Retratos Contados: Vamos agora falar dos seus avós, Alice? O seu caso é diferente
Alice Vieira: Uma vez perguntaram-me o que é que eu queria ser quando fosse crescida. Eu disse que queria ser enjeitada, e as minhas tias com quem eu vivia puseram-me no quarto o dia todo, de castigo, por dizer uma coisa dessas, que horror. O que eu não queria era dizer que era adotada, nunca quis.
A minha família é muito complicada. Eu pertenço a duas famílias da zona de Torres Novas. Uma é a família Vieira, e outra a família Vassalo. Para verem como aquilo era complicado, havia uma tia-avó que dizia: «Vieiras e Vassalos, é tê-los e largá-los». Eu nunca vivi com os meus pais, portanto os meus avós não existiram na minha vida. O professor João dos Santos (médico psiquiatra e pedagogo) disse: “nenhuma criança pode viver sem ter uma avó e uma aldeia; e se não tem, tem de os inventar.” E foi o que eu fiz.
Fui inventando avós em pessoas que eram primas muito afastadas, mas que tinham muita paciência pra mim. Uma delas, eu chamava-lhe mesmo avó, era a Maria Lamas jornalista, escritora e ativista. Um dia, já eu era crescida, zanguei-me com toda a gente, bati com a porta e fui viver com ela para Paris.
Ou seja, inventei a avó e a aldeia que não tive. A aldeia donde a minha família era realmente, eu nunca lá ia, tinha sido largada por outros sítios e não tinha lá nenhumas raízes. Mas eu até sei a história dos meus avós biológicos. O meu avô Vassalo casou com duas irmãs: primeiro casou com uma irmã e teve dela uma criança, depois a mulher morreu. No leito de morte, pediu-lhe uma coisa que não se pede a ninguém: “casa com a minha irmã”, e o palerma disse que sim e casou. Acho que esta outra irmã era uma megera, e essa é que foi a minha avó. Este avô era um republicano dos quatro costados, muito amigo do António José de Almeida. Um dia, o António José de Almeida convida-o a ele e a outros os a irem com ele para comemorar o centenário da independência do Brasil e ele nunca mais voltou. Nunca ninguém soube o que tinha sido feito dele. Nunca mais voltou. Acabou aí a história do avô Vassalo. Eu ainda tenho algures uma fotografia que essa minha prima-avó me deu, uma fotografia do casal, e até sou parecida com a avó-megera.
RC: Foi a redenção a que ela teve direito. (risos)
AV: Mas se calhar também por isso, por nunca ter tido nenhuma relação com os avós, nem com os meus pais, sempre disse pra mim própria que quando tivesse filhos isto nunca lhes iria acontecer. Acho que cumpri bastante bem o que eu determinei.
Uma das tias que me criaram, que é quase minha mãe, tem oitenta e nove anos, e no outro dia ligou-me e disse que me ia buscar a casa para almoçar, e fomos. Ainda guia! E onde é que nós fomos? Às Docas! Chegámos às Docas, e os empregados todos: «Como está, Sra. Dona Aurora?» E eu, muito espantada, disse: «Tu vens aqui muito?» E ela: «À noite, é bem melhor.» (risos)
RC: Quanto mais depressa os filhos põem a mãe na redoma, mais depressa elas envelhecem. Como se chamam as tias que a criaram?
AV: Esta chama-se Aurora e a mais nova chama-se Maria Arminda, tem oitenta e cinco anos. Mas são as duas uma força da natureza e não me são nada de sangue. Foram elas que me deitaram a mão e conseguiram equilibrar-me um pouco mais.
Ó avó, que idade tinhas quando fizeste sexo pela primeira vez?
RC: E os seus netos, fale-nos mais deles…
AV: A minha neta mais velha, a Adriana, viveu em tantos sítios que a primeira palavra que ela disse foi “adeus”. Já tem 20 anos, e agora está a estudar em Inglaterra, na Universidade em Glasgow, onde está a fazer genética, e ainda hoje eu lhe pergunto: «quando pensas em casa, pensas em quê?» E ela diz: «avó, é o sítio onde eu me sinto bem». Toda a gente pensava que o meu filho só ia ter aquela filha, e ele e a minha nora estavam muito infelizes. Depois vieram mais três! Viveram em Vila Real, depois vieram para Lisboa, estiveram muitos anos na Inglaterra, depois foram viver para Chicago e agora estão cá de novo. Como ela já é mais velha, temos uma relação muito engraçada, conto-lhe coisas que eu não contaria nunca aos meus filhos. O João dos Santos também dizia isso mesmo: “Haver uma geração de permeio faz toda a diferença “. A ela conto-lhe tudo, ela sabe a minha vidinha toda e faz-me muita falta, porque a gente fala muito.
Um dia, a Adriana estava lá em casa, tinha para aí uns oito anos, e disse-me: “avó, ainda gosto muito que me leias histórias, queres ler-me uma história?“; “Sim, quero!”. Eu gosto sempre de ler histórias, e lembro-me perfeitamente que naquele caso era a da Rapunzel, aquela das tranças. A dada altura, diz-me ela: “avó, que idade tinhas quando fizeste sexo pela primeira vez? “
RC: No meio da história da Rapunzel?
AV: Paro, e penso assim: “o que é que eu faço?”. Digo: «já são horas, vai dormir, amanhã a gente conversa», o que é que eu faço? Acabei por ter uma ótima conversa com ela, em que ela me perguntou: «foi com o avô?» «Não, foi antes dele;» «E foi bom?» «Foi, filha, foi ótimo». «É que as minhas colegas na escola dizem-me sempre que é uma coisa muito má.» « Não é nada, diz-lhes que é muito bom, mas não é para já». E eu continuei a ler a Rapunzel. Eu depois contei ao meu filho e à minha nora, e disse-lhes que eu nunca poderia ter tido esta conversa no meu tempo, nem mesmo com estas avós emprestadas que me criaram. Eu não queria era que ela ficasse com a impressão errada da coisa, como as colegas tinham.
RC: O que é que acha que recebeu em herança das pessoas que lhe estão para trás?
AV: À exceção destas duas que ainda estão vivas e ainda me dão muito, não recebi muito porque não contactei com eles. Não tenho histórias deles. A minha mãe e o meu pai deram-me quando eu nasci, tinha quinze dias. Fui a rapariga que saiu mais cedo da casa dos pais! A família de um e de outro deixaram de lhes falar, porque ninguém dá uma filha… Portanto, a partir daí ninguém falou com ninguém. Mas mesmo que eu tivesse vivido com eles teria sido complicado, sempre quis ter uma grande distância. Sei que os meus bisavós tinham uma fábrica ao pé de Torres Novas, numa aldeia que se chama Lapas, uma fábrica de produção de álcool. Sempre fiz questão de dizer “eu não tenho nada a ver com isso, não quero nem nada disso “, até que o meu filho há uns anos pensou que sendo nós os únicos herdeiros, e tendo ele quatro filhos, não fazia sentido ignorar esse património. Portanto, foram para lá e é lá que vivem. Pensando nisto, a única coisa que recebi dos meus antepassados foi isso, a possibilidade dos miúdos terem uma aldeia e de estarem felicíssimos lá. No entanto, eu entro naquela aldeia e sinto-me tão mal, tão mal, que tenho de me vir embora. É um mal-estar físico.
Sou velha e tenho vivido muito, e tenho tido a sorte de ter tido vidas diferentes. As pessoas que estiveram comigo desde os meus dezassete, dezoito anos, essas pessoas é que me deram tudo, com elas aprendi imenso. Eu entrei para o Diário de Lisboa quando tinha dezoito anos, e naquela altura não havia mulheres nos jornais, ou havia poucas. Mesmo antes disso, tudo o que aprendi com as professoras que eu tive no liceu… Andei sete anos no Liceu Filipa de Lencastre e se há coisa de que me orgulho é que a minha sala tem hoje o meu nome. Aquilo foi a minha casa, eu até inventava aulas que não tinha para estar lá, para não ir para casa e elas gostavam todas muito de mim. Era realmente uma grande família! Os avós não marcaram rigorosamente nada, a não ser aquela que eu escolhi para ser minha avó, a Maria Lamas. Essa marcou-me imenso – acredito que aquilo que eu sou hoje, foi por influência dela. Mas o resto não, o resto passou.
RC: E o que é que a avó Alice deixa aos netos?
AV: Olhe o que eu gostava de deixar aos meus netos era uma recordação de “ela estava sempre bem-disposta “. Creio que, a partir daí, a gente pode transmitir os valores todos que quiser sem estar a impingir. O nosso exemplo é a coisa mais importante. A mais pequena já não conheceu o avô (Mário Castrim) mas os outros sim. Por exemplo, o meu marido fazia anos em Julho e já morreu há treze anos, mas não há ano que passe sem que, naquele dia, os meus netos me telefonem a dar os parabéns ao avô. Cantam o “Parabéns a Você”, e o mais pequeno quando chega ao “muitos anos de vida “diz “oh avó, isto é que não está aqui muito bem “; “pois não, filho, passas esse bocadinho, deixa estar”. Nós gostamos de recordar as pessoas com alegria, mesmo as pessoas que cá não estão. Os miúdos gostam de estar com pessoas mais velhas, gostam mesmo, e riem-se muito! E é esta imagem que eu gostava de passar aos meus netos.
RC: E eles servem de inspiração para os seus livros?
AV: Não… (risos) O meu filho e a minha filha, quando eram pequeninos, sim, agora os meus netos não. Mas espere, eles fizeram um livro comigo que é só para avós, não é para crianças. Chama-se “Livro da Avó Alice”, e é um livro autobiográfico que eu escrevi para as avós não serem aldrabadas, nem pelas noras nem pelas filhas. Os mais pequenos fizeram desenhos, participaram muito no livro… Tanto que, quando o livro saíu a apresentação foi feita no Corte Inglês pela Ana Bola que é outra avó maluca – temos uma coisa em comum: um dos meus netos e a neta dela nasceram no mesmo sítio e no mesmo lugar. Andámos as duas atarantadas na Maternidade Alfredo da Costa – mas dizia eu, estavam lá as televisões e eu começo a vê-los a virarem-me as costas e irem para o fim da sala … Era a minha neta Isabel, que com quatro anos estava a dar autógrafos.
RC: E nenhum deles segue as suas passadas?
AV: Só se for depois, com os meus bisnetos. Estes escrevem todos muito bem, leem muito, mas não são escritores. São muito virados para as Ciências, tirando a mais pequena que, se Deus quiser, há-de ir para o desporto. Faz triatlo, natação, futsal… Há dias, estávamos a falar de poluição e ela: “poluição?… Vocês nunca nadaram no Sorraia.”
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