Umas vezes é surpreendente, outras inacreditável, outras simplesmente enervante, como um ser humano pode ser tão cheio de contradições. Entre aspetos que consideramos positivos e outros que consideramos negativos, torna-se por vezes muito difícil formar uma opinião sobre alguém, ou conhecê-lo verdadeiramente. Mesmo quem conhecemos desde sempre.

Pessoas de grande sensibilidade são por vezes capazes das maiores insensibilidades. Pessoas enérgicas, assertivas e bem-dispostas com a vida podem por vezes manifestar essa mesma energia no combate verbal e na teimosia de fazer valer a sua própria opinião, desconsiderando a opinião dos outros. Pessoas extremamente carinhosas e afetuosas na maioria das circunstâncias podem, quando se sentem magoadas ou atingidas, ser capazes de magoar intencionalmente outros com a mesma intensidade com que geralmente distribuem afeto. E qual destes diferentes aspetos da pessoa é mais verdadeiro? Provavelmente, ambos.

Harmonizar as nossas próprias contradições pessoais pode ser tão desafiador quanto lidar com as contradições dos outros. Agimos de forma diferente em situações diferentes e muitas vezes também agimos de forma diferente em situações idênticas, sem haver uma lógica ou uma razão para isso. Por vezes agimos racionalmente, outras emocionalmente, outras por intuição. Por vezes as nossas ações contradizem-se, e contradizem-nos aos olhos dos outros. Por vezes as diferenças entre o nosso mundo interior e as que revelamos ao exterior são tremendas e confusas até para nós. Anne Frank, por exemplo, escreveu no seu diário que era um feixe de contradições e que se sentia partida em duas.

De facto, somos seres duais, feitos de polaridades, num mundo igualmente polarizado. Estamos todos na Escola da Vida e precisamos de experienciar e vivenciar os vários lados, os diferentes polos, para tomarmos consciência dos múltiplos aspetos que nos compõe e que constituem o mundo em que vivemos, para encontrarmos, aos poucos, o equilíbrio no meio. Sem conhecermos um extremo, não nos seria possível conhecer o outro extremo, nem saber o que é o equilíbrio. "A verdade não seria reconhecida se não existisse a mentira, nem o amor sem a manifestação do ódio" (Henrique José de Souza).

Os opostos e as contradições que observamos em nós, nos outros e no mundo à nossa volta são necessários e essenciais, porque geram um movimento constante que impede a estagnação da nossa aprendizagem. As atribulações que nos fazem experienciar e as dúvidas que nos suscitam não nos permitem ter muitas certezas sobre o que quer que seja – felizmente: quando temos muitas certezas deixamos de aprender. E é mais difícil ter opiniões definitivas, construir teorias ou fazer generalizações quando o que observamos se contradiz; assim a nossa mente mantém uma abertura a diferentes possibilidades, inclusive à de estarmos errados e precisarmos de rever as nossas “certezas”.

Por vezes é realmente difícil gerir os opostos e as contradições que existem dentro e fora de nós, mas é também graças a estes que aumenta a nossa consciência sobre quem somos e sobre o mundo. O contacto com esses diferentes aspetos e os seus extremos permite-nos aos poucos conhecer os contornos do que nos rodeia e nos compõe, que é essencial para que possamos evoluir… e todos estamos em busca de aperfeiçoamento, mesmo que não tenhamos consciência disso. Essa busca manifesta-se na nossa vida disfarçada na mítica busca da “felicidade”. Afinal, o que é a busca de felicidade, senão a busca de uma paz e de uma alegria que só podem vir do equilíbrio interno?

O budismo esotérico explica que todos somos feitos de tendências positivas - skhandas - e tendências negativas – nidhânas -, as últimas das quais precisam de ser trabalhadas, superadas e transformadas em tendências positivas. Também por isso não faz sentido dividir as pessoas pessoas entre boas e más. Talvez um dos maiores ensinamentos que podemos retirar da realidade transitória e contraditória que nos envolve e nos compõe seja esse: o de não fazermos juízos precipitados ou definitivos sobre nada nem ninguém, para melhor ou para pior. Mesmo pessoas consideradas “boas” podem cometer graves erros e pessoas encaradas como “más” podem praticar atos de genuína bondade.

Falando em contradições, Wolfgang Amadeus Mozart, que aos 5 anos de idade já compunha sinfonias e que morreu aos 34 anos de idade deixando uma obra vastíssima, era no entanto conhecido por ser leviano, fútil, ter uma linguagem rude e exagerar na bebida. Diz-se também que Ludwig Van Beethoven era arrogante, bruto e agressivo no trato, ao ponto de não cumprimentar as pessoas que lhe dirigiam a palavra na rua (antes de ter ficado surdo). No entanto, ambos são autores de algumas das mais belas melodias de sempre e são reconhecidos mundialmente como dois dos melhores compositores de todos os tempos. Estes aspetos menos conhecidos de Mozart e Beethoven não diminuem em nada a sua grandeza, mas faziam parte deles tanto quanto o seu génio.

É mais complicado ainda quando falamos das contradições de pessoas que cometeram actos indiscutivelmente maus e criminosos. Um bom exemplo de contradições extremas ao ponto de parecerem inacreditáveis, são os relatos que nos chegaram de sobreviventes dos campos de concentração nazis, de acordo com os quais muitos dos oficiais SS choravam de emoção ao ouvir música clássica… sim, os mesmos que matavam e espancavam os prisioneiros, aparentemente incapazes de qualquer sensibilidade, empatia por outro ser humano, ou de se compadecerem dele. O que significa uma contradição destas? Como se explica?

A história mostra-nos que os perpetradores de algumas das maiores atrocidades que o mundo conheceu estavam geralmente convencidos de que estavam a fazer o correto, o necessário, ou em alguns casos o “mal menor”. Muitos deles poderiam até ser bons pais, bons maridos, amigos dos seus amigos ou carinhosos com os seus animais de estimação, desde que tudo correspondesse aos seus ideais e crenças pessoais. Quando não correspondia, é que os seus aspetos mais obscuros vinham ao de cima, manifestando-se frequentemente no fanatismo ideológico ou religioso e destruindo tudo à sua passagem.

Apesar de todos possuirmos luz e sombra dentro de nós, é inquestionável que existem pessoas com tendências maioritariamente negativas, capazes de cometer atos desumanos e da maior crueldade. Felizmente, existem outras pessoas, com tendências extraordinariamente positivas, que nos inspiram, orientam e alargam os nossos horizontes. Contudo, a generalidade das pessoas parece possuir tendências positivas e negativas em quantidades semelhantes. O estado do mundo é talvez o maior barómetro e a maior evidência de que existe luz e sombra dentro de todos nós.

Esses diferentes aspetos, por mais que pareçam não encaixar nem fazer sentido, têm de ser conciliáveis: o mundo é, afinal, simultaneamente maravilhoso e tenebroso, um reflexo do estado evolutivo da humanidade. E apesar de parecer que pouco podemos fazer para torná-lo melhor, podemos sempre assumir o compromisso pessoal de fazer o que nos for possível para aumentar a nossa parcela de luz e consciência, iluminando e inspirando os que nos rodeiam tanto quanto possível. O mundo e a humanidade agradecerão.

Vera Vieira da Silva

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