É tido como um ‘facto’ que as pessoas que gaguejam (PQG) não têm um discurso fluente, mas as demais têm. Tal não corresponde à realidade, ‘os que não gaguejam’ ao falarem fazem revisões, usam interjeições como: “ai!” e recorrem muito a bengalas discursivas como: “ahm”, “uhm”, entre outras de modo a não perderem a vez de falar. Ou seja, fluência absoluta não existe. Muitas vezes, à posteriori pensamos: “ah eu devia ter dito... em vez do que disse, ou do modo em como disse... na altura não fui capaz de dizer, não me lembrei de dizer...
Crianças que gaguejam (CQG) e adolescentes que gaguejam (AQG) têm muitas vezes uma noção distorcida destes aspetos, e acham que os seus pares são sempre fluentes e eloquentes. Outro aspeto, o qual quantificam de modo distorcido é que os seus colegas e amigos ‘falam e leem muito rápido’ - mais do que na realidade acontece. Têm uma noção distorcida do tempo quando as palavras não saem, um segundo parece um eternidade.
Como é falar de modo diferente e lidar ‘com isso’ no dia a dia de crianças e adolescentes com ‘a gaguez’?
As atitudes e sentimentos são vários e podem ser todos os seguintes em simultâneo:
Vergonha
Ser diferente não tem nada de fácil, independentemente da idade, depende das características de temperamento e autoconfiança da pessoa, ainda assim na adolescência costuma tomar uma dimensão em que há vergonha em falar de modo diferente. E não conversam, muito provavelmente, sobre ‘a gaguez’ com ninguém: não o fazem com os seus pais – é tabu; muito menos com os seus amigos - dos quais tentam ao máximo esconder, e só metade fala sobre ‘a gaguez’ com os irmãos – desde que estes não revelem impaciência e/ou tenham sentimentos de pena deles. Alguns pais, não tomam a iniciativa de falar sobre ‘o assunto gaguez’ porque para eles é doloroso e/ou não compreendem ‘a situação’ e assim convivem todos com ‘o segredo da gaguez’.
Fuga
Com a escola e os professores com frequência ocorre uma espécie de “dança” do esconde-esconde. O aluno/a faz por disfarçar ‘a gaguez’, fala o mínimo possível e indispensável, produz frases muito curtas e simples – o que não seria esperado para a sua idade. Substitui palavras; faz de conta que está com a sensação de palavra de baixo da língua; evita ler em voz alta; pede para ir à casa de banho quando antecipa que está quase na sua vez de responder, ler...; deixa para a ultima aula possível apresentar um trabalho e eventualmente nesse dia está doente – escreveu com o grupo o trabalho mas apresenta-lo é aterrador, vale tudo o que permita fugir.
Sociais
Ser uma CQG ou um AQG não significa de modo linear que são pessoas que não têm nem amigos, nem vida social. Mas tipicamente são mais seletivos nas suas amizades e a probabilidade de serem dos mais populares durante os anos escolares obrigatórios é baixa.
Perspetiva(s)
O seu percurso académico depende em boa parte em como os seus professores ‘reagem à gaguez’ - por um lado, se o discurso for qualquer coisa como “vocês só são gagos quando é para responder ou para ler! No intervalo ninguém gagueja!" – este tipo de discurso pode dar uma permissão implícita aos colegas para gozarem com ‘a gaguez’ ou mais do que isso: que a CQG ou AQG seja alvo de bullying. Por outro lado, se fizerem observações como: “com o seu modo de falar você não vai longe! Não estou a ver como vai conseguir apresentar trabalhos e argumentar no ensino superior! Aqui já é o que é!”.
Os professores têm crenças iguais ao resto da comunidade em geral – pessoas que gaguejam (PQG), independentemente da idade, são pessoas tímidas, medrosas e com menos capacidades - isto tem impacto por um lado, mas por outro não há evidência científica nenhuma que o suporte!
Descrédito
Na sua própria perspetiva fala ‘assim’ e não há nada a fazer. A falta de controlo sob o seu modo de falar traz-lhe uma sensação de impotência. Eventualmente já fez terapia da fala e ‘não funcionou!’ porque continua a apresentar disfluências: as repetições e/ou os bloqueios e/ou os prolongamentos e/ou as palavras partidas continuam a surgir no seu discurso.
Sim, dos 5% de crianças até aos 6 anos que em determinado momento apresentaram ‘uma gaguez’, desses 0.7% irá ser um adulto com uma gaguez crónica.
Mas isso não significa que quando têm mais de 6 anos não se possa atenuar ‘a gaguez’: por um lado menos repetições e/ou bloqueios e/ou prolongamentos e/ou palavras partidas, por outro, o lidar com o facto de ser uma CQG ou um AQG.
Porquê?
As necessidades comunicativas são diferentes ao longo da vida, a partir dos 7 anos com a entrada no primeiro ciclo, a criança passa a ter novas exigências sociais, passa a assumir novos papéis, tem mais privilégios em termos de autonomia mas também novos desafios. Com todos estes as exigências comunicativas são maiores, por exemplo: comprar senhas para o almoço, reservar materiais escolares, escolher o que quer almoçar: carne, peixe, vegetariano... se numa ou mais destas situações ‘gaguejou muito’ de acordo com a sua própria percepção – tal poderá ser uma memória inesquecível.
E as exigências comunicativas continuarão a ser progressivamente mais complexas ao longo da vida.
A seguir: Então o que se pode fazer?
Então o que se pode fazer?
1. Os pais podem tentar iniciar o falar sobre o assunto ‘gaguez’ em vez de todos estarem desconfortáveis e valorizarem as competências dos seus filhos/as;
2. Os irmãos podem não julgar e ouvir com paciência e sem pena;
3. Os colegas de escola/ de turma podem ter um papel fundamental e atuar /defender quando um dos seus pares é gozado ou pior sofre bullying;
4. Os professores podem rever as suas crenças e perguntar a uma PQG sobre ‘o assunto gaguez’ e podem ser eles a ter um papel crucial na autoconfiança destes jovens;
5. O terapeuta da fala – o objetivo não é ser seguido em terapia da fala sempre, i.e. anos a fio sem interrupção, mas sim pontualmente conforme as exigências comunicativas vão aumentando, em paralelo como o próprio lida com o facto de não controlar o seu modo de falar, de acordo com exigências muito específicas, por exemplo: preparar para a apresentação de um trabalho. No global: trabalhar no sentido de se sentir uma CQG ou um AQG confiante que pode ser um bom comunicador ainda que ‘gaguejando’.
6. Todos podemos ser bons ouvintes e escutar quando uma criança que gagueja / um adolescente que gagueja/ uma pessoa que gagueja fala.
Jaqueline Carmona
Terapeuta da Fala, reconhecimento como Especialista Europeia em Gaguez pela European Fluency Specialist
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