Irmãos e unidos através da paixão pela música, Fradique e António Mendes Ferreira decidiram juntar as suas vozes e com esforço e dedicação provar que dois jovens vindos do sul de São Tomé e Príncipe "podem chegar e fazer a diferença um pouco por todo o mundo".

O sonho de um futuro melhor fê-los deixar São Tomé. Em Portugal encontraram espaço para provar que "a música não tem cor" e mostrar a riqueza cultural de que são feitos.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, a dupla de cantores recordou o início da caminhada no mundo artístico... onde, surpreenda-se, fizeram a diferença os conselhos de Tony Carreira.

Como é que começou a vossa paixão pela música?

Fradique: A nossa história é engraçada e tem altos e baixos. Começou desde São Tomé e Príncipe. Tal como a maioria das pessoas, foi através da igreja. Desde pequenos que começamos a fazer catequese. Os nossos pais tinham em casa umas cassetes e passavam música com frequência.

António: Fomos influenciados, podemos dizer. Quem começou, curiosamente, foi o Fradique.

F: Comecei a fazer rap… fomos desenvolvendo isso. Quando havia festas importantes na escola cantávamos, ainda não era profissional. À medida que fomos crescendo sentimos a necessidade de começarmos a aprender mais em relação à música. São Tomé foi a base, trouxe-nos uma grande riqueza cultural, até sentirmos a necessidade de sair de lá em 2008.

Mas em pequenos já cantavam juntos?

A: Cantávamos porque era algo natural. Os nossos pais perguntaram porque é que não uníamos as nossas vozes. Isso também por causa da influência das duplas de sertanejo… a partir daí começamos a cantar juntos. Com a ajuda deles conseguimos gravar duas músicas na época, depois começaram a passar na rádio e passamos a receber telefonemas do pessoal a dar os parabéns. Fizemos também hotéis, cafés…

Voltámos para Portugal porque sentimos que a base da nossa música estava aqui

Quando é que se deu a reviravolta que precisavam para o sucesso?

A: O nosso pai ouviu falar de um festival que ia acontecer na capital e nós não tínhamos sido convidados. Ele então disse: ‘Vamos para o festival, não sei se vos consigo colocar no palco, mas arranjamos uma forma’. Chegámos lá e ele pediu para cantarmos. O apresentador conseguiu um intervalo, subimos ao palco, cantámos as duas músicas que tínhamos gravadas e mais uma da Cesária Évora. Aquela foi a nossa primeira vez num palco com milhares de pessoas. Quando descemos veio um produtor oferecer um contrato discográfico numa produtora em São Tomé. A partir daí as coisas começaram a desenvolver-se.

Já mais tarde, como é que se dá a vossa vinda para Portugal?

F: Foi a nossa necessidade de aprendermos mais em relação à música. Em 2008 tinha conseguido uma bolsa de estudo para vir estudar numa escola profissional, fui para Évora e o António veio alguns meses depois. Quando chegámos, o clima em si era aquilo que imaginávamos. Como é que era estar num país em que fizesse frio? Lembro-me de que tentávamos algumas vezes simular colocando a cara dentro do frigorífico [relembram, não deixando de se rir]. Lembro-me que quando cheguei, saí do avião - naquela altura estavam uns 15 graus - e para mim já era frio.

Estávamos mais focados nos estudos e a música ficava mais para o fim de semana. Isso serviu para percebermos como é que funcionava uma cultura diferente, como é que a sociedade estava organizada. Estudámos aqui três anos e depois veio a crise, em 2011, e tivemos a necessidade de ir para França.

Fazemos parte da geração que fez com que a música africana deixasse de ser um tabu

E como foi por lá?

F: Foi um desafio, só sabíamos falar o básico. Mas fomos com tudo. Participámos em vários programas, incluindo o 'The Voice'. Depois ganhámos um outro programa, conhecemos o nosso atual manager e criamos uma conexão imediata. Três anos depois voltámos para Portugal porque sentimos que a base da nossa música estava aqui. O público português cada vez mais é fã de outros ritmos que não os mais ‘tradicionais’.

Conseguiram sentir essa abertura por parte do público?

A: O nosso objetivo inicial foi unirmos a lusofonia através da música, da cultura, e mostrar às pessoas o quão ricos culturalmente nós somos. Começámos a ter um feedback muito positivo das pessoas que nos seguiam há algum tempo e que perceberam aquilo que estávamos a tentar comunicar.

Essa abertura começou, inclusive, a sentir-se nas rádios portuguesas e aqui o Anselmo Ralph foi quase pioneiro nisso. Sentem que fazem parte dessa nova geração que impulsionou a mudança?

F: Fazemos parte da geração que fez com que a música africana deixasse de ser um tabu. Ficamos orgulhosos por fazer parte desse grupo que acredita que a música não tem cor ou rosto. Desde que a pessoa sinta a verdade e o ritmo, ela deixa de ter uma etiqueta. Trazemos uma nova Lisboa, que hoje existe. A nossa música veio mostrar que dois jovens que saíram do sul de São Tomé e Príncipe, de uma zona que tinha uma média de cinco mil pessoas, podem chegar e fazer a diferença um pouco por todo o mundo.

É difícil manter a autenticidade numa época em que a música se torna cada vez mais massificada?

A: Acreditamos que cada música é um pedaço de cada sentimento, por isso, quando é verdadeiro, as pessoas vão escutá-la vezes sem conta. Queremos ficar mais próximos da alma e do coração das pessoas e assim distanciarmo-nos do ‘fast food’ da música.

F: Procuramos encontrar um equilíbrio. Mas cada música tem de ter o esforço de um álbum lá dentro, para que não chegue e dois meses depois seja esquecida.

Quando fomos comprar a nossa primeira casa, quando nos encontrámos com o construtor ele ia fazer duas casas ao lado uma da outra

Como é que funcionam no processo criativo, a que funções cada um se dedica mais?

A: A música para nós é como se fosse uma necessidade espiritual. Todos os sítios onde estamos temos o telefone connosco porque sabemos que a qualquer momento pode aparecer uma ideia. Quem escreve mais é o Fradique, eu fico mais à vontade a fazer melodias.

E nunca se desentendem?

F: Temos maturidade suficiente para dizer ‘a tua ideia é melhor do que a minha’. Pelo menos até agora temos tido esse equilíbrio.

A: Para nós não existem ideias más, existem ideias, depois analisamos o conjunto e vemos o que é que é melhor.

No final do concerto, fãs correram atrás do carro, houve até uma que levantou o vestido

Sendo irmãos e trabalhando em parceria passam muito tempo juntos. Imaginamos que para resultar tenha de haver uma ligação muito grande entre os dois…

F: Quando fomos comprar a nossa primeira casa, quando nos encontramos com o construtor ele ia fazer duas casas ao lado uma da outra. Depois dissemos que não tinha como isso acontecer, convinha que cada um ficasse num determinado sítio para nos sentirmos bem e construirmos as nossas coisas pessoais. Acabámos por comprar em lugares separados e isso faz com que a relação cresça mais ainda, porque toda a gente precisa do seu próprio espaço.

Como é que lidaram com a chegada da fama? As fãs em São Tomé são muito diferentes das portuguesas, por exemplo?

A: Em África em geral há muito euforia, claro que aqui também há, mas lá é diferente, não sei se é de haver calor o ano todo [diz enquanto se riem os dois]. Quando vamos para os concertos é mesmo agressiva [a euforia]…

Têm alguma história relacionada com fãs realmente engraçada e que possa ser partilhada?

A: Sim e esta foi em Angola. Estávamos a chegar numa carrinha com vidros escuros, houve uma fã que nos viu e começou a gritar, depois centenas de pessoas começaram a correr atrás da carrinha. No final do concerto, mais fãs correram atrás do carro, houve até uma que levantou o vestido...

E é fácil conseguir separar essa relação mais efusiva dos fãs com a vida familiar estável que estão a construir?

F: Sim, desde que os fãs compreendam e respeitem esse limite, tudo corre bem. Mas também é muito difícil sairmos e dizermos vamos a uma discoteca.

Quem nos deu conselhos fantásticos foi o Tony Carreira. Disse-nos coisas que vamos levar para o resto da vida

Mas isso acontece porque fazem questão de se resguardar?

F: É que já nos divertimos bastante cada vez que vamos para algum espetáculo e estamos sempre em bons lugares. Sairmos de casa na folga é muito difícil, porque já viajamos bastante. Encontramos muitas coisas interessantes lá fora, depois voltamos para casa.

Já nos disseram como forma recebidos pelos fãs... E na indústria musical, como é que os Calema foram recebidos por outros artistas?

A: Sempre tivemos muito apoio e fomos muito encorajados desde o início. Foi uma receção muito saudável por parte dos artistas que tivemos o prazer de conhecer.

Acho triste alguns artistas pensarem que a música pimba não tem valor

Houve alguém que vos tenha dado um 'empurrão' especial?

F: Claro, a nossa equipa. E outras pessoas que deram alguns conselhos. Lembro-me que quem nos deu conselhos fantásticos foi o Tony Carreira, quando participamos no álbum dele. Disse-nos coisas que vamos levar para o resto da vida. Era alguém por quem, antes de conhecermos, já tínhamos um grande respeito, pela sua carreira. Ele leva consigo a cultura portuguesa e defende-a sem receio, sem essa forma errada de ver em que a música é pimba, é isto e aquilo… cada música é única.

Acho triste alguns artistas pensarem que a música pimba não tem valor. Quando ouvimos uma música tradicional portuguesa, por exemplo do Minho, sentimos que tem magia lá dentro, algo que se for bem trabalhado chega a todos os cantos do mundo.

Essa geração de que falam está também em mudança, por exemplo, nos movimentos contra o racismo. Como é que viveram isso?

A: Nós e outros familiares já sofremos de comportamentos preconceituosos. O racismo também se deve à ignorância, à falta de conhecimento das pessoas em relação à cultura e essas manifestações foram a gota de água. A primeira coisa que tem de se fazer é admitir que há um problema de falta de conhecimento das pessoas que têm esse tipo de preconceito. Depois há que começar a informar os mais jovens e os mais velhos. Na sociedade temos de ser antirracistas, ou seja, quando vemos situações dessas a acontecer podemos intervir. Podemos ser esse veículo para sensibilizar essas pessoas.

F: Acho que é importante nós, os pais, educarmos os nossos filhos a corrigir determinadas coisas que inconscientemente usamos todos os dias. Educar para terem uma mente mais aberta, porque cada ser humano, independentemente da sua orientação sexual, escolhas e origens, é importante pelo facto de ser humano e ponto final. Quando cheguei a Portugal foi a primeira vez que vi um grande número de pessoas brancas, foi um impacto mas não foi algo que tenha levado para o lado negativo. Assim teremos uma sociedade mais justa, porque é muito triste ver que há pessoas que se acham superiores às outras apenas por causa da sua classe social, cor, etc.

Recordando por exemplo o preconceito que vocês referiram em relação à música pimba, já sentiram o preconceito racista ou qualquer outro tipo de preconceito em relação à vossa música?

A: Sim, claro. Todos nós, preto, branco, mulato, amarelo, temos de nos consciencializar que esse tipo de preconceitos não são saudáveis. O que acontece aqui em Portugal com o pimba, também acontece com o kizomba. Por isso esse trabalho tem de ser iniciado agora. Tem de haver uma educação, assim daqui a uma ou duas gerações isso será ultrapassado.

F: Temos de dar uma oportunidade. As pessoas têm de procurar saber um pouco mais sobre o outro. Se nos fecharmos ficaremos cegos.

Alguma vez chegaram a pensar em desistir da música?

A: Acho que todos nós temos esse ‘clique’. Depois há algo que surge… ‘será que eu estou a fazer a coisa certa?’. Quando começamos a crescer começam a aparecer responsabilidades. É natural. O acreditar vence sempre.

Mas houve momentos em que tiveram de deixar a música de lado…

A: Em França. Já tínhamos experimentado várias coisas, estava a funcionar mas não era aquilo que previmos. Foi nesse momento em que decidimos fazer o primeiro tema com a Kataleya. Foi aí que recebemos o suporte das pessoas.

F: E é importante termos uma equipa de familiares e amigos porque eles têm uma visão de fora. Temos de ter alguém ao lado a dizer para lutar.

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Foi por isso que tiraram cursos que não estavam diretamente relacionados com a música, para terem um plano B?

F: Eu escolhi multimédia. Desde miúdos que os nossos pais nos diziam para termos um curso caso a música não funcionasse.

A: Quis fazer algo relacionado com a música, neste caso o som. E fiz audiovisual, que não cheguei a concluir, mas depois continuamos a auto-formar-nos.

O que têm pensado para o futuro?

A: Nesta quarentena aproveitamos para adiantar alguns trabalhos, há algumas participações que iram conhecer, por isso fiquem ligados nas redes sociais.

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