Lembro-me que, nesta fase que me parece já tão longínqua, andar de moto a alta velocidade, brincar aos peões nos carros dos amigos e embarcar nos mais arriscados desportos radicais me soava a tudo menos a perigo. Hoje, ainda que continue a ter uma dose aventureira acima da média, benzo-me de cada vez que subo a uma máquina de duas rodas e rezo a todos os anjinhos quando não me sinto confortável com a condução de quem tem o volante nas mãos.

E este processo de transformação, no meu caso, não se chama idade. É, antes disso, uma consequência direta e imediata da maternidade. Mal fui mãe, tomei consciência dos limites do meu corpo e da minha vida, preocupando-me, pela primeira vez, com a possibilidade de deixar órfãs crianças que dependem inteiramente de mim.

A nossa cultura ocidental não nos educa a saber lidar com a morte. Lembro-me que, quando era pequena e convivia com as mazelas da família, pensava muitas vezes que devia ter nascido numa qualquer outra cultura que me permitisse sofrer menos com a saudade de quem partia. É uma dor com que não é nunca fácil lidar.

Até que, de repente, são os nossos filhos que se apercebem da inevitável mortalidade. E que se chocam e assustam com a possibilidade de nos perderem. Porque, aos olhos de uma criança, uma mãe nunca devia partir.

“Oh mãe, as pessoas morrem todas juntas?” - perguntou-me um dos meus filhos mais novos, enquanto eu lhe dava o aconchego de boa noite. Sentei-me então à beira da sua cama e expliquei-lhe que não, que cada pessoa tem o seu tempo de vida.

- Que pena… porque eu queria morrer quanto tu morreres…

E é então que eu congelo. Porque a minha mortalidade já não me diz respeito, mas antes a quatro crianças que, pelo menos por enquanto, não conseguem entender como é possível que os dias continuem se a pessoa que (ainda) mais amam não estiver presente.

(recordo-me tão bem desta sensação quando, ainda miúda, receava por uma partida precoce de quem eu tanto amava…)

- Hei-de morrer muito velhinha, para te moer o juízo mesmo quando fores crescido!

Respondo sempre isto. Sempre. E depois rimo-nos, abraçamo-nos e é como se nada disto tivesse sido falado. Como se o hoje fosse eterno. Porque não é.

Mas pode ser. Pelo menos nas memórias que lhes deixamos, nas histórias que o tempo vai guardar, no sorriso com que um dia mais tarde poderão recordar os dias em que ainda viviam debaixo das nossas saias.

Não o garanto diariamente, mas todos os dias penso nisto: no desejo de lhes deixar boas memórias. Memórias que apaguem as zangas, os gritos, as faltas de paciência e os castigos. E que os façam, daqui a muitos anos, olhar para trás e dizer: “que feliz foi a minha infância”.

Alda Benamor