Stranger Things. O Voo de Ícarus é um livro inspirado na série de sucesso da Netflix e centrado numa das personagens preferidas, Eddie Murson, interpretada pelo ator Joseph Quinn. O excêntrico estudante da Hawkins High School e presidente de seu "Hellfire Club" chega às páginas deste novo livro assinado pela escritora e argumentista de televisão Caitlin Schneiderhan. O seu gosto pela fantasia começou com as histórias de Terry Pratchett quando tinha 13 anos e, desde então, tem vindo a aprofundar-se. Nascida em Silver Spring, Maryland, vive atualmente em Los Angeles.

Em Stranger Things. O Voo de Ícarus, publicado em Portugal pela Gailivro, a Eddie Munson faltam-lhe apenas mais alguns meses para sobreviver na Hawkins High. E que melhor forma há de passar o tempo do último ano de escola, senão a participar em sessões de Dungeons & Dragons com o Clube Hellfire, e a dar concertos com a sua banda, Corroded Coffin?

No pior dive bar da cidade, Eddie conhece Paige, alguém que conseguiu um milagre: fugir de Hawkins e construir uma vida ‘superfixe’ a trabalhar para um famoso produtor musical em Los Angeles. Paige não é apenas a definição de durona – com um gosto musical extraordinário -, ela revela-se a única pessoa que realmente gosta de Eddie como o barbo que ele é, em vez da encarnação do diabo que todos veem. O melhor de tudo? Ela quer dar-lhe a oportunidade de fazer algo por si mesmo. Ele apenas tem de conseguir gravar uma demo com as melhores músicas dos Corroded Coffin. Só há um problema: custa dinheiro, que Eddie não tem. Mas ele está disposto a fazer o que for preciso, mesmo que isso signifique confiar no pai, Al Munson, que acabou de regressar à vida do filho com outro esquema duvidoso na manga. Ainda assim, Eddie sabe que é a sua única opção para ganhar dinheiro suficiente o mais rápido possível. É um risco, mas se correr bem, ele terá finalmente um bilhete para sair de Hawkins. E Eddie cedo pressente que 1984 será o seu ano.

Do livro Stranger Things. O Voo de Ícarus publicamos o primeiro capítulo:

Bem. Estás morto.

Estarrecido e boquiaberto, o miúdo olha para mim

do outro lado da mesa, exibindo o aparelho prateado, brilhante.

– Não estou nada!

– Lutaste com um kraken sozinho. Estás mais do que morto, meu.

Stan dá-me um pontapé ao de leve na canela.

– Podes dar-lhe mais uma oportunidade? Ele é novato.

– Já joga isto há mais de um ano. Olha lá, ó novato…

– Gareth – resmunga o miúdo por debaixo dos caracóis.

– Quantos pontos é que tens?

Ele sussurra qualquer coisa que não entendo; só sei que rima com Nero.

– Foi o que eu pensei. Então deixa-me orientar-te para a próxima jogada. – Inclino-me para a frente, uma mão assente de cada lado do meu tabuleiro de Dungeon Master. – É o último ataque do monstro que dá cabo de ti. A agonia consome-te e acaba com a tua força de vontade. E quem paga são os teus pulmões.

Ronnie atira-me o apagador à cabeça.

– Deus do céu, Eddie! – diz ela, com um sorriso.

– Por puro instinto, tentas respirar. Mas estás a três metros e meio de profundidade no oceano Solnor e o resto do teu grupo já está em terra. Não há ninguém para te salvar quando a água do mar te entra pela garganta.

– Isso é sinistro – comenta Dougie, com os olhos muito abertos e fixos em mim.

– Ninguém que te vê nesse sofrimento, a afogares-te, inerte, nas profundezas do desconhecido. É assim que acaba o conto de Illian, o Invencível, metade-elfo, paladino e campeão das Terras Perdidas.

Ouço uma onda de aplausos vindos da mesa – o respeitoso louvor dos meus jogadores. Ronnie e Dougie são os mais entusiastas, ele chega mesmo a levantar-se para me dedicar uma vénia de apreço. Tenho de admitir que adoro esse seu gesto. Por seu lado, Gareth afunda-se na cadeira, fazendo rolar o seu D20 com um dedo desalentado.

– Isso é uma treta – diz.

– Qual é o teu problema, Gareth? – pergunta-lhe Dougie. – Tiveste um monólogo-de-morte do grande Munson. Só isso vale, tipo, ouro.

O puto encolhe os ombros escanzelados até quase tocarem nas orelhas, mas mesmo assim, lança um olhar mortífero a Dougie.

– É suposto estar feliz? Ele matou-me!

– Não és especial, ele está a tentar matar-nos a todos!

– Okay. – Levanto as mãos, tentando evitar a iminente explosão. – Como vosso humilde Dungeon Master peço-vos, cavalheiros, que me deem o prazer de fecharem as matracas.

Eles calam-se. O que me dá tempo para olhar nos olhos de cada um dos jogadores, um a um… enquanto me esforço por decidir que porra vou fazer a seguir.

O Hellfire não está propriamente a rebentar pelas costuras; contando comigo, só tem seis membros. A Ronnie e eu juntámo-nos ao grupo na primeira semana do nosso nono ano e ainda que Dougie tenha resistido a «juntar-se ao clube dos nerds», bastou-lhe um mês a ouvir-nos debitar piadas relacionadas com as nossas sessões de jogo para o vermos praticamente a suplicar por um lugar na mesa.

Stan, do décimo primeiro, juntou-se a nós no ano seguinte, embora o seu comparecimento nas reuniões seja… uma incógnita. A sua família meteu na cabeça que D&D é uma cena concebida pelo Satanás, e que tocar sequer num dado com mais de seis faces seria o suficiente para lançarem o menino deles diretamente para as chamas da maldição eterna. Stan esforça-se por dar a volta a estas tretas, justificando-se perante os pais com falsas desculpas de explicações de álgebra semanais, e entregando à Ronnie toda a sua parafernália Hellfire para ela guardar em casa, não vá a cusca da mãe encontrar alguma coisa. Mas mesmo com todas estas manobras de diversão, Stan falta sempre pelo menos a um jogo em cada três.

Jeff, do décimo ano, já faz parte do Hellfire há dois anos, mas parece que pertence há muito mais. Costumava jogar com o irmão mais velho antes de entrar na Hawkins High, e sabe quase tanto sobre o jogo quanto eu. Definitivamente, toca baixo muito melhor do que eu, razão pela qual o recrutei de imediato para os Corroded Coffin2, para misturar os sons de uma forma que nem a Ronnie, o Dougie ou eu jamais conseguiríamos.

E depois temos este puto do oitavo, Gareth que está a olhar para a parede que tem um póster plastificado dos presidentes americanos como se quisesse usá-lo para praticar tiro ao alvo.

É bom que não o faça. Tudo o que não precisamos é de fazer parte da lista-de-merdosos de mais um professor, sobretudo quando a maioria deles já se recusa a partilhar o espaço com o «culto satânico». Atualmente, todas as segundas-feiras dou início ao difícil processo de manobras de bastidores com o pequeno punhado de professores com alguma simpatia pela nossa causa, tentando convencê-los a deixarem-nos rolar uns dados nas suas salas, às quartas-feiras, depois do último toque das duas e cinquenta. E a cada segunda-feira, enquanto faço conversa com a professora Debbs sobre a sua iminente reforma, ou apago imaculadamente os quadros no laboratório do professor Vick, faço a mim próprio a mesma pergunta: «Por que porra é que eu faço isto?»

Nunca soube responder. Mas a verdade é que continuo aqui. Semana após semana. É ou não é a própria definição de insanidade?

– Talvez devesses ficar feliz, puto – digo-lhe. – Hoje aprendeste uma lição valiosa.

Sinto a Ronnie a olhar para mim. Faz rolar um lápis entre os dedos tão depressa que quase o torna invisível. Não lhe devolvo o olhar.

Gareth dirige-se-me, algo desdenhoso.

– E que valor é que isso tem se eu não vou cá estar para aproveitar?

Embora me aperceba da angústia dele, não é algo com que eu possa lidar agora, com esta malta toda a olhar para mim.

– Ora bem, meninos e meninas – digo, endireitando-me no meu lugar. – Acho que por hoje, ficamos por aqui. – Há um coro de lamúrias, especialmente de Stan e Dougie. – Para a semana cá estaremos, quando a jornada dos nossos aventureiros sobreviventes passar para o labirinto do… Ralishaz, o Louco.

Ainda mal acabei a frase e já vejo Gareth a reunir as suas coisas e enfiá-las às pressas na mochila. Arrasta a cadeira para trás, com o arrepiante som do alumínio a roçar no chão de linóleo, e precipita-se para a porta, abrindo-a com uma violência tal que faz estremecer a parede.

Dougie morde o lábio inferior, vendo a porta fechar-se com estrondo atrás do miúdo.

– Este chavalo é do piorio.

– Cala-te lá, Dougie – diz-lhe Ronnie calmamente. Olha-me de sobrolho erguido numa pergunta velada, mas eu já estou de pé e a caminho da porta.

– À mesma hora – informo-os em tom de aviso, já prestes a sair. – Se se atrasarem levam com o mesmo tratamento do Illian, compreendem?

E saio ao som de um coro de «claro» e «como queiras».

Vejo Gareth já a meio do corredor, a caminhar num passo acelerado.

– Ei, puto!

Por um segundo, acho que ele não vai parar. Mas ele fá-lo, enfrentando-me com um suspiro e um revirar de olhos.

– O que é?

– Estás com pressa para algum lado?

– A minha mãe vinha buscar-me há, tipo, dois minutos. Por isso, ya. – Olha-me com expressão chateada, ajustando a mochila ao ombro. Ao fazê-lo, a bainha da t-shirt prende-se na alça, deixando vislumbrar um hematoma – roxo e certamente doloroso – do lado direito das costelas.

Pré-publicação: “Stranger Things. O Voo de Ícarus” e um Eddie Murson mortinho por sobreviver à Hawkins High
créditos: Gailivro

– Já me expulsaste do teu clube. O que é que queres mais?

– Ei, ei, calma lá. Quem é que falou em expulsão?

– Tu. Quando me mataste.

– E então?

– Então… – O miúdo parece agora na dúvida, movendo o peso do corpo de um pé para o outro. – O Illian foi à vida, por isso eu fui à vida.

– Então crias uma nova personagem.

Ele pestaneja, como se nunca tivesse considerado essa possibilidade.

– A sério?

– Tu achas que eu vou deixar sair alguém suficientemente doido para querer envolver-se com um kraken? Nem pensar! – Inclino-me para ele, em tom de conspiração. – Sem ti e os teus tomates, os outros idiotas não se aguentam nem um milésimo de segundo no Labirinto de Ralishaz.

– Vai ser assim tão mau?

– Pior do que pensas – digo, rindo-me do sorriso metálico de Gareth. – Vamos ter de te arranjar outra personagem. Estás livre amanhã depois das aulas?

– Tenho de pedir à minha mãe – responde ele, mas assente com a cabeça com tanta convicção que dá para perceber que virá à reunião quer a mãe deixe, quer não.

Ouve-se uma buzinadela distante vinda do estacionamento da escola. Alguém está a perder a paciência.

– Merda, tenho de bazar! – exclama Gareth.

– Vai lá, meu.

Ele apressa-se pelo corredor, mas para de repente e volta-se para mim.

– Tens mesmo a certeza? – pergunta, vacilante. – Que posso voltar?

– Enquanto quiseres fazer parte do Hellfire.

Ele faz um aceno de cabeça, baixando o olhar como que a decorar aquelas palavras.

– Okay – diz, antes de correr para a porta da escola. Fico a vê-lo até desaparecer.

– Uau, e eu que deixei os lenços de papel em casa…

Ronnie está atrás de mim, com um dossiê atafulhado nos braços. Quando passo por ela, finge limpar os olhos e solta um grito divertido quando eu a empurro, fazendo-a perder o equilíbrio.

– Cuidado! – exclama, afastando-me. – O Stan passa-se se eu deixar cair o dossiê dele.

– Tens alguma coisa para me dizer, Ecker?

– A única coisa que eu ousaria dizer neste momento é: dás-me boleia?

Reviro os olhos para ela.

– Mas é a última vez.

– A última vez – promete-me Ronnie, seguindo-me até ao estacionamento.

Ambos sabemos que não será a última vez; mas a minha gestão das falinhas mansas da Ronnie representa a base da nossa amizade. Ela saca-me pequeno favores; a mim cabe-me fingir que sou responsável, e ambos saímos beneficiados. É assim desde que eu fiquei com a carrinha do meu Pai quando fiz dezasseis anos. E tem sido assim desse o dia em que nos conhecemos.

«O que é que estás a fazer?», perguntara-me ela. Aos oito anos, já era mais alta do que eu, olhando-me por cima do ombro na plenitude das suas jardineiras ruças, tal qual uma pequena fazendeira.

Aquilo que eu estava a fazer era a ter pena de mim próprio. Bastou ao meu Pai um simples telefonema de um velho companheiro de bebedeiras para ele sair porta fora com as suas tretas do costume. «Daqui a uma hora já estou de volta» e «sabes ligar e desligar o forno, não sabes?» Eu passara a noite à espera dele, de olhos postos na entrada de casa, esperando, esperando e esperando até adormecer onde estava, encostado à janela.

Aquela foi a primeira vez de muitas mais que ele desapareceu da face da terra. Só que na altura não percebi. Por isso, deambulei sozinho pela casa durante dias, vivendo de sanduíches de pão bolorento com manteiga de amendoim e refrigerante morno e sem gás, até o meu tio Wayne se aperceber do que se estava a passar e vir resgatar-me, levando-me para viver com ele na sua velha caravana até «o Al meter juízo naquela cabeça de merda e aparecer».

Detestei o parque de caravanas, acima de tudo por saber que o Pai não saberia onde me encontrar quando realmente aparecesse. Mas o tio Wayne não acreditou em mim quando eu insisti teimosamente que um rapaz de oito anos sabia muito bem cuidar de si próprio, por isso tive mesmo de ficar naquele parque ferrugento, sem nada que fazer a não ser escavar buracos no bosque que havia lá ao lado.

Até ao dia em que apareceu lá outra criança.

Vim a saber depois que Ronnie também tinha acabado de se mudar para o parque de caravanas. Vivia com a avó porque o Pai tinha morrido e a mãe enlouquecera, falando apenas para as paredes. Tinha cabelo e olhos castanhos, e sempre que nos viam juntos, toda a gente achava que éramos irmãos. Quando lhe confessei que andava a escavar um buraco até à China, ela perguntou se podia ajudar porque também não tinha nada para fazer.

Mais tarde percebi que era mentira e que ela escolhera deixar de ver o M*A*S*H com a avó para poder estar comigo. Só que naquela altura eu andava demasiado ocupado e feliz a construir uma amizade pela primeira vez para sequer suspeitar de tal coisa. Mesmo quando o meu Pai regressou a Hawkins, com uma história da treta sobre um gajo do Kentucky que lhe devia dinheiro, e me levou de volta para casa, a Ronnie e eu continuámos muito próximos.

Praticamente todo o pessoal do Hellfire tem mães a virem buscá-los à saída e fotografias de família emolduradas por cima das lareiras. Ajuda ter alguém com quem contar cuja vida nunca se baseou num cenário idílico e a roçar a perfeição.

– Vais para casa? – pergunto, ligando a ignição. A Ronnie atualmente está tão alta que quase bate com a cabeça no teto, e a pala do seu boné de bombazina fica mesmo resvés.

Ela concorda, pousando o dossiê aos pés.

– A avó quer-me em casa para jantar.

– Mas logo à noite vens comigo, certo?

Dá-me um soco amigável no ombro e responde:

– Tu preocupas-te demasiado.

Continuamos a conversar enquanto a carrinha desce a rua em direção à periferia de Hawkins. É uma viagem familiar e confortável, e já perdemos a conta às idas e voltas que fizemos juntos. Quando tínhamos treze anos, eu cheguei a pensar que isso poderia querer dizer que namorávamos – ter uma amiga que me conhecia tão bem fazia-me sentir que a nossa relação era especial. Ao fim de algumas semanas a matutar nesta hipótese, decidi que a única opção que me restava era avançar e dar-lhe um beijo para tornar a nossa relação oficial.

Não estava de todo preparado para o modo como ela me afastou e falou comigo quando me inclinei para beijá-la. «Mas que porra é que se passa contigo, Munson?!», gritou ela. Tudo o que consegui fazer foi corar e gaguejar e fugir dela como um cobarde. Mas alguns dias depois, quando as coisas acalmaram e já nenhum de nós sentia que o mundo ia acabar, Ronnie explicou-me que eu não era o único de quem ela não gostava dessa maneira. Que, na verdade, nunca tinha tido uma paixoneta por ninguém e perguntou-me se isso me incomodava.

Considerei a questão por uns momentos. «Isso quer dizer que podemos continuar a ser amigos?», questionei.

Ela deu-me um murro no braço, no mesmo sítio onde sempre dava. «Não sejas idiota», respondera-me.

Agora, limito-me a soltar um bufar quando a vejo pôr os pés em cima do meu tabliê.

– A sério?!

– Não vou pisar as cenas do Stan. E não tenho culpa que a tua carrinha seja minúscula.

– A minha carrinha não é o problema, tu é que tens umas pernas incrivelmente compridas.

– Pois, deixa-me contar-te um segredo sobre estas pernas incrivelmente compridas – diz ela. Não põe os pés para baixo, e eu sei reconhecer quando perco uma batalha, por isso calo-me. – Daqui a quatro meses vão estar a entrar no seu novo apartamento, em Nova Iorque.

Quase que travo a fundo.

– Não!

– Sim!

– Conseguiste a bolsa?

Ronnie sorri.

– NYU, curso de 88, baby. Bolsa. Integral.

Agora sim, travo a fundo, encostando à berma.

– Caraças. Caraças! Quando é que…

– Ontem à noite.

– Ontem à noite?! E não dizias nada?

– Estou a dizer-te agora.

Eu sei porque é que ela não me contou antes.

– Ei, tu sabes que eu estou superfeliz por ti, certo?

Ronnie faz um leve encolher de ombros.

– Sim, sei – diz. Mas não me convence.

Porque a Ronnie e eu somos muito idênticos. Os mesmos lares desfeitos, as mesmas roupas em segunda-mão, os mesmos cortes de cabelo ranhosos. O mesmo parque de caravanas. Mas existe uma enorme diferença entre nós. Sempre houve.

A Veronica Ecker vai longe. Vai para a universidade, vai estudar Direito, vai deixar a porra do Indiana.

E o Eddie Munson? Vai morrer nesta terreola imbecil.

A culpa não é dela. É claro que Ronnie não tem culpa. Ela sempre teve muito jeito para a escola, para aprender, e tudo isso. Eu, francamente, nunca vi nenhum sentido nisso. Para mim, a Hawkins High não passa do lugar onde perco oito horas por dia antes de – se for suficientemente charmoso a gabar o neto da professora Debb – conseguir sentar-me com um bloco de folhas quadriculadas à frente e um dado de vinte faces. A Ronnie tira excelentes notas a tudo e tem uma fila de professores dispostos a escrever-lhe cartas de recomendação fabulosas. E eu tenho o apelido…

– Munson.

Seria um eufemismo chamar «toque» ao som que ouço na minha janela. «Martelar» seria mais correto, e é tão alto que temo que o vidro se parta. Sobressaltados, Ronnie e eu voltamo-nos para ver o que se passa.

Sinto um aperto no coração. Estava tão empolgado com as excelentes notícias de Ronnie – e a minha reação de merda perante elas – que nem reparei no carro-patrulha que parou atrás de mim. Agora tenho um polícia à janela, fazendo um gesto para que eu a abra. Com um sorriso sinistro.

– Outra vez? – murmura Ronnie.

– Sempre – sussurro-lhe de volta, abrindo a janela. – Agente Moore, em que posso ajudá-lo nesta linda manhã de primavera?

O cabelo loiro e quase rapado de Moore, e o seu maxilar quadrado, dão-lhe um ar de típico Super-Homem Americano, mas nem o engomado irrepreensível da farda ou o brilhar ofuscante das suas botas conseguem superar a grande barriga de cerveja de quarentão. O tipo sempre foi tido como uma verdadeira estrela da polícia de Hawkins, praticamente desde que eu nasci. Um herói da terra. Ou, pelo menos, sempre foi o que eu ouvi dizer. Já nem sei dizer a quantidade de vezes que ele me perseguiu e chateou, e só piorou quando fiz dezoito anos. Desconfio que esperou por esse momento para passar a assediar-me ainda mais.

Ele abana lentamente a cabeça, fingindo profunda desilusão.

– Logo vi que eras tu, Munson. Quantas vezes é que vamos ter a mesma conversa?

– Essa é uma pergunta a que só senhor agente pode responder. O senhor é que tem sempre a tendência de marrar comigo.

– Vinhas numa condução errática – diz ele. – Será que hoje começaste a beber demasiado cedo?

– Não.

– Acabámos de sair das aulas – intercede Ronnie. Está a tentar ajudar-me, mas eu consigo perceber que não está a resultar.

– Se eu revistar o carro não vou encontrar substâncias ilícitas?

– Nunca encontrou.

A expressão dele endurece. Abre a boca, provavelmente para me pedir que destranque as portas de trás, e eu preparo-me para perder mais uma hora ao vê-lo afastar-se da minha janela.

Mas sou salvo pelo gongo, ou melhor, pelo rádio que tem à cintura, que começa a crepitar.

– Agente Moore, temos um 10-163 a acontecer na Fleming…

Moore solta um suspiro exasperado. Se esta «operação policial» tivesse algum mérito, certamente que responderia que estava ocupado. Mas como não tem, limita-se a adverti-me.

– Fico de olho em ti.

– Promete? – respondo, pestanejando e não desarmo até sentir Ronnie dar-me uma cotovelada.

Ele solta um bufar sarcástico.

– Ri-te. Quero ver o teu Pai a achar piada ao ver-te atrás das grades. Mais tarde ou mais cedo, é lá onde toda a tua família vai acabar.

Não abrimos mais a boca até o vermos dirigir-se ao carro-patrulha. Liga a sirene e passa por nós a alta velocidade. Respiro fundo e alívio finalmente os nós dos dedos, já brancos de estar a apertar o volante com tanta força.

Ronnie não espera nem mais um segundo.

– Eddie…

Mas eu não lhe ligo. Neste momento não consigo ouvir sermões de alguém que acabou de ganhar o seu «bilhete dourado»; alguém a que o mundo não desaponta.

– Tira os pés daí – digo-lhe. Ela fá-lo sem discutir. – Não vais querer atrasar-te para jantar. – E piso o acelerador.

Já que só tenho um lugar para onde ir, ao menos que chegue lá o mais rápido possível.