A tecnologia veio para ficar, mas será que devemos aceitar, passivamente e sem sequer nunca o questionar, que a transformação digital dos dias de hoje domine a nossa vida e a das novas gerações? É isso que está a acontecer, na opinião de Sérgio Filipe Pereira, psicoterapeuta e diretor clínico do Instituto de Apoio e Desenvolvimento (ITAD). Carlos Neto, professor e investigador da Faculdade de Motricidade Humana (FMH) da Universidade de Lisboa, corrobora.
"Os pais, claramente, não estão preparados para estas mudanças", afirma Sérgio Filipe Pereira. De acordo com o psicoterapeuta, neste momento, "estão a permitir um uso abusivo dos dispositivos digitais por parte dos filhos, porque lhes é conveniente". Palavras duras ecoadas pelo professor Carlos Neto. "Há um conforto por parte dos pais em quererem que as crianças se mantenham ocupadas nos tablets e smartphones porque estão sossegadas", anui o docente.
"Dessa forma, ficam em silêncio e não perturbam", sublinha. "Isso é uma forma de não lidar com a inquietude das crianças", condena mesmo o docente. No entanto, como também defendem outros especialistas, em Portugal e um pouco por todo o mundo, os benefícios que os progenitores retiram numa fase inicial não compensam os danos que as crianças colhem mais tarde. As consequências da utilização dos dispositivos digitais na infância têm vindo a ser alvo de grande escrutínio por parte das instituições de ensino superior ocidentais, com novos estudos científicos, que incluem alertas, a serem publicados com alguma regularidade.
O primeiro a deixar o mundo boquiaberto veio da Universidade do Iowa, nos Estados Unidos da América, que em 2015, provou que, aos dois anos, 90% das crianças já consegue utilizar tablets e smartphones sem o auxílio de um adulto. Entretanto, já foram divulgadas outras investigações, muitas com conclusões igualmente preocupantes. Uma delas, oriunda da Universidade de Toronto, no Canadá, envolveu 900 crianças entre os seis meses e os dois anos.
O grupo que a realizou comprovou que o uso regular destes dispositivos, a partir de 30 minutos por dia, atrasa o desenvolvimento da linguagem em 49%. A outra pesquisa é da autoria de uma equipa de investigadores da University College London, no Reino Unido, que acompanhou 715 famílias britânicas e que descobriu que alguns bebés com 12 a 18 meses de idade chegam a passar cinco horas à frente de um ecrã. A conclusão a que os cientistas chegaram?
Essas crianças dormiam, em média, menos 16 minutos por dia, o que, segundo os cientistas, nessa fase, pode comprometer o desenvolvimento cerebral. Por tudo isto, o diretor clínico do ITAD, Sérgio Filipe Pereira, defende que "até aos seis anos, as crianças não devem usar dispositivos digitais". A realidade nacional, à semelhança da de muitos outros países, mostra, contudo, que não é isso que sucede, com muitos pais a permitir e até a incentivar o seu uso.
A ameaça crescente do analfabetismo funcional
Também a nível universitário já se começam a notar problemas. De acordo com um estudo realizado por um grupo de investigadores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos da América, concluído e publicado em 2016, os estudantes jovens que estão a ingressar no ensino superior sabem ler, mas não conseguem manter a atenção necessária para ler um texto na íntegra nem compreender as ideias expostas. Sérgio Filipe Pereira explica porquê.
"Os dispositivos digitais acabam por ser um treino muito bom para que as crianças não sejam capazes de ler. Quando tiverem de pegar num livro, não irão conseguir focar-se nem fixar a vista, porque os tablets e smartphones oferecem muito mais estímulos, nomeadamente música, som, movimentos, cores, interação... Aquilo que vai acontecer é que, a dada altura, as escolas terão de adaptar os manuais escolares para as crianças e jovens poderem acompanhar", antevê.
Todavia, não é só a aprendizagem que está em causa, mas também as competências sociais, emocionais e morais, que também têm vindo a ser afetadas pelo uso crescente destes dispositivos. "Vejo cada vez mais agressividade nos adolescentes que me chegam ao consultório", conta o psicoterapeuta. Carlos Neto vai mais longe e diz que a saúde física e mental das crianças e dos jovens está a sofrer e que pais e filhos vão pagar caro o uso irresponsável das tecnologias.
"Nos últimos anos, houve um decréscimo de competências motoras e houve um aumento preocupante de desordens mentais, como a ansiedade, a depressão e o défice de hiperatividade e atenção", alerta o especialista. "Na passagem da adolescência para a idade adulta, estamos a registar mais suicídios", alerta ainda o professor da FMH. Apesar dos perigos para a saúde mental e também para a saúde física, por causa do sedentarismo, o atual panorama mantém-se.
O lado bom da literacia digital
A realidade atual exige que pais e filhos saibam usar e conviver com as tecnologias que vão surgindo e, no confinamento imposto pela pandemia de COVID-19, até os mais idosos se renderam em definitivo a elas. "Hoje, quem não souber trabalhar com computadores é analfabeto", constata Sérgio Filipe Pereira. Por isso, não basta apenas apontar defeitos aos dispositivos digitais e à internet, porque, como tudo, também têm (muitos) aspetos positivos.
"Uma forma proveitosa de usar um tablet é associar-se à brincadeira de desenhar num software como o Paint a aquisição de vocabulário da língua materna e até de uma língua estrangeira. Pode, por exemplo, pedir à criança que desenhe um cat [gato em inglês] ou um dog [cão em inglês]", ilustra o psicoterapeuta. Estes exercícios tanto podem ser feitos em casa sob supervisão parental como na escola, inclusivamente para desenvolver capacidades de socialização.
"Deve explicar-se às crianças que se pode comunicar através destes dispositivos, para, entre outras coisas, saber como é que os amigos se estão a sentir", realça Sérgio Filipe Pereira. Um estudo britânico, publicado no Journal of Computer Assisted Learning, mostrou uma associação entre a utilização dos tablets e smartphones e uma maior capacidade para resolver problemas, assim como maiores competências matemáticas e interesse pela ciência.
O termo de responsabilidade que importa estabelecer
Como em tudo, também aqui a utilização das novas tecnologias e das novas realidades digitais deve ser feita com conta, peso e medida. Carlos Neto concorda. "Os dispositivos têm vantagens, mas devem ser utilizados de forma correta e responsável", defende. A importância de existir uma literacia digital não está em causa. Contudo, não se pode ignorar o facto de tecnologias como os tablets e os smartphones serem bastante intuitivos na sua utilização.
Essa situação permite um manuseamento infantil sem ser necessário grande acompanhamento parental, mas os pais não podem descurar a sua supervisão. Os riscos são muitos, não só a nível de segurança como também para a saúde física e mental dos mais pequenos. Resta saber que soluções a comunidade, a escola e a família vão encontrar para dar às novas gerações a oportunidade de desenvolverem o máximo das suas capacidades cognitivas e aptidões físicas.
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