A Sheila era da minha idade, mas vivia uma vida muito diferente da minha. No entanto, a sua família disfuncional e os seus problemas emocionais não a faziam assim tão diferente de mim – que era, comparada com ela, uma menina com uma vida de sonho. Tínhamos os mesmos gostos, os mesmos desejos, a mesma sintonia.

Tínhamos uma linguagem que mais ninguém compreendia. Era só nossa, aquela comunicação codificada que ainda nos tornava mais próximas, mais unas, mais irmãs de coração. Foi assim mesmo, naquela ligação inexplicável, que a Sheila um dia me pediu para nos tornarmos irmãs de sangue. Sentadas na minha cama, ela picou o seu dedo indicador e, em seguida, fez o mesmo com o meu, enquanto eu me contorcia naquele estado de nojo-incómodo que até hoje o sangue me faz sentir. Juntámos os dedos, fixámos os olhos e jurámos uma amizade eterna que nunca ninguém poderia quebrar.

Até que ela se foi.

Numa solarenga tarde de primavera, os meus pais esperaram-me à porta da escola. E, dentro daquele automóvel azul claro, informaram-me que a minha meia-alma havia partido. Para sempre.

Só me lembro de ter 13 anos e de, ao chegar a casa, me ter deitado na cama dos meus pais. As lágrimas pareciam toldadas por tanta dor, por tanta dúvida, por tantas questões que, na altura, já ninguém me poderia esclarecer. E, ainda que eu soubesse que no dia seguinte me esperariam os amigos e os colegas de sempre, eu tinha a convicção de que me iria faltar ela. A minha amiga de sempre. E que seria, supostamente, para sempre.

Quando partiu, a Sheila tinha a idade das minhas filhas. 13 anos. 13 anos de nada, na verdade, porque a vida ainda mal havia começado. Porque tudo o que era bom ainda estava para vir. Porque tudo aquilo com que ela sonhava nunca se veio a concretizar: o encontro com o seu príncipe encantado, as cantorias num palco rodeado por milhares de pessoas, a casa que ela um dia ia partilhar comigo. Aos 13 anos, tudo ficou estático e flutuante num tempo que nunca mais ia avançar.

Já se passaram 27 anos e todos os dias me lembro dela. Penso como seria o seu rosto. Se ainda teria cabelo curto. Se ainda teria o mesmo sentido de humor acutilante. Se ainda seríamos amigas. Se ela seria uma estrela musical, se teria o marido com que sonhava, se seria uma mãe como idealizava.

Todos os dias me lembro dela e todos os dias sinto o toque da agulha que nos fez irmãs de sangue. E todos os dias penso que ela tinha a idade das minhas filhas. Que são tão pequenas, tão ingénuas, tão puras. Que têm tanta vida pela frente.

A Sheila partiu porque quis. E porque, se calhar, não teve quem lhe fizesse acreditar que, aos 13 anos, a vida ainda não é nada. Que a vida se resolve sempre. E que o melhor (muito, mas muito melhor) ainda está para vir.

Alda Benamor