Numa visita ao Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos (CITA), começamos a desenredar os novelos da arte tapeteira que, qual fio de Ariadne, nos leva numa viagem que começa nos campos em redor da vila arraiolense. Aqui se apascentavam ovelhas de raça merina que, aos primeiros alvores da Primavera, eram tosquiadas à tesoura. Obtida a matéria em bruto, começava o longo processo de transmutação. Primeiro, eram as lavagens que a livravam das impurezas, depois, vinham mãos de mulher para a desembaraçar e transformar em pequenos flocos, a chamada carmeação.
Antes de se tornarem fio, as fibras passavam para mãos masculinas para serem cardadas, isto é, desfiadas e penteadas e só depois, em serões de labor esforçado, começavam a nascer as meadas dos dedos das fiandeiras e das suas rodas de fiar. Segue-se o tingimento dos fios feito a partir de corantes naturais, como os lírios tintureiros, o trovisco, o pau campestre, o pau-brasil, o anil, a garança e a cochinilha. Em todos estes processos, havia o sábio aproveitamento dos recursos locais, de técnicas, materiais, objetos e saber-fazer que, ao longo dos séculos, tem mantido viva uma arte que fascina quem a contempla.
Hoje, a ameaça principal à arte tapeteira é a escassez de mão-de-obra e a falta de quem ensine os jovens. Antigamente, a transmissão de conhecimentos era feita no seio familiar, de mães para filhas. Com o aparecimento de unidades de produção, no século XX, muitas jovens aprendiam o ofício com as mestres. Com o declínio das oficinas, essa integração de saberes ficou em risco e, sem formação, a arte pode perder-se.
Hoje, a ameaça principal à arte tapeteira é a escassez de mão-de-obra e a falta de quem ensine os jovens.
Olinda Freixa, 60 anos, é uma das bordadeiras que vai mantendo vivo o tapete de Arraiolos. Sentada numa cadeira baixa decorada ao estilo alentejano - as mais confortáveis para trabalhar, confidencia - é parte integrante do percurso expositivo do CITA, onde demonstra a arte do bordado. Com destreza, vai preenchendo a ponto miúdo o desenho marcado na tela de serapilheira, enquanto esclarece os visitantes, seja sobre as voltas da agulha na realização do ponto ou as dificuldades do ofício. Já perdeu a conta a quantos tapetes lhe nasceram das mãos hábeis em 48 anos de um labor que lhe massacra os dedos, as costas e lhe causa alergias. Teima em resistir. Conhece os meandros do ponto, as possibilidades das lãs, os nomes dos desenhos dos tapetes. “Este é um Santa Teresinha”, explica mostrando o desenho que tem em mãos.
Em 1975, foi uma das fundadoras da cooperativa local para a produção de tapetes onde trabalhou durante três décadas. Na vila já há poucas bordadeiras e todas com idades avançadas. A sua mãe, de 80 anos ainda faz tapetes, mas a filha, seguiu outro caminho. É engenheira eletrotécnica e "não tem tempo para estas coisas". Olinda justifica a falta de artesãs com os baixos valores com que são remuneradas.
Perguntamos como distinguir um tapete autêntico de uma falsificação. Olinda explica que o autêntico se conhece pelo toque e cheiro. O tapete original é feito à mão e ao toque deve sentir-se a sua textura irregular. Também o cheiro a ovelha ajuda a distinguir a tapeçaria arraiolense das imitações, pois tem de ser feita de lã pura de ovelha.
Do oriente e do ocidente
As origens da arte tapeteira de Arraiolos permanecem envoltas em mistério. Três questões em especial continuam a intrigar os historiadores: Qual a origem deste tapete? Que influências tem? E por que razão se desenvolveu em Arraiolos um centro tapeteiro? Há várias teorias, mas poucas certezas.
Segundo o responsável técnico do CITA, o historiador Rui Miguel Lobo, embora faltem documentos que a confirmem de forma inequívoca, uma das hipóteses mais consistentes sugere que a arte tapeteira de Arraiolos estará ligada à expulsão das minorias religiosas do nosso país, após o édito de D. Manuel I, em 1496. Os tapeteiros muçulmanos de Lisboa, forçados a abandonar a capital, rumaram a sul, atraídos pela maior tolerância religiosa e a existência de uma tradição própria das comunidades muçulmanas.
Arraiolos, seria já conhecida entre os mouros pela existência de um grande complexo tintureiro, ativo entre os séculos XII e XV, tal como o atestam as 95 fossas descobertas em escavações arqueológicas na Praça do Município. Esse facto poderá ter sido determinante para explicar a fixação desses artesãos na vila, onde terão iniciado a produção de tapetes. Existe, todavia, um hiato de quase cem anos entre o édito e a referência mais antiga ao tapete que se conhece, que é de 1598, embora seja crível que o início da produção seja anterior a essa data. Especula-se também que o facto de as peças arraiolenses serem bordadas e não tecidas, conforme à tradição islâmica, seria uma forma de camuflar as origens religiosas dos tapeteiros cristãos-novos. Mas, mais uma vez, estamos no campo da especulação.
Arraiolos, seria já conhecida entre os mouros pela existência de um grande complexo tintureiro, ativo entre os séculos XII e XV.
Às incertezas das origens, soma-se a discussão sobre as técnicas e motivos decorativos do tapete arraiolense, reconhecendo-se-lhe influências orientais e ocidentais. As peças em exposição no CITA ilustram quatro fases do processo evolutivo nas decorações: o orientalismo, a transição, a arte popular e o ressurgimento. Os primeiros tapetes eram bordados em telas de linho, com os elementos decorativos contornados a ponto pé de flor, sendo o ponto de Arraiolos utilizado no preenchimento e no fundo. Os tons dessas peças, entretanto esmaecidos pelo tempo, eram vibrantes nos contrastes entre azuis fortes, vermelhos vivos ou laranjas quentes. Os motivos decorativos denotam claramente a influência dos tapetes orientais que chegavam a Portugal, em especial vindos da Turquia, Pérsia e Índia.
A preferência inicial por padrões geométricos, de inspiração turca, cede lugar a elementos mais curvilíneos e policromáticos, ao gosto persa, a que se vão acrescentando as rosetas ou os nós estilizados do manuelino português. Os esquemas decorativos de influência oriental vão, progressivamente, sendo substituídos por motivos mais de feição local. O apogeu atinge-se nos séculos XVII e XVIII, quando, sob o impulso do Barroco, se uniu o imaginário coevo, filtrado pela criatividade da arte vernáculas, a referências da fauna e da flora e, finalmente, a motivos florais.
Bordado à mão por gerações e gerações de bordadeiras que os fizeram chegar aos nossos dias, o tapete de Arraiolos vai-se reinventando.
Seguir-se-á um período de decadência, ao longo do século XIX, em que nos tapetes predominam os tons esbatidos e pardacentos sobre fundos brancos, numa tentativa de imitar as peças mais antigas, cujos pigmentos, outrora vibrantes, se haviam esbatido, como se veio a descobrir por meio de análises feitas às fibras dos tapetes.
É desta altura também a generalização do uso da serapilheira como tela. No final de oitocentos, a arte tapeteira estava agonizante e à beira da extinção. O ressurgimento acontece na viragem para o século XX, com o movimento de colecionismo desencadeado pelo artista plástico e decorador José Queiroz.
Bordado à mão por gerações e gerações de bordadeiras que os fizeram chegar aos nossos dias, o tapete de Arraiolos vai-se reinventando, adaptando-se ao gosto de cada tempo seja nas cores ou nos motivos ornamentais. Nas palavras do historiador Rui Miguel Lobo, "o tapete de Arraiolos é uma das mais valiosas expressões do génio artístico português, assumindo lugar destacado no panorama das artes ornamentais do país". O processo de candidatura desta arte a património imaterial da humanidade da UNESCO está em marcha, quem sabe seja um novo fôlego para a sua preservação.
Texto de Isabel Reis
Artigo publicado inicialmente em março de 2020.
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