Há alguns anos, as minhas filhas frequentavam aulas de ballet na escola. Eu tinha tido aulas em criança, com uma professora “à antiga”: dura, rígida, daquelas nas quais um silêncio significava que estava muito bem uma vez que nunca lhes sairia um elogio. Os comentários que ouvia por parte das minhas filhas não eram muito abonatórios: que a professora só ligava a duas ou três, que era pouco simpática e ainda menos paciente. Quando a conheci, a primeira coisa que me disse foi que uma das minhas filhas tinha mais jeito do que a outra. Naquele momento a decisão que já se estava a formar de as tirar do ballet foi tomada.
Não é isto que se espera de uma professora de crianças de seis anos que lecciona uma atividade extracurricular. Não me parece aceitável que professores de crianças pequenas se foquem mais “no jeito”, no desempenho ou que tenham uma postura mais de olheiros à procura do talento do que pedagogos. Não estão no sítio certo. De um professor de crianças de qualquer atividade espera-se que ensine a componente técnica e que ensine a aprender, a evoluir, a lidar com a frustração, a aceitar falhar e perder e, (não negociável) a aprender o amor próprio e respeito incondicional por nós mesmos e pelos outros, independentemente dos resultados.
Se este é um problema com professores ou treinadores, ainda se pode tornar mais grave quando vemos pais que têm também eles esta postura, os “pais manager”: encontraram um talento nos filhos e dedicam-se a desenvolvê-lo. Não raras vezes e não por coincidência, o talento é numa atividade que lhes interessa e para a qual “não tiveram as condições” que agora proporcionam aos filhos. E aqui é importante pensarmos na diferença entre permitirmos que os nossos filhos frequentem atividades extracurriculares, acompanhando-os no incentivo e nas boleias ou fomentarmos uma carreira e uma atividade laboral em crianças de oito anos de idade. É que num enquadramento diferente estaríamos a falar de trabalho infantil.
Mas quais são as diferenças?
- O facto de a atividade ser prioridade na vida da criança e da família. Os jogos ou torneios ao fim de semana condicionam em certo grau a vida familiar, mas uma coisa é haver alguns fins de semana em redor da atividade, outra são os planos da família dependerem da atividade da criança.
- Quando a atividade é vista pelos adultos como central nos projetos de futuro da criança. Os próprios pais instigam o filho a encarar esta atividade como uma carreira e vivem as angústias do falhanço e a euforia do sucesso como se disso se tratasse. Já deixando de lado a hipótese de uma lesão poder deitar sonhos por terra, o bom senso diz-nos que ninguém deveria ter de escolher o que vai ser quando for grande aos sete anos. Este tipo de visão partilhada acaba por estreitar as áreas de competência em que a criança se sente à vontade. O seu valor fica demasiado dependente de “ser bom” na atividade que pratica o que pode comprometer o seu desenvolvimento socioemocional.
- A existência de um investimento emocional, financeiro e ocupacional dos pais. Quando os próprios pais tomam esta atividade dos filhos como central na sua vida, sacrificando-se a diferentes níveis para que estes a possam praticar. Esta escolha dos progenitores ainda pode criar mais peso para a criança, ao perceber que o seu desempenho é central para a realização dos pais. Por outro lado, vai fazer com que as conversas familiares girem demasiado em redor deste tema, tirando espaço a outros interesses.
- A pressão para resultados e para a excelência no desempenho. É na atividade, no empenho e no esforço que a tónica deverá estar. Quem vive dos resultados são os adeptos, aos pais cabe apoiar e mostrar que estão lá quer corra bem quer corra mal. O cúmulo desta atitude será ouvir progenitores que falam no plural sobre os resultados dos filhos: “perdemos”, “ganhámos”…etc.
- A criança não ter poder de escolha para continuar, desistir ou dedicar-se menos à prática da atividade. Por vezes a própria criança já não quer continuar, mas não sente o direito de o dizer ou de o fazer. Aparecem as dores de barriga, os enjoos e outras razões plausíveis para não irem treinar. É crucial que a criança saiba que pode parar, desistir, e que não foi tempo perdido. Foi uma atividade que o ajudou a superar dificuldades, a ganhar hábitos de treino, a lidar com os colegas e adversários, a conhecer-se melhor.
Na infância, os adultos são vistos como os detentores da verdade, não apenas acerca da área que ensinam mas, também, é com eles que aprendemos como somos. Por isso, a ausência de elogios, de incentivo, a humilhação perante os erros, a rejeição das falhas, ser preterido, ser bem ou mal tratado dependendo dos resultados tem um impacto no amor próprio da criança e do adulto em que se vai tornar. Daí o privilégio e a responsabilidade que temos como educadores.
Mas, e se houver mudanças no modo como os pais e professores olham para as atividades extracurriculates dos filhos? O mundo vai ter piores atletas ou artistas? Provavelmente sim. No entanto, parece-me que o mundo precisa mais de pessoas completas e compassivas do que de pessoas perfecionistas, individualistas e competitivas, numa dependência incessante de resultados para atingir momentos de bem estar.
Ana Moniz - Psicóloga, Psicoterapeuta, Executive Coach e autora do livro: “Este livro não é para fracos: Como agir com coragem está ao alcance de todos"
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