Por vezes é difícil distinguir o dia Mundial da Criança, celebrado a 1 de Junho, do dia 20 de novembro, considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Dia Universal da Criança. A 20 de novembro, de 1959, foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos das Crianças. Esta declaração é uma carta, adaptada da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece os direitos e liberdades atribuídos às crianças, com o objetivo de lhes proporcionar o bem-estar e uma infância feliz e segura. Assim, os governos de todos os países que assinaram esta carta estão obrigados a fazer leis de forma a garantir que estes direitos são respeitados.
Os direitos da Declaração são os seguintes:
- Todas as crianças têm o direito à vida e à liberdade.
- Todas as crianças devem ser protegidas da violência doméstica, do tráfico humano e do trabalho infantil.
- Todas as crianças são iguais e têm os mesmos direitos, não importando a sua cor, raça, sexo, religião, origem social ou nacionalidade.
- Todas as crianças devem ser protegidas pela família e pela sociedade.
- Todas as crianças têm direito a um nome e a uma nacionalidade.
- Todas as crianças têm direito a alimentação, habitação e atendimento médico.
- As crianças portadoras de deficiências, físicas ou mentais, têm o direito à educação e aos cuidados especiais.
- Todas as crianças têm direito ao amor, à segurança e à compreensão dos pais e da sociedade.
- Todas as crianças têm direito à educação, que deve ser gratuita e obrigatória. E têm direito a brincarem.
- Todas as crianças têm direito a não serem violadas verbalmente ou serem agredidas por pais, avós, familiares, ou mesmo a sociedade.
Poderíamos falar de muitos temas, mas como pediatra, proponho falar de dois destes direitos: direito a alimentação e atendimento médico e ainda direito à educação e a brincarem.
O que entende por direito à alimentação?
Já fiz voluntariado em África e na Índia. Quando pensamos nesses países e em direito a alimentação, pensamos em ter alguma coisa para comer. Infelizmente nestes locais de pobreza extrema, muitas crianças passam fome.
No nosso país, diria que o direito à alimentação se poderia traduzir por um direito a uma alimentação saudável. Foram divulgados em outubro os estudos relativos ao estado nutricional das crianças portuguesas em idade escolar, em que Portugal continua a apresentar uma elevada prevalência de excesso de peso infantil, tendo a prevalência de excesso de peso (pré-obesidade + obesidade) sido de 29,7% e 11,9% eram crianças que viviam com obesidade infantil.
Tem sido implementadas algumas medidas para reduzir estes níveis de obesidade, mas a alimentação saudável tem que começar em casa. Não se mudam hábitos sem mudar mentalidades. E para mudar mentalidades é preciso muita informação e conseguir que essa informação chegue às famílias. Há muito a fazer neste campo! Mas penso que o direito à alimentação no nosso país passa muito por aqui, por educar os nossos filhos em estilos de vida mais sustentáveis e mais saudáveis.
Qual o papel do pediatra?
Penso que o pediatra tem um papel muito importante na vida das crianças e no apoio à família. Às vezes os pais chegam à minha consulta com listas cheias de dúvidas! São várias coisas do dia-a-dia e é completamente normal, sobretudo quando se trata do primeiro filho. Os pais precisam de segurança para cuidar dos filhos e penso que o pediatra dá essa segurança. Há muita informação em livros e na internet e ainda bem, são boas ajudas, mas nada como o médico que segue a criança para apoiar os pais com a saúde dos filhos.
E quando falamos de saúde, falamos de muito mais do que doenças! Falamos de estilo de vida saudável, de desenvolvimento, de educação. Todos estes âmbitos são temas da consulta de saúde infantil e juvenil e são muito importantes!
Além do pediatra, há outros profissionais de saúde aos quais todas as crianças deviam ter acesso fácil, quando necessário. Nutricionistas, médicos dentistas e psicólogos são os exemplos que me vêm imediatamente à cabeça! Às vezes é muito difícil conseguir o seguimento da criança nestas áreas e não devia ser assim!
O que considera mais importante na educação de uma criança?
Que os pais sejam protagonistas! O COVID criou muitas barreiras neste âmbito, porque estabeleceu uma enorme separação entre os pais e a escola e não devia ser assim. Só espero que esta fase já tenha sido ultrapassada. As crianças são educadas em casa com o apoio da escola, por isso a intereção dos pais com os professores é essencial para que cada criança se desenvolva o melhor possível.
Não quero alargar-me por esta área, até porque não sou especialista no tema, mas penso que direito à educação também passa por direito a estar mais tempo com os pais! É essencial que os filhos passem tempo com os pais, leiam com os pais, conversem com os pais, brinquem muito com os pais.
O que tem a dizer sobre o direito a brincar?
Pode parecer supérfluo, mas o direito a brincar é essencial! Brincar é das atividades mais importantes desenvolvidas pelas crianças, de tal forma que na Declaração Universal dos Direitos da Criança, brincar é um direito reconhecido e tão fundamental como o direito à saúde, à educação ou à segurança. É um motor do desenvolvimento da criança em todos os aspetos!
Numa sociedade que valoriza muito mais a eficácia e o sucesso, brincar pode ser considerado uma perda de tempo. Mas isto é um erro, até já estudado cientificamente! Brincar é uma atividade universal, em todas as idades, em todos os tempos, em todas as culturas e em todas as circunstâncias da vida.
As crianças têm muita dificuldade em verbalizar os seus sentimentos e em lidar com as emoções, mesmo depois de adquirir a linguagem. Brincar dá à criança a oportunidade para se exprimir de forma simbólica. Durante todas estas atividades exprimem as suas emoções! De tal maneira, que o brincar é um instrumento essencial para quem trabalha em pedopsiquiatria ou psicologia infantil, uma vez que é uma via direta de acesso ao mundo interior da criança.
À medida que crescem, as crianças começam a socializar, a conviver com os outros, a aprender regras do jogo e da própria sociedade. É necessário confiar nos companheiros, quando jogamos em grupo, aprender a ganhar e a perder, aprender a gerir as euforias e as frustrações. Estas etapas são essenciais no desenvolvimento saudável da criança e ajudam a adquirir competências para a vida, que não se aprendem nos livros nem na sala de aula.
Considera importante as crianças terem muitos brinquedos?
Não! Brincar vai muito para além dos brinquedos. Importa mais a história que se conta ou o jogo que se inventa, do que o brinquedo que se usa. Quase tudo serve para brincar, desde utensílios domésticos aos objetos naturais. Ainda me lembro de um ano em que o meu irmão mais novo, o Henrique de 8 anos, me pediu de presente de Natal uma caixa de cartão em que ele coubesse la dentro. Passamos a tarde de Natal a construir uma nave espacial! Foi o melhor presente de Natal que recebeu...
No século XXI, as crianças tem cada vez menos tempo livre, menos irmãos, menos disponibilidade dos pais e menos oportunidade para brincar livre. Muitas crianças tem o seu dia demasiado regrado entre a escola, as salas de estudo e outras atividades. Não deve assustar os pais que as crianças tenham tempo livre, antes pelo contrário! Não é uma perda de tempo, é uma necessidade!
As novas tecnologias modificaram os nossos hábitos diários, entraram nas nossas casas e escolas demasiado depressa. É claro que trazem vantagens, mas os ecrãs e videojogos, por mais interativos que sejam, não substituem a brincadeira..
Em síntese: brincar dá-nos ferramentas de aprendizagem, de autonomia, de liberdade e de satisfação, que nos permitem uma vida em sociedade mais equilibrada, mais feliz e mais humana.
Um artigo da médica Mariana Capela, pediatra no hospital Lusíadas Porto.
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