O relatório anual de segurança interna relativo ao ano 2023 anunciou recentemente que a criminalidade em Portugal está a aumentar e que os tipos de crime que mais subiram no ano passado foram os cometidos contra o Estado (mais 16,9%), seguidos do crime contra a identidade cultural/integridade pessoal (mais 9,6%).
As estatísticas da justiça revelaram também que os crimes contra as pessoas aumentaram 5,8% e que os crimes contra o património subiram 7,6%.
Neste contexto, os crimes mais frequentes em 2023 foram os de “violência doméstica praticados contra cônjuges ou análogos” (26.041), seguidos da condução sob efeito de álcool (24.133), ofensas à integridade física (24.111), furto em veículo motorizado (20.180), burla informática e nas comunicações (20.259), ameaça e coação (16.676) e condução sem habilitação legal (15.579).
Daquilo se concluiu, e bem, que a criminalidade em várias vertentes está a aumentar em Portugal e que o Estado tem de intervir no combate ao crime já que vivemos numa sociedade cada vez mais violenta.
Pois bem, há muito que os/as especialistas alertavam para a necessidade premente de se fazer um trabalho ao nível da prevenção para se desconstruir estereótipos e se incutir na sociedade princípios básicos a respeito dos Direitos Humanos, direito à identidade pessoal e à integridade pessoal, do direito à igualdade e não discriminação, resolução não violenta de conflitos, entre outros. Claro está, que esta recomendação não foi encarada com a seriedade merecida e agora os números falam por si.
Mas, o que mais se destaca nos números trazidos a público é a indiferença perante a constância dos números de violência doméstica. Chega-se a ouvir publicamente e com agrado que “não aumentou” como se isso bastasse à nossa sociedade. De repente, generalizou-se a preocupação com o aumento de outro tipo de crimes e criou-se a convicção que a violência doméstica é um fenómeno que está controlado, quando isso não corresponde à realidade.
O crime de violência doméstica continua a ser o crime mais denunciado em Portugal e sem respostas eficazes ao caso concreto. É certo que já se conseguiu fazer perceber que é preciso denunciar a violência e, nesse sentido, temos um número elevado de denúncias. Mas não basta! As vítimas reclamam por respostas que sistematicamente não alcançam, o que é desolador e conduz a um sentimento de descrença na Justiça e em todo o sistema de proteção à vítima na sua globalidade.
Ainda recentemente assistimos a mais uma notícia de uma mulher que foi assassinada por um homem com quem mantivera uma relação de intimidade, sendo que essa mulher tinha apresentado denúncia por violência doméstica e esse homem estava em liberdade condicional na sequência de uma condenação por homicídio de uma outra mulher também num contexto de relação de intimidade. Ora a questão que se impõe é saber o que o sistema fez por estas mulheres assassinadas, tanto a primeira quanto a segunda. Neste caso, como em todos os outros em que a violência doméstica vem a resultar na morte das vítimas há que reconhecer que o sistema falhou! O sistema não foi capaz de proteger as vítimas!
Por outro lado, sentiu-se que esta notícia foi mais um número trazido a público e que não houve qualquer insurgir contra esta realidade. Neste momento, parece que todas as pessoas pensam que o crime é público, as pessoas podem denunciar o crime de violência doméstica, temos casas de acolhimento de emergência e casas de abrigo para albergar mulheres e crianças e, nessa medida, já fizemos tudo o que era possível até porque esta é uma realidade que nos assiste e que faz parte.
Esta lógica está manifestamente longe daquilo que preconizamos para uma sociedade que se diz igualitária e não discriminadora, respeitadora dos direitos humanos, sobretudo das mulheres e crianças que são as mais atingidas por este flagelo.
A violência doméstica ocorrida no seio de relações de intimidade constitui uma das principais causas de morte e lesões graves de mulheres não só no nosso país como em todo o mundo, pelo que urge perceber que a tranquilidade da vida em família está seriamente ameaçada caso não se faça um investimento sério no combate ao crime violento e proteção acrescida das mulheres e crianças, o que só se conseguirá com o compromisso e envolvimento de toda a comunidade.
Além da intervenção precoce ao nível da prevenção que tem de ser levada a cabo com políticas públicas consistentes e de continuidade, há que travar a violência doméstica instalada através da correta avaliação do risco, ou seja, com a identificação objetiva da sua gravidade e potencial letalidade, por forma a haver também uma intervenção precoce no combate ao crime, capaz de impedir o escalar da violência e o passar para muitas situações de femicídio. Para tanto, teremos de ter bem presentes quais são os fatores de risco que estão ínsitos nas avaliações de risco operacionalizadas pelas forças se segurança, saber identificá-los e interpretá-los de modo a providenciar pela aplicação de medidas de proteção às vítimas e medidas de coação aos agressores e ter também a consciência que podemos modificar e melhorar os instrumentos de trabalho de modo a obter a eficácia que se reclama.
Assim, ao invés do silêncio e normalização a que assistimos, é preciso que a sociedade se insurja, que seja capaz de reconhecer os riscos e perigos e que os todas as pessoas que trabalham com vítimas de violência doméstica ao longo da monitorização das situações, elaborem estratégias de intervenção com vista à proteção das vítimas e contenção dos perigos existentes.
A responsabilidade é de todos nós!
Um artigo de opinião da Advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.
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