Depois noutra vez, venho a Portugal, estou no Mercado da Ribeira e ali encontro o chef, que tinha uma box lá. Vai criando não só uma empatia, mas sobretudo respeito de valores em comum. Nunca perguntei para o Alex se eu vou ganhar dinheiro ou não vou ganhar, se ele tinha que pagar para estar aqui. Eu só queria estar. E só queria estar por uma única coisa: os valores deles são os que eu acredito. Então, independente de eu ser mais velho, ou um ser português e outro brasileiro, eu queria estar. Eu conheço pessoas que falam "eu fui". Conheço pessoas que falam "eu vou". Mas eu falo "estou aqui".

Eu não vou ser perfeito, vou ter meus defeitos o importante é que eu consiga fazer coisas melhores a cada dia

O chef Alexandre levou-o a conhecer as Berlengas. Como correu a experiência?

O mar de Portugal é muito especial. Qualquer lugar do mundo sabe. A gente no Brasil sabe. O mundo inteiro sabe disso. Os peixes de Portugal talvez sejam um dos melhores peixes do mundo. Eu posso falar isso por conhecimento de causa porque o meu peixe, no Brasil, não é tão bom, porque fui muitas vezes ao Japão, porque fui muitas vezes a Espanha. Sou um apaixonado pelo mar, eu pesco, tenho intimidade com esse produto e não é dentro da panela, não é dentro da cozinha. Eu tenho intimidade no mar. Isso já me criava uma expectativa das Berlengas muito boa. Aí você chega lá e é surpreendido com a beleza natural. Olha em volta e é surpreendido pela quantidade de peixes que você vê, que eu já sabia que talvez fossem os melhores peixes do mundo. Só que você chega lá e encontra pessoas. E uma sociedade colaborativa. São poucos pescadores que não competem entre eles. Como abelhas, como formigas, eles trabalham em favor de um coletivo que se chama Berlengas. Eles não trabalham para ganhar dinheiro. Mas o que eles fazem, acreditam tanto, que até dá dinheiro. Eu achei isso sensacional.

O mar de Portugal é muito especial. Qualquer lugar do mundo sabe

E a viagem, correu bem?

Eu não enjoo, não tenho problema com mar. Talvez no mar de inverno, mais frio. Nós tivemos dias abençoados. Eu não posso falar que era um mar de almirante, mas para um Atlântico, nesta época do ano, era um dia calmo. Tinha sol, mas não era um sol como aquele do Brasil que faz querer correr para a sombra. Tinha calor, mas não era demais. Tinha um vento, mas não era aquele vento gelado. A verdade: eu acho que peguei um dos melhores dias que eu podia pegar nas Berlengas. Até isso me favoreceu demais. Eu peguei condições de maré, de vento, de temperatura.