Já tanto foi escrito e dito sobre a gravidez. Como pediatra, dificilmente este será um assunto da minha responsabilidade. À parte dos elementos da história clínica  - duração da gestação, diagnóstico pré-natal, complicações, análises de rotina, tipo de parto, peso ao nascer e índice de Apgar - o que é que uma pediatra tem que ver com a gravidez? "Nada!" - dir-me-ão vocês!

Mas quanto mais leio sobre isto, quanto mais crianças e famílias conheço, maior se torna a minha convicção que a gravidez traz consigo muito mais do que um bebé. À partida, trará uma mãe e um pai, uma família, uma adaptação, um ajuste, uma esperança.

Tudo aquilo que se passa durante a gravidez e o que se passa durante o parto cria uma espécie de pano de fundo para o desenrolar de uma relação entre o recém-chegado bebé e a mãe. E é justamente através desta relação especial, deste vínculo, que tudo se estratifica e organiza: pai, família, sociedade. E é justamente sobre a importância de falar sobre estes temas com o pediatra que gostaria de falar.

Há uma grande diferença entre estar grávida e ser mãe: a gravidez é um fenómeno limitado no tempo que começa e termina subitamente; tem uma duração mais ou menos previsível. Já ser mãe, ou melhor, tornar-se mãe, é um processo. Leva tempo, um tempo variável de mulher para mulher. E acima de tudo, não é um estado. É ser. É nascer de outra forma. Nascer de novo com outra identidade. E não termina. Reparem, ninguém deixa de ser mãe de alguém só porque morreu ou o seu filho morreu. É um vínculo indelével.

Há mulheres que precisam de passar pela gravidez para se tornarem mães, outras mulheres, apesar de terem engravidado, nunca serão mães. Outras mulheres, sem nunca terem estado grávidas, tornar-se-ão mães (o caso concreto da adoção, por exemplo).

Dissociar a gravidez da maternidade é importante, sobretudo porque há uma interpretação clássica e errada que, se uma mulher não gostou de estar grávida, então isso implica que será má mãe. Quem nunca ouviu ? "Se não gosta de estar grávida, se está deprimida durante a gravidez, só pode ser uma megera sem um pingo de instinto maternal".

Sabemos que existem mulheres que sofrem durante a gravidez e quando escrevo que sofrem, não o digo para eleger apenas as mulheres que tiveram complicações médicas sérias ou internamentos prolongados, ou o que seja. Não. Há mulheres simples, normais, com gravidezes normais, a correrem bem, que sofrem com a gravidez. Sofrem com o sono, as náuseas, as alterações corporais, as dores nas costas, na bacia, as cãibras, a insónia, as hemorróidas, a azia, a incontinência. E sofrem ainda mais porque são silenciadas: "se está tudo bem, não te queixes, que gravidez não é doença!". Não é doença, mas às vezes parece. E continuam a trabalhar no mesmo ritmo de sempre – porque lá está, não é doença; assumem as responsabilidades que sempre assumiram – porque lá está, continua a não ser doença!

Acho particularmente importante endereçar as expectativas que se desenrolam durante a gravidez.

As expectativas da sociedade que transformaram a gravidez numa processo relativamente simples. A mulher está grávida porque está no seu direito de estar, mas tem que ser produtiva. Tem o mesmo horário de trabalho para cumprir, com a mesma pausa para comer e as mesmas pausas para idas à casa-de-banho. Mas tem regalias, como por exemplo, atendimento prioritário e lugares de estacionamento próprios. Útil, não? É-se prioritária, mas só depois do trabalho, certo? Porque, não se esqueçam, a gravidez não é doença, nunca foi, nem nunca será doença. Mas experimentem lá andar com uma barriga de 9 kg e fazerem a vida ao ritmo normal. Facílimo!

Por outro lado a sociedade também sabe impingir expectativas sobre os bebés: os bebés supertranquilos, que mamam à primeira e sem dificuldade, que dormem 8 horas seguidinhas no seu próprio berço. E em relação às mães? Uiiiii, a mãe tem que ser super determinada e rapidamente ficar em forma depois do parto, sendo os meses de licença uma espécie de mini-férias. E se não criar um blogue sobre a experiência de maternidade, o que é que andou a fazer?

Por fim, temos a grávida. Quantos bebés existem na cabeça de uma grávida?

Pode parecer estranho, mas existem vários. Logo no início, mal se sabe que o bebé existe (em potencial, pelo menos), já há um bebé. Não digo isto do ponto de vista biológico ou jurídico ou do que seja. Digo-o em relação ao espaço psíquico da grávida que é ocupado pela possibilidade de um bebé. Por muito pequeno ou inviável que seja. Ninguém chega sem expectativas à gravidez, porque todas as mulheres foram primeiramente filhas. Trazem sempre uma bagagem importante para este bebé.

O primeiro enxoval do bebé começa justamente na infância da grávida, na forma como acarinhava as suas bonecas bebés ou dava a papa ou fazia de professora dos bonecos todos. Tal como existe uma identidade de género, existe uma identidade maternal. Esta identidade reside na relação que cada mulher tem com a sua mãe. Acompanha o crescimento de toda e qualquer mulher. Mesmo as mulheres que se dizem sem instinto maternal, sem sonho em ser mãe, têm na sua construção algo que gerou nelas esta posição.

Este primeiro bebé, fruto do passado, confronta-se agora com o bebé que está na barriga da mãe. Que bebé é? Primeiro é o coração do minúsculo bebé que bate, posteriormente descobre-se o sexo, depois observam-se alguns comportamento dentro do útero, como esconder a cara, chuchar no dedo ou soluçar. Isto é tão interessante, que em cima do bebé do passado, da filha que se foi, cresce um bebé misterioso, imaginário, que emite alguns sinais que cabem à mãe e ao pai interpretar. Se chuta com força é porque é irrequieto. Se está sentado é porque é um pequeno preguiçoso... Tudo interpretações. É o bebé imaginário. E vai crescendo dentro da barriga da mãe.

Quando finalmente se dá o parto, nasce o bebé real. E aqui temos um momento de charneira: há que reconhecer naquele bebé que está ali, vivo, a chorar, os outros bebés que estiveram durante todo este tempo na cabeça e coração da mãe. O bebé das suas expectativas enquanto filha, o bebé das suas expectativas enquanto grávida, o bebé das suas expectativas enquanto elemento da sociedade (calmo e tranquilo, a dormir no seu bercinho).

E muitas vezes (eu diria quase sempre), este reconhecimento não é imediato. E só amamos o que reconhecemos. E não tem mal. Dizer que se ama um filho no primeiro minuto pode ser verdade, mas não o é para a esmagadora maioria das mulheres. Estudos feitos sobre este assunto – anónimos, claro - dizem que 30% das mulheres ainda sentiam uma grande indiferença, ou tristeza e mesmo zanga, cerca de 6 dias depois do parto.

E porque é que trago este assunto à baila? Porque naqueles primeiros tempos com um bebé dá-se a vinculação. Não é algo acabado, ou limitado no tempo, mas é algo importante. Uma vinculação que corra bem é meio caminho andado para a mãe enfrentar melhor os dias de baby-blues que vão se abater sobre ela. Uma boa vinculação faz fluir a oxitocina, que vai deixar o leite escorrer mais facilmente para fora dos seios da mãe na hora de mamar. Uma boa vinculação vai poder assegurar o bebé que está ali alguém com ele, sempre, tornando-o menos hipervigilante e com medo do abandono.

E sim, nunca é tarde para se falar sobre a gravidez, ou sobre as expectativas do bebé com um pediatra. Ele poderá sempre compreender melhor as dificuldades que virão. E ajudá-la a antecipar-se, a preparar-se! Talvez a consulta com o pediatra antes do bebé nascer não seja assim uma aberração tão grande, afinal.

Quando finalmente os pais e o bebé novinho em folha me entram pela porta do consultório, nunca é de facto só um bebé novinho em folha. É uma narrativa, é uma história pessoal e familiar, é um encontro. É também uma mulher em pleno processo de transformação em mãe novinha em folha. E se há momento que requer tacto, compreensão e gentileza é este.

As explicações são da médica Joana Martins, especialista em Pediatria.