Uma coisa é certa: vivemos um tempo excepcional em que a percepção de ameaça, e mesmo de risco de vida, atinge todos de forma quase igual.

Evidentemente que os mais pobres têm menos condições de segurança. Os imigrantes que trabalham nas estufas do Alentejo e Algarve vivem em condições de alojamento precário que não permite, de facto, distanciamento social. Lares de idosos são dizimados. Podemos imaginar as dificuldades porque passam os bairros pobres da periferia das grandes cidades ou na margem sul do Tejo.

Quando a pandemia chegou a Portugal, eu estava em Moçambique, e pude imaginar as consequências terríveis que a doença pode ter em África, onde muitos países não têm condições mínimas de higiene, (água para começar), e nem sequer um ventilador.

Quando entrei para a Faculdade de Medicina não havia restrição do número de alunos. A razão era simples: eram poucos os candidatos, porque também eram escassas as famílias que tinham capacidade para pagar “os estudos”. A revolução democrática teve um efeito tremendo no acesso de todos à educação, uma aproximação à igualdade de oportunidades nunca antes vista.

Claro que a diferença de riqueza cultural do contexto onde uma criança cresce ainda cria diferenças acentuadas. A oportunidade de apoio escolar suplementar, ou acesso a universidades estrangeiras não é para todos.

Como muitos, passei a dar as minhas consultas à distância, aproveitando a experiência do PIN, que desde 2013 foi pioneiro nessa solução. Na verdade em 2019 a nossa instituição já acompanhava quase 700 famílias por essa via.

Neste mês de confinamento conversei com mais de uma centena e pude aperceber-me das dificuldades porque passam.

Adiante alguns exemplos da “vida real”:

- Dificuldade em conciliar o teletrabalho com o apoio escolar aos filhos. Muitos, além do mais, têm tarefas domésticas a cumprir. Imagine-se a aflição dos pais de um filho de 9 anos, outro de três e ainda um de ano e meio com fraldas, e que têm simultaneamente ao longo do dia reuniões por teleconferência a que não podem faltar.

Acresce que muitas famílias portuguesas são monoparentais, a maior parte das vezes com o filho à guarda da mãe. Nos EUA 1/3 dos trabalhadores “essenciais” são mulheres. Acredito que seja ainda maior a percentagem entre o pessoal de saúde, que convive no quotidiano com o medo de trazer a doença para casa.

- Ficar em casa para dar apoio ao filho que com 10 anos não consegue organizar o estudo, e arriscar perder o emprego quando se avizinham tempos de crise económica. Muitos avós “tomam conta” dos netos em tempo “normal”, mas não possuem as habilitações académicas para cumprirem funções de tutoria quando as crianças não têm o apoio dos professores.

- Apercebo-me que muitas famílias não têm computadores que funcionem bem. Muitos são antiquados, não têm câmara ou capacidade diminuta. E como partilhar quando várias pessoas necessitam da máquina em simultâneo. E a capacidade muitas vezes deplorável da internet?

- A qualidade das “aulas” é, muitas vezes, fraca. Uma professora, mãe de uma criança que acompanho, falava-me da dificuldade dos seus colegas mais velhos, (e são muitos), em usar com proficiência as novas tecnologias, apanhados de surpresa num contexto em que os alunos são muito mais competentes do que quem os ensina. Por sentir essa dificuldade o PIN está a organizar workshops para professores.

- A assiduidade dos alunos às aulas à distância é pobre, pelo menos nos EUA de onde surgem as estatísticas. A minha impressão é de que em Portugal se passa o mesmo. Por outro lado os adolescentes são peritos em “truques” que permitem em simultâneo estar a fazer jogos no computador, enquanto a imagem que o professor observa sugere um aluno atento…à lição. Isto para não falar dos que provocam risos e distracção ao introduzirem música ou ruídos cuja origem não é fácil de detectar.

A pandemia colocou a nu muitas desigualdades. Quando ela passar far-se-á o balanço. Alguma coisa de positivo e transformador irá surgir. Na ressaca da crise, desejo que todos os envolvidos na Educação assumam o potencial extraordinário de comunicação que as novas tecnologias possibilitam, e que isso aproxime pais, professores e alunos.

A comunicação entre a escola e a família é essencial. A internet permite informar instantaneamente dos sucessos, insuficiências e obrigações. Plataformas digitais permitem que pais e professores se encontrem, sem os custos e incómodos de uma deslocação à escola. A pandemia quebrou a rotina, obrigou a inovar.

Espero que, quando a maré baixar, deixe na areia muito ensinamento para se criar uma sociedade mais justa, e onde as pessoas, como soldados que sobrevivem a uma guerra, se tornem mais próximas e solidárias. A epidemia tornou clara a interdependência dos cidadãos, e a importância que o comportamento de cada um tem no bem-estar de todos. Eis uma boa lição.