A crueza deste título é sentida. Não é uma criança que reprova, é um sistema que a chumba e, ao fazê-lo, mostra a sua ineficiência. Nenhuma criança com esta idade pode ser avaliada dessa maneira. Quem tem legitimidade para, no início de um período de 12 anos de escolaridade dizer “ por ora vais ser deixada para trás” ?

Só no ano de 2015 - dados da DGEEC - foram deixadas para trás 10.025 crianças para repetir o 2º ano. Como se sentiram ? O que ficarão a pensar de si próprias? Como se mobilizam para continuar?

Um sistema escolar que coloca o ónus da reprovação na figura de uma criança tão pequena não é um sistema honesto. Não é honesto porque se trata de crianças com capacidades dentro do que é considerado normal , mas cujas famílias têm condições objetivas reduzidas para as ajudar a desenvolver ao nível do que é esperado pela escola. A desigualdade socioeconómica alia-se quase sempre a antecedentes de reprovações, abandono escolar, baixos resultados, com marcas profundas de insucesso escolar. Estes pais que certamente não se sentiram bem enquanto alunos, não estão por dentro da lógica escolar, não se entendem com a falta de clareza da linguagem recheada de conceitos e palavreado para si desconhecidos.

Não é honesto que sejam estas crianças de sete anos as primeiras a pagar custos tão altos de um currículo inadequado, assente na quantidade e na exigência de um ritmo e velocidade de aprendizagem de “atletas” de alta competição, excluindo pelo chumbo os que caminham mais devagar. Não é honesto porque mina irremediavelmente a confiança de um ser humano que está a crescer, que está a estender asas fora do ambiente familiar, que espera segurança nessa descoberta protegida em meio escolar. Não é honesto porque mina o processo de socialização das crianças, mostrando-lhes que não importa deixar colegas para trás.

Ir para a escola para aprender, numa sociedade democrática, não pode ter esse significado, porque não se pode esperar que todos, embora com capacidades, aprendam do mesmo modo e à mesma velocidade.

É urgente largar a visão de que “já os pais tinham dificuldades na escola, fizeram pouco, os filhos também seguem o mesmo caminho.” A escola tem de cumprir a sua parte para que estas famílias criem gerações melhor escolarizadas. E está provado que o chumbo só atrapalha, não favorece.

É preciso que pais, professores e decisores tomem consciência da perversidade desta decisão, seja qual for a situação familiar da criança. Os professores e os pais sabem que acompanhar uma criança no 1º ciclo, conhecê-la e criar condições para o seu desenvolvimento está muito para além do que se mede através de uma nota.

É preciso que os decisores e a comunidade escolar queiram enfrentar o desafio de construir lideranças capazes de encontrar soluções que passem por mudanças no interior da sala de aula . Já se viu que não se vai lá com acrescentos nem modas de momento.

Criar um ambiente de confiança, acreditar no valor e potencial de cada criança,

diferenciar o necessário para que todos atinjam o seu máximo, utilizar tecnologias, romper com práticas monolíticas e inexpressivas de ensinar a ler e a escrever, criar condições favoráveis que facilitem a expressão e o desenvolvimento da linguagem como alicerce das restantes aprendizagens. Nada disto é novo. Temos professores com conhecimento adquirido e competência sobre o assunto, temos investigação sustentada e acessível, temos publicações feitas pelo próprio ministério, temos professores a querer fazer diferente. O que nos falta para saltar esta etapa?

Talvez romper com uma certa cultura de mentira de que “ chumbar até faz bem “ e melhora os resultados futuros. São 10.025 vidas, não apenas um número.

Maria de Lurdes Monteiro

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