Raúl (nome fictício) aguardou trinta e sete minutos na secretaria da sua universidade para saber acerca do passe. As pessoas à sua volta não faziam a mínima ideia do que se estava a passar dentro de si. O ruído a acumular-se, assim como as pessoas que entravam e saiam e que iam chocando com o seu corpo cada vez mais rígido. Quando finalmente chegou a sua vez não conseguiu explicar o seu pedido. Ainda procurou retirar o papel que já tinha escrito para o caso de ser preciso, mas além da sua caligrafia não ser a melhor, o suor causado pela ansiedade e tempo de espera fez o resto. Raúl tem um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo (nível 1). Na altura o seu diagnóstico, feito aos 8 anos, ainda se chamava Síndrome de Asperger. Raúl vive em Coimbra e tem 24 anos feitos recentemente. Entrou este ano na universidade em Lisboa para Contabilidade.
Esta situação de ir à secretaria procurar saber de informação para tratar do passe parece ser uma situação quotidiana e de fácil resolução. Contudo, para o Raúl e outras pessoas com um diagnóstico igual não é bem assim. Mas será que os diferentes contextos onde as pessoas existem não podem estar adaptados a diferentes formas de funcionamento? E no caso do Ensino Superior, não deve este ser um espaço por natureza inclusivo?
O ano letivo nas universidades começou há menos de duas semanas. Para muitos jovens candidatos, as suas vidas, bem como das suas famílias, passou a ser totalmente diferente. E também não é por acaso que este período é causador de maior ansiedade. Mas na verdade, este culminar na entrada do Ensino Superior não começou aqui. A transição para o Ensino Secundário e com a escolha de uma área específica, para além das próprias médias que passaram a contar. Foi havendo todo um conjunto de escolhas que foram sendo realizadas com o objetivo de melhor preparar esta etapa.
No caso do Raúl e de tantos outros alunos e alunas com diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, este processo não foi assim tão diferente. Também foi feita uma escolha de área específica e passou a haver uma necessidade de maior empenho para a média a obter. Contudo, também foi havendo todo um conjunto de desafios que já vinham antes mesmo do Ensino Secundário, que continuaram e ainda persistem, correndo-se o risco de se manterem ao longo da vida da pessoa, assim como o seu próprio diagnóstico.
No caso do Raúl, e tendo em conta que ficou retido alguns anos, foram mais de doze anos de escolaridade obrigatória a sentir todo um conjunto de desafios ao longo dos diferentes anos letivos. Fosse porque a escola para onde tinha transitado não estava suficientemente preparada para receber alunos com determinado perfil de comportamento. Ou porque alguns professores demonstravam mais dificuldade na implementação de algumas das acomodações propostas.
Ao entrar na universidade, até porque tinha ouvido que este era um espaço diferente, mais evoluído, Raúl pensou que as suas dificuldades e desafios tinham terminado. Apesar da ansiedade sentida pela entrada num novo ano letivo e espaço de ensino, Raúl encheu-se de motivação para enfrentar esta nova etapa. Mas ao fim de duas semanas ficou a sentir que talvez os desafios ainda não tivessem terminado.
O ensino é um direito de todos nós, diz Raúl. Mas então por que é que os espaços de ensino não são inclusivos e criam condições para todos? pergunta. Enquanto pessoa autista tenho uma determinada forma de pensar, sentir e fazer as coisas! continua. Mas eu não sou a única pessoa que pensa, sente e faz as coisas diferentes! afirma. Aquilo a que se chama hoje em dia de neurodiversidade é o reconhecimento da variação infinita do funcionamento neurocognitivo de todos nós. Em termos simples, é a realidade da diversidade das mentes humanas! acrescenta. Concebemos a neurodiversidade como uma forma natural e valiosa de diversidade humana e propomos que não existe um único estilo normal ou coreto de funcionamento neurocognitivo. Imaginem um mundo onde todos as pessoas são livres de utilizar os seus pontos fortes para aprender, desenvolver e criar! diz. E se esta é uma missão que muitas universidades estão a tentar abraçar através da introdução de serviços, tecnologia e espaços concebidos para apoiar os estudantes com uma vasta gama de necessidades de aprendizagem. Então por que é que estas minhas e outras características comportamentais continua a ser uma barreira para muitos e um obstáculo para tantos? desabafa.
Estima-se que cerca de 15 a 20% da população mundial tenha uma diferença de aprendizagem específica, tal como a Perturbação do Espectro do Autismo, Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção ou Dificuldade de Aprendizagem Especifica. No entanto, em Portugal e mais especificamente no Ensino Superior não temos uma noção exata desta realidade. Ainda que o número de alunos que se candidatam e que se inscrevem nestes perfis esteja a crescer.
O Ensino Superior enquanto espaço de partilha e construção de conhecimento, necessita de continuar a introduzir novos processos, adaptações e iniciativas para que os estudantes com necessidades neurodiversas continuem a prosperar. É preciso poder olhar para as suas necessidades, mas não esquecer de sensibilizar todos para aquilo que são os seus pontos fortes, seja do ponto de vista académico, mas também pessoal. E se o Ensino Superior é um espaço que é construído em conjunto por todos os intervenientes, nomeadamente os alunos. Então é fundamental que também estes alunos neurodiversos possam ser chamados a participar.
Um artigo de Pedro Rodrigues, Psicólogo clínico no Núcleo de Perturbações do Espectro do Autismo na PIN Partners in Neuroscience (pedro.rodrigues@pin.com.pt).
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