O título de um livro encerra a natureza dessa mesma obra. No caso vertente deste seu A Lua Pode Esperar, diz no prefácio à obra tratar-se do “mais feliz de todos os títulos dos meus livros”. Porquê?

No ano em que o livro foi lançado pela primeira vez, em 2006, o título parecia bastante óbvio. Na época, era evidente dizer-se que a Lua tinha de esperar. Alguns anos depois, até já se fala em fazer turismo na Lua. Mas nem queria ir por esse caminho. O que realmente o título deixa entender, e isto tornou-se bastante acutilante nos últimos tempos, com muita gente a viajar, é a banalização da viagem e uma certa obsessão em colecionar carimbos no passaporte, em dizer-se que se esteve em todos os países do mundo. Há aí uma glória e uma vaidade. O título também é, efetivamente, uma declaração de princípios quanto a esse tipo de viagem. Para mim, viajar não é o histerismo no colecionismo de países. Para mim, viajar é conhecer bem aqueles países que nos dizem alguma coisa e, nesse aspeto, todos os outros podem esperar. E a Lua também.

Dai ser razão para voltar ao livro após quase duas décadas e aos destinos de viagens que lhe dizem muito.

O título ganha hoje muito mais significado do que há quase duas décadas. Entretanto, claro que a maneira de viajar pelo mundo mudou, eu também mudei e o leitor mais atento perceberá essa alteração na minha forma de abordar a viagem.

“Viajar não é o histerismo no colecionismo de países. Para mim, viajar é conhecer bem os países que nos dizem alguma coisa” – Gonçalo Cadilhe
No Nepal. Gonçalo Cadilhe

O Gonçalo escreve na nota de abertura ao seu livro que recolhe textos da fase inicial da sua carreira, “quando a ênfase da escrita recaía mais na potência objetiva dos lugares e menos no efeito subjetivo que eles exerciam sobre o autor”. Qual é o alcance destas suas palavras?

Essas palavras subentendem duas formas de o autor se relacionar com os leitores e também duas formas de entender a literatura de viagens. Iniciei a minha carreira numa perspetiva mais informativa. Escrevi ao longo de dez anos para revistas e jornais, com o cuidado de ir ao encontro do meio onde publicava. Nesse processo, lentamente, também percebi ao longo do tempo o ‘pulso’ do leitor. Aos poucos, comecei a entrar na segunda forma de entender a literatura de viagens, mais subjetiva, emocional, ao encontro dos pensamentos do viajante escritor. Este livro, no fundo, faz como nenhum outro dos meus livros essa ponte, apresenta essas duas visões da utilidade da literatura de viagens.

Esta segunda forma de olhar para a viagem, mais pessoal, é aquela em também mais se expõe. Não tem meramente uma função descritiva, tem também uma função de interpretação e de aproximação e de entrega. Concorda?

Sim, de fragilidade. A verdade é que hoje, com a banalização dos blogues, das publicações no Instagram, no TikTok e também da necessidade de as pessoas terem likes, reparo que os agentes que partilham, que publicam coisas sobre viagens, de uma forma talvez um pouco leviana, expõem-se. Não sei se tudo isto não me tem feito querer ultimamente regressar a esses primórdios, em que a informação objetiva e fiável estruturava o meu trabalho. Atualmente, com tantas fake news, sinto-me outra vez mais inclinado a dar menos de mim e a dar acerca do lugar em si.

“Viajar não é o histerismo no colecionismo de países. Para mim, viajar é conhecer bem os países que nos dizem alguma coisa” – Gonçalo Cadilhe
No Peru, em Machu Picchu. Gonçalo Cadilhe

Parece-lhe que nessas publicações a que se refere há uma certa urgência em passar a imagem de um mundo impoluto, muitas vezes arredado da realidade?

Definitivamente há todo um glamour que é absolutamente construído e que parece sê-lo para servir a emoção de quem publica. Algo como: “Vejam como isto é bonito e como eu estou feliz por estar aqui”. Bem visto, é tudo uma realidade muito básica.

Denomina este seu livro um “catálogo”. Trata-se de um catálogo do seu caminho enquanto escritor de viagens?

Sim, é um catálogo não de destinos, não de carimbos no passaporte, antes um catálogo sobre a forma como fui entendendo e publicando sobre viagens ao longo de três décadas. Ali está o Gonçalo mais objetivo e concentrado em servir o leitor com informação interessante sobre um destino. Mas também está um Gonçalo mais confidencial, a elaborar sobre assuntos que, à partida, são bastante banais, mas que através da escrita e do lugar onde foram vividos ganham algum significado de literatura de viagens. Se quisermos ver um Gonçalo mais divertido com situações anedóticas, também ali está. É o catálogo de como tenho escrito sobre viagens. Sem grande pretensão, é também um catálogo daquilo que se pode encontrar nos diversos estilos da literatura de viagens. Do mais confessional ao mais objetivo.

Cinque Terre
Cinque Terre, em Itália. Gonçalo Cadilhe

“A vertigem do vazio habita dentro de nós”, escreve o Gonçalo no capítulo que dedica à Patagónia. De certa forma vê este lugar como um ponto “que permite acreditar no fim do planeta”. É sedutora esta hipótese de precipício que nos oferecem os lugares ermos?

Somos produtos do meio onde crescemos, da nossa cultura, daquilo com que nos identificamos. Sendo português, ao percorrer uma estrada entre duas cidades, constato que de 10 em 10 ou de 15 em 15 quilómetros, aparece uma nova povoação. Ou seja, a minha noção de planeta é a de um território densamente povoado, com muita história, com o peso da tradição, com esta demografia exacerbada que é também característica de quase todos os países europeus. Se calhar para um aborígene australiano ou para um bosquímano da Namíbia, esta necessidade que eu afirmo de chegar ao fim do mundo, não lhe dirá absolutamente nada. Logo, a frase que transcreveu é entendível por qualquer português. No livro incluí, por exemplo, a Patagónia, a Namíbia, a Tasmânia, lugares que ali reencontro, nas páginas da obra, e que repetem emoções. Claro que tudo isso me seduz.

Entre comboios, aviões e automóveis, o Gonçalo prefere caminhar. “Quem dera não viajar de nenhuma outra maneira”, como nos diz. O que lhe oferece caminhar que não lhe dá outra qualquer forma de locomoção?

 Oferece duas dimensões que não se encontram em nenhum outro meio de locomoção. A primeira é a proximidade, a lentidão e, portanto, a capacidade de olhar, absorver pormenores. Caminhar é um processo muito lento, lento demais, há que o entregar a lugares que estão densamente carregados de emoções. Acabei de regressar há pouco tempo do norte do México. Ali retornei a um lugar que aparece citado no livro, o grande desfiladeiro da Barranca del Cobre [estado mexicano de Chihuahua]. Desta vez não visitei o lugar para caminhar, não era essa a intenção. Este grande desfiladeiro é um exemplo de territórios densamente carregados de emoções. Não podemos atravessá-lo em meia hora de carro. Ali caminhamos durante dias e sentimos que estamos, efetivamente, lá para retirarmos o máximo do lugar. Por exemplo, no meu livro África Acima faço a descrição de um trekking de seis dias no grande desfiladeiro da Namíbia.

Um outro aspeto associado à caminhada prende-se com a introspeção. E para isso basta que caminhemos na marginal de uma cidade portuguesa, frente ao mar ou por um desses bosques onde encontramos cada vez mais trilhos. Sentimos de imediato o efeito de que o mundo se afastou de nós para nos deixar estar um pouco em paz, com o nosso próprio tempo.

São essas duas dimensões da caminhada que são extraordinárias, que são irrepetíveis se queremos, efetivamente, ‘perder’ algum do tempo que nos é dedicado nesta vida, neste planeta, a conhecer o que de mais bonito nele existe.

No seu livro fala precisamente de uma caminhada que o tocou em particular na Patagónia.

Sim. Essa caminhada deu-se em 2005 o que me fez ter a certeza de que queria viver a minha vida assim. Depois disso houve outras caminhadas. Quem sabe se um dia não reúno num único livro os textos sobre caminhadas, sobre trekking, em lugares extraordinários como esse na Patagónia.

Ao falar da Namíbia, país onde regressou amiúde , descreve-o como “a mais surpreendente das nações africanas”. Diz mesmo que ali se avista o lado oculto da Lua. Porquê?

Regresso muitas vezes à Namíbia com o trabalho de condução de grupos. É um destino muito concorrido. Este ano ali fui três vezes e quatro vezes no ano passado. São viagens rumo ao que de melhor tem a Namíbia. O que este local tem de surpreendente, e que não me canso de repetir a quem ali chega, é o facto de a Namíbia não ser um país africano. Passo a explicar: é, de facto, um dos poucos lugares que não pertence a este mundo e onde, sobretudo, podemos viajar em perfeita segurança. Nunca estive na Líbia, mas sei que no sul do país, assim como na Argélia, há lugares extraordinários. Mas, neste momento, quem é que vai para a Líbia? Há uma guerra civil e também o fundamentalismo islâmico. A Namíbia permite-nos trabalhar e viver as emoções sem aquela apreensão de risco que funciona para algumas pessoas.

Dolomitas
Dolomitas - uma cadeia montanhosa dos Alpes orientais no norte de Itália. Gonçalo Cadilhe

Quando escreve sobre Machu Picchu traz-nos o relato de uma criança de que não sabe o nome, a quem chama Ernesto. Vê-o como antítese das crianças entediadas da sociedade ocidental: “Às vezes penso nele, por oposição de ideias. Quando vejo no centro comercial ao domingo à tarde mais um miúdo atafulhado de tecnologias e de calorias, mais um eterno imaturo já consumido pelo tédio”. Chamou um fenómeno a esta criança. O que representou para si este miúdo?

Sobre o autor

Gonçalo Cadilhe nasceu na Figueira da Foz em 1968. Licenciou-se em Gestão de Empresas na Universidade Católica do Porto. Durante os anos da Universidade frequentou também a Escola de Jazz do Porto. Depois de uma breve passagem pelo mundo da Gestão de Empresas, em Abril de 1993 começou a viajar e a escrever sobre viagens de forma profissional.

A partir de 1996 dedicou-se exclusivamente ao jornalismo de viagens para escrever ao longo destes anos, entre outros meios, na Grande Reportagem, Independente e semanário Expresso. Atualmente, escreve crónicas regulares no suplemento da Visão “Vida e Viagens” e na SurfPortugal.

Em 2003-04 deu uma volta ao mundo sem aviões, em 2007 outra seguindo a rota de Fernão de Magalhães e, em 2008, outra ainda para celebrar a sua entrada nos "enta", seguindo as suas ondas de sonho. Tem dez livros publicados e assinou três documentários de viagens para a RTP2. Organiza e acompanha mini-tours pelo globo em colaboração com a agência Pinto Lopes Viagens.

Aqui há toda uma elaboração literária, algo que faço com frequência, ou seja, o de condensar num único momento ou numa única pessoa toda uma experiência de um país. Por exemplo, aqui, no caso do Ernesto, não foi apenas a visão da criança, mas uma forma de retratar todas as dificuldades económicas e toda a crise social do Peru e de tantos outros países da América Latina com graves problemas de governação e de corrupção, ou porque a génese da própria nação resulta de um parto sangrento entre conquistadores e colonizados. São sociedades que não funcionam como um todo, são sociedades muito castigadas. Recordo-me que esse texto nasce na sequência de uma longa viagem pela América do Sul e, portanto, eu estava com todas estas questões que referi muito à flor da pele. Quando escrevi o texto depositei no pequeno Ernesto toda uma mágoa que sentia pelas crianças desses países que eu tinha atravessado.

“Que motivos levam alguém a repetir a experiência de navegar pelo Amazonas a bordo de balsas fétidas, desconjuntadas, lentas e sobrelotadas?” Devolvo-lhe a pergunta: o que o leva a voltar àquele lugar?

Provavelmente também não tenho resposta a essa pergunta. Julgo que se trata de uma pulsão. Há tantas formas de viajar. No meu caso, sempre privilegiei esta ideia de viajar. A primeira vez que li uma síntese desta ideia de viagem foi através da francesa Marguerite Yourcenar, num livro de viagens desta autora. Afirma Yourcenar que viajar significa perceber como vivem as pessoas do país que se visita. Claro que não recuso conhecer os lugares belos, os monumentos, as cidades. Mas, para mim, também é muito importante perceber o que é que significa viver nesses países. Da mesma maneira que o pequenino Ernesto também me dá uma forma de tentar perceber ou descrever a realidade daquelas crianças e, portanto, estes 30 anos de viagens têm sido um catálogo de situações como a que refere no Amazonas, em que eu opto por viajar não por aquilo que o destino possa ter para me oferecer, mas sim pela experiência humana proporcionada.

Vulcão Bromo
Vulcão Bromo na Indonésia. Gonçalo Cadilhe

Há pouco quando falava de Yourcenar referia-se ao livro As Memórias de Adriano? Refere essa obra neste seu livro A Lua Pode Esperar

Não. Por coincidência, acrescentei a referência ao livro As Memórias de Adriano nesta nova edição do meu livro. A Yourcenar tem um livro onde reúne os seus textos de viagens. Claro que no presente estaria um pouco datado. Para a autora algumas viagens extraordinárias do seu tempo são hoje absolutamente banais. O livro a que me refiro dá pelo nome de Uma Volta Pela Prisão, o que é um título extraordinário para um livro de viagens. Encara o planeta Terra como uma prisão. Quando olhamos para as estrelas percebemos perfeitamente o que a escritora quis dizer.

No seu livro também fala do Paraíso, ou melhor de um lugar que nos leva a adiar a ideia de Paraíso. Para si esse lugar é Zanzibar. Um lugar aparentemente sereno. O que guarda desse lugar?

Há aí uma declaração de inquietude, como aquela palavra que os italianos usam quando se ferem a sentir-se fora de um lugar, o "spaesamento", o de não conseguir encontrar referências. Não se trata de um choque cultural, é diferente disso, é mesmo sentir que há ali qualquer coisa que não funciona. Foi a ideia que trouxe de Zanzibar. Estava a fazer uma longa viagem por África e tive a oportunidade de conhecer Zanzibar num voo barato a partir da capital da Tanzânia, a então Dar es Salaam. Fui a Zanzibar para tomar contacto com a vertente histórica. Essa história, tal como a descrevo no livro, é uma narrativa de violência e de crueldade e de relações humanas muito tensas. E isso continua tudo lá. Talvez isso não nos causasse qualquer impressão há 60 anos, o de sentirmos toda essa tensão entre as várias etnias e culturas que lá vivem. Hoje, Zanzibar é-nos vendido pelos operadores turísticos como o “Paraíso na Terra”, um destino de férias durante o inverno europeu. Por isso, quis abordar o tema para encontrar o paradoxo entre aquilo que eu senti que, penso não andará muito longe da realidade, e a imagem que os catálogos, as revistas e a publicidade nos passam.

A Lua Pode Esperar
créditos: Clube do Autor Editora

Ao referir-se a Myanmar, a antiga Birmânia, olha para os pequenos rituais do quotidiano e vê-lhes a essência daquilo que nos separa daquela realidade. Quer dar-nos alguns exemplos?

Não há muitos destinos neste mundo globalizado em que faça sentido esse exercício que refere. Viajamos cada vez mais para encontrar rituais quotidianos semelhantes aos que temos em casa. Myanmar é ainda um dos poucos países que ficou de tal forma isolado e proibido de acompanhar as tendências globais que, realmente valida esta abordagem. É um país muito pobre, embora com uma riqueza cultural extraordinária. Tem como vizinha a Tailândia, um dos países mais turísticos do mundo. E, de repente, chegamos a Myanmar e encontramos um país que não está parado no tempo, está num outro tempo. Por isso fui várias vezes a Myanmar nos últimos anos.

Diz sentir-se “meteoropático” na África do Sul: “o meu humor salta como um barómetro com as variações das condições atmosféricas”. Porquê?

O texto a que se refere trata não da África do Sul como um todo, mas antes aquele ‘pedacinho’ que, ao olharmos para o mapa, é um daqueles fins do mundo em que só temos oceano, oceano, oceano. Para além de toda a história, de toda a riqueza cultural que esse território guarda, senti muito essa característica, a de um continente que termina numa língua de terra, o Cabo da Boa Esperança. Um local que, obviamente, está muito mais exposto, é muito mais ‘abanado’ pela chegada das perturbações atmosféricas. Em Portugal temos uma situação muito estável em termos de clima. Vivemos numa latitude e numa localização geográfica onde os estados do tempo são muito previsíveis. Há outras geografias que têm um clima à merce de inúmeros fatores. Senti isso em vários locais do mundo. A cidade do Cabo, está ali como uma lança no oceano Antártico, face a essa grande imensidão. A Patagónia também é assim. Há uma passagem no livro em que refiro que os alemães que quiseram subir ao Monte Fitz Roy previram um mês de escalada porque, mesmo no verão, a qualquer momento, o tempo muda. Nesse sentido, voltando agora à África do Sul, reparo que estou muito sensível a essas alterações bruscas das condições atmosféricas, algo que não me acontece em Portugal.

Desfiladeiro Barranco del Cobre, no México.
Desfiladeiro Barranco del Cobre, no México. Gonçalo Cadilhe

Usa uma expressão deliciosa quando se refere aos livros de Steinbeck. Diz que estes livros “em caso de hipoglicemia, ajudam o turista europeu a reconciliarse com a América”. Porquê?

A América tem um papel importante na forma como é vista pelo europeu e, sobretudo, para o europeu que tenha noção e memória da importância daquele país na Segunda Guerra Mundial e também na criação daquilo a que chamo o século americano. Quando vamos hoje à América, como simples turistas, temos alguma dificuldade em testemunhar naquele quotidiano o que referi. Penso que é necessário construir essa nossa perceção para podermos desfrutar da América como o lugar importante que é. John Steinbeck é um dos romancistas que nos deu uma ideia da América. Por exemplo, o New Deal de Roosevelt, com a intenção de reformar a economia, foi também muito influenciado pela publicação do livro As Vinhas da Ira. Steinbeck não foi apenas um lírico que escreveu sobre o bem e o mal, ele contribuiu para que a própria América tivesse uma perceção das suas injustiças e as melhorasse. Não é por acaso que tenho uma admiração pela figura do Steinbeck.

Que Gonçalo era aquele que escreveu as primeiras crónicas deste livro em 1995 e que homem é hoje?

Sinto que não tenho de me envergonhar do percurso que fiz. Noto que há uma evolução dentro de uma certa coerência. Uma evolução lógica e também um certo rigor, uma certa honestidade intelectual para escrever coisas em 1995 que, 20 anos depois, eu ainda considero bem escritas.