“A escrita deste livro foi a maior aventura da minha vida. Cozinhar profissionalmente é difícil. Viajar pelo mundo, escrever, comer e fazer um programa de televisão é relativamente fácil”, escreve Anthony Bourdain (1956-2018) na introdução de A Cook’s Tour, Em Busca da Refeição Perfeita (Casa das Letras), livro editado originalmente em 2001, nos Estados Unidos.

A obra inspirada por duas perguntas: “Qual será a refeição perfeita?”, “De onde vem a comida?” levou o autor a iniciar uma busca pelo seu Santo Graal culinário. No processo, Bourdain virou do avesso a noção de "perfeição".

A Cook’s Tour, Em Busca da Refeição Perfeita inicia o seu périplo em  Portugal com uma matança de um porco, após a descoberta que se trata de “um país com muita coisa boa para comer” e “que foi o início de tudo...”. “Em Portugal comecei a notar as coisas que faltavam na experiência gastronómica norte-americana. Os grupos de pessoas a comerem juntas, a família reunida à volta da mesa, a valorização feroz dos pratos tradicionais, a crueldade de viver paredes meias com os animais que vão servir-nos de alimentos”.

Da Califórnia ao Camboja, passando por França, Marrocos, Japão e Vietname, Bourdain faz a crónica das aventuras imprevisíveis, à procura de comida verdadeira, autêntica e fresca, sem qualquer medo de se juntar aos locais e comer como estes. Não importa qual é a especialidade da casa, sejam os testículos de cordeiro em Marrocos, o coração palpitante de uma cobra no Vietname, haggis na Escócia ou nattō no Japão.

Chef de cozinha, autor, apresentador de televisão e contador de histórias, Anthony Bourdain nasceu em Nova Iorque em 1956 e morreu no dia 8 de junho de 2018. Famoso por ter percorrido o globo no seu programa televisivo de aventuras culturais e culinárias Anthony Bourdain: No Reservations, ficou também conhecido pelo seu livro Cozinha Confidencial - Aventuras no Submundo da Restauração. Foi de forma notória que se estabeleceu como chef, viajante profissional, bête noir, defensor, crítico social e entusiasta de carne de porco, sendo reconhecido pelo seu sentido de humor cáustico por todo o mundo. Era tão pouco generoso com as coisas que odiava, como evangélico com as suas paixões: viajar, comer e experimentar pratos desconhecidos e internacionais. Trabalhou como chef-executivo na Brasserie Les Halles. Na revista The New Yorker publicou a sua exposição contundente de restaurantes de NYC, “Don’t Eat Before Reading This”, através de críticas incríveis.

Aqui, poderá ler na integra o capítulo “Autoestrada da morte”, no Vietname.

Acabei de ter a experiência mais próxima de quase-morte que alguma vez tive. E estou prestes a ter outra. E outra.  Estou a ser conduzido a toda a velocidade pela Autoestrada 1, a caminho de Can Tho, sentado com Philippe na traseira de um monovolume alugado, buzinando constantemente, em cima do separador central, contra o tráfego em sentido contrário. Há um camião-cisterna a cerca de noventa metros à nossa frente, a vir rapidamente na nossa direção, não mostrando qualquer sinal de se pretender desviar, buzinando também de forma selvagem. Linh e o condutor estão no banco da frente, com os dois operadores de câmara atrás de nós – e estou convencido de que, a qualquer segundo, vamos todos morrer.

Durante a guerra, a Autoestrada 1 era tida como perigosa: snipers, guerrilheiros, emboscadas, minas detonadas à distância, os perigos habituais das táticas de guerrilha. Não consigo imaginar que agora seja menos perigoso. Entenda isto sobre a condução no delta do Mekong: é essencial buzinar constantemente. Uma buzinadela significa “Mantenha-se a fazer o que está a fazer, não mude nada, não faça movimentos bruscos e, provavelmente, tudo correrá bem”. Não significa “Abrande” ou “Pare” ou “Mova-se para a direita” ou “Saia do caminho”. Se tentar fazer alguma dessas coisas na Autoestrada 1 depois de ouvir uma buzina de carro atrás de si – se hesitar, olhar por cima do ombro, abrandar, ou mesmo vacilar por um segundo –, vai encontrar-se imediatamente num monte de metal amassado em chamas algures num arrozal. A buzina significa simplesmente “Estou aqui!”.

Estamos mesmo no meio da estrada, no que seria uma faixa de passagem, se eles tivessem uma coisa dessas aqui. Há uma linha ininterrupta de carros em movimento rápido à nossa direita, sem qualquer espaço entre eles para nos enfiarmos.

E hoje há aqui muita gente, tal como nós, a percorrer a estrada de duas faixas a toda a velocidade e a buzinar como loucos. O camião-cisterna à frente está a aproximar-se. Cada vez mais. Consigo ver a grelha, o logótipo do fabricante russo no capô. O nosso condutor ainda tem o pé no acelerador, não abrandando minimamente. Estamos mesmo no meio da estrada, no que seria uma faixa de passagem, se eles tivessem uma coisa dessas aqui. Há uma linha ininterrupta de carros em movimento rápido à nossa direita, sem qualquer espaço entre eles para nos enfiarmos, há uma torrente constante de carros em sentido contrário à nossa esquerda, e as bermas de ambos os lados da estrada estão entupidas com três e quatro ciclistas, motocicletas, búfalos asiáticos, e scooters – todos carregados com caixas de comida, motores de máquinas de lavar roupa, sacos de fertilizantes, galos a bater as asas, lenha e membros da família. Portanto, não há espaço, de todo, caso o nosso condutor decida de repente, no último minuto, abortar a missão e encostar ao centro. Se ele decidir de repente que o condutor que se aproxima não vai definitivamente ceder neste jogo maníaco a alta velocidade, e que vai ter de se desviar da estrada para evitar a colisão, não há lugar nenhum para onde ir!

em busca da refeição perfeita
em busca da refeição perfeita créditos: Leya

Estamos agora suficientemente perto e consigo ver as feições do condutor do camião, a cor da sua camisa, o maço de cigarros 555 no seu tabliê. Precisamente quando os nossos para-choques estão prestes a encontrar-se, vaporizando-nos a todos numa explosão de líquido dos travões, vidros, sangue e osso, dois carros à nossa direita abrem subitamente um espaço para nós – e, como se fizéssemos parte de uma linha de coros infernais de alta velocidade, enfiamo-nos de volta no trânsito. O camião de água passa com uma terrível rajada de vento, evitando o contacto por menos de um centímetro, e há aquele peculiar efeito de vácuo resultante da queda de pressão que se sente quando, num comboio, passa outro lançado na direção oposta. Philippe apenas olha para mim, abanando a cabeça, e diz:

– Ainda estamos vivos?… Eu… eu tinha a certeza de que aquele camião vinha contra nós. – Ele não estava a brincar.

Recorrentemente, voltávamos a fazer a mesma coisa, saindo da fila para ultrapassar – muitas vezes chegando a ultrapassar um veículo que já ia em ultrapassagem –, ocupando as três filas da autoestrada, gritando diretamente para carros e camiões a fazerem exatamente a mesma coisa na outra direção, buzinando e buzinando, com uma corrente de agricultores e avós e crianças em bicicletas instáveis de ambos os lados, e o ocasional perigo adicional de carros de bois ou búfalos orientais perigosamente salientes na estrada.

Outra vez.

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E mais uma vez. Desta vez, parece um camião do exército, verde-azeitona, carregado de soldados fardados. Vem direito a nós, não abrandando de todo. O nosso motorista não parece preocupado. Está a ter uma conversa agradável com Linh, igualmente alheio, ao que parece, prestando atenção ao que certamente, desta vez, deve ser a nossa desgraça iminente. Ele buzina. E continua a buzinar. Inclina-se sobre aquela coisa como se fosse uma varinha mágica que, de alguma forma, alterará as leis da física. O seu pé ainda está no acelerador, é uma corrida de automóveis. Vejo os nós dos dedos de Philippe a ficarem brancos, depois ainda mais brancos, no apoio de braço do seu assento; vejo os olhos de Chris, o operador de câmara, a crescerem imenso no espelho retrovisor. Há uma retenção coletiva de ar entre o contingente ocidental enquanto todos nos preparamos para o impacto, pensamos fugazmente nos entes queridos, preparando-nos para sermos projetados pelo para-brisas… Mais uma vez, de alguma forma, estamos de volta ao trânsito, uma explosão momentânea de ar enquanto os dois veículos quase beijam tinta. Depois, voltamos de novo à faixa central, buzinando loucamente para um carro lento à nossa frente, colando-nos à sua traseira a 120 km/h.

Há uma retenção coletiva de ar entre o contingente ocidental enquanto todos nos preparamos para o impacto, pensamos fugazmente nos entes queridos, preparando-nos para sermos projetados pelo para-brisas…

Qualquer que seja a zona mágica de segurança que o nosso condutor julga envolver o nosso carro, protegendo-nos de qualquer problema, começamos a pensar que ele deve estar certo. Não há outra explicação para a nossa sobrevivência continuada. Repetidamente a evitar colisões, tão frequentes e regulares que, após uma hora na estrada, começamos de facto a acreditar, contando mesmo com a ideia de que somos invencíveis – que algum juju vietnamita nos impede efetivamente de bater de frente noutro veículo. Avançamos direitos às engenhocas mais impróprias de fabrico soviético, sobre quatro rodas, e com vinte anos, com o pedal de acelerador sempre a bater no fundo, prolongando aquele efeito maricas de Doppler quando passam por nós, com as buzinas a ouvir-se WHOOoooANNnngggg, enquanto a onda de choque nos sopra de lado, na direção a uma família de quatro pessoas numa bicicleta trémula. Em mais de uma ocasião, chegámos tão perto de abalroar um pedestre ou uma bicicleta sobrecarregada que tenho a certeza de que lhes tocámos. Penso que todos nós há muito que teríamos gritado ao nosso condutor para abrandar, talvez até tentado tirá-lo do volante (ele é claramente um louco com a intenção de nos destruir a todos), mas não há um único segundo em que não estejamos paralisados pelo medo, à espera do impacto, ou pelo menos com a certeza de que se falássemos, ou o distraíssemos por uma fração de segundo, isso certamente causaria as nossas mortes instantaneamente.

Eventualmente, já com os nervos esfrangalhados, a fé cega tomou conta de nós. Ou tentávamos o nosso melhor para ignorar o que se passava fora da fina camada de metal e vidro à nossa volta ou simplesmente rezávamos, quase histéricos de medo e exaustão nervosa.

Can Tho é uma cidade ribeirinha de edifícios baixos, com a arquitetura colonial dos seus urbanistas franceses. Demos entrada no Hotel Victoria Can Tho, um dos muitos hotéis de luxo geridos por estrangeiros que se veem cada vez mais no Vietname. É imponente, bonito, com um lobby arejado e branco, chão em mármore preto e branco, piscina e casa de barcos nas margens do rio Mekong, com os quartos em madeira dura de teca e mogno com camas confortáveis e televisão por satélite. Há um centro de negócios, um health club e massagista, um restaurante e bar muito decentes – e uma bateria antiaérea ao fundo da rua. Ao passarmos pelo local da arma, Linh lembra aos operadores de câmara:

– Não fotografar, por favor.

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Pedi um daiquiri de manga assim que chegámos. Meu Deus, não há nada como um bom hotel quando se sobreviveu a múltiplos encontros com a morte. Decido esbanjar dinheiro e envio as minhas roupas a apodrecer de humidade para a lavandaria, marco hora e meia de massagem e ofereço-me um almoço tradicional vietnamita de uma sanduíche club de frango, bacon, alface e tomate. Philippe, num roupão de hotel com monograma, já está na piscina. Em breve, estou oleado sobre uma mesa, meio adormecido, e uma pequena rapariga vietnamita trabalha as minhas costas, por esta altura apenas vagamente consciente da sorte que tenho em estar vivo.

Começo também a pensar que deve haver muitas disfunções penianas na Ásia. Não há outra explicação. Quase tudo o que se possa pensar parece ter sido minuciosamente investigado pelas suas potenciais propriedades de provocar uma ereção. Se o seu empregado ou um amigo o incita a pôr algo na sua boca que há algumas semanas nunca teria pensado em comer, acredita-se que é provável que "o faça forte". Só o desespero pode explicar o que os chineses, por exemplo, fazem em nome da "medicina". Isso é algo que poderá recordar aos seus amigos New Age que enlouqueceram por causa da "medicina holística" e das "curas alternativas chinesas". Dizem que existem ursinhos na China, com drenos nos rins como garrafas de ketchup, recolhendo a bílis de urso em pequenos frascos. Chifre de rinoceronte. Garra de urso. Ninho de pássaro. Embrião de pato. É preciso estar muito inseguro do seu pénis para sequer considerar magoar um ursinho bonito.

Dizem que existem ursinhos na China, com drenos nos rins como garrafas de ketchup, recolhendo a bílis de urso em pequenos frascos. Chifre de rinoceronte. Garra de urso. Ninho de pássaro. Embrião de pato.

E tem de estar realmente preocupado com o seu pénis para comer no restaurante My Kanh, em Can Tho. O nosso empregado cumprimenta-nos e leva-nos orgulhosamente a fazer uma visita obrigatória de pré-refeição aos jardins. É um grande parque arborizado com um estreito caminho de cimento que serpenteia à volta das gaiolas como num zoo, com as opções para os menus. Tudo aqui está disponível para jantar. Perco o apetite assim que vejo o ursinho. Há cobras, morcegos, lagartos, crocodilos, grous, uma pitão de oitenta quilos, macacos e cães. Os cães, assegura-nos o nosso empregado – não de forma muito convincente –, não estão à venda. Passamos por lagos onde se pode pescar o próprio peixe-elefante ou peixe-gato. E no meio deste jardim de tortura, onde as gaiolas parecem irradiar medo, existem pequenos e confortáveis bungalows para onde os homens de negócios chineses e taiwaneses vêm para fins menos próprios, com as suas amantes a reboque. Vêm para comer animais que a maioria dos americanos só viu no Discovery Channel, para absorver, suponho eu, as auras animais de perto – antes de os matar e comer. O plano, então, assumo eu, é resolver o assunto rapidamente, correr de volta para o bungalow e tentar com afinco produzir uma ereção. Os donos do My Kanh, como o nosso empregado de mesa nos mostra orgulhosamente, estão a instalar uma piscina. É um parque temático horripilante de crueldade. E eu fico enojado com tudo isto. Suficientemente mau para querer comer algumas destas criaturas. Mas querer ficar aqui, perto das vítimas, deitar-se na cama com a sua amante, ouvir animais a morrer – que tipo de escapadela romântica de fim de semana é essa?

Philippe e eu contentamo-nos em apanhar o nosso próprio peixe-elefante num lago escuro e estagnado, coberto de película verde, um rapazinho a indicar-nos exatamente onde deixar cair os nossos anzóis. Demora cerca de trinta segundos a apanhar as nossas entrées.

Para os aperitivos, escolhemos umas pernas de rã relativamente pacíficas, uma pequena cobra moída com chips de camarão, amendoins, alho e hortelã, e um pouco de morcego estufado (imagine as entranhas estufadas, temperadas com líquido de arrefecimento do motor). Não comemos animais com olhos fofinhos. Hoje não posso aceitar isso. Philippe e eu olhámos para a nossa comida sem entusiasmo, com uma forte nuvem de peixe em fermentação da fábrica vizinha de nuoc mam a não ajudar nada para melhorar os nossos apetites.

Ninguém devia vir aqui.

O nosso empregado de mesa é um jovem suficientemente amigável, calmo e atento, mas não consigo tirar da minha cabeça que se de repente decidir encomendar algum macaco, ele cortará alegremente a garganta do pequenote com a mesma expressão amigável no seu rosto.

Estou mais bem-disposto na manhã seguinte, quando embarcamos num barco fluvial para ir ao mercado flutuante próximo, em Cai Rang. É linda a visão, o sol a criar coroas de rosa e laranja à volta das margens das nuvens, a luz sobre a água hipnótica. Casas de bambu com telhados de colmo, palmeiras altas, a multidão a andar na beira-mar de Can Tho. O rio em si está repleto de atividade. Os pescadores, com as suas redes tecidas à mão estendem-se como as asas de mariposas gigantes sobre a água, mergulham e puxam com engenhosas alavancas de postes de bambu. Famílias em sampanas passam, sampanas com mulheres solitárias remando da popa e bebés sentados à popa, barcos sobrecarregados com blocos de cimento e materiais de construção. Há postos de gasolina flutuantes: um tanque de gasolina de 3800, pilotado por um velho a fumar ininterruptamente sentado por cima. O tráfego fluvial torna-se mais intenso à medida que nos aproximamos de Cai Rang. As sampanas estão tão sobrecarregadas aqui, tão baixas na água, que não consigo imaginar como se mantêm a flutuar. Os barcos carregam pilhas altas de sacos de arroz, fertilizantes, produtos agrícolas, palmeiras em vaso, gaiolas de aves vivas.

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E há vendedores de comida flutuantes.

Uma sampana para ao lado do nosso barco e pergunta-nos se queremos um café. Tem uma plataforma Starbucks inteira montada ao leme. Prendendo o seu barco ao nosso com uma corda desgastada, ele põe-se imediatamente a trabalhar para satisfazer a nossa encomenda, com uma mão mantendo o seu barco alinhado à medida que aceleramos ao longo do rio, com a outra fervendo, filtrando e despejando algum desse fabuloso café vietnamita em copos altos. Outro barco, este a vender baguetes, aproxima-se do outro lado, e também compramos algumas. Ainda estão quentes, estaladiças e deliciosas, tão boas como as que se encontram em Paris. Um barco de venda de pho junta-se a nós e, em breve, Philippe e eu estamos a mergulhar avidamente em taças de carne de vaca e macarrão excecionalmente frescos e picantes, uma fatia de fígado, e aquelas guarnições coloridas e estaladiças que fazem os sabores estalar. Eu poderia comer aqui o dia todo. Basta flutuar e todos vêm ter consigo. Sanduíches de patê, rolos de carne de vaca, crepes primavera, doces – tudo isto no meio do tráfego fluvial movimentado. No mercado, há peixarias flutuantes, recintos de gado, grossistas de fruta e legumes, padeiros, vendedores de plantas, todos eles em embarcações de idade indeterminada, de aspeto poroso e questionável, com capacidade de navegação. Engolindo o último pedaço do meu pho matinal, penso que isto é viver. Todos sorriem. As crianças gritam "Olá!" e "Adeus!" e "Feliz Ano Novo!" – e não querem mais do que praticar as poucas palavras de inglês que conhecem. Um barco de fruta vende manga cristalizada e banana, espetadas de melão, pedaços de ananás, jacas inteiras, durião, mangostão, pitaias e anonas. Os barcos passam com montes de banh perfeitamente embalado em quadrados e triângulos, pendurados na casa do leme, uma loja de conveniência inteira a bordo, vendendo cigarros, refrigerantes, cerveja e sumos de fruta em sacos de plástico. As mulheres cozinham em woks com óleo a ferver, em barcos de movimento rápido, grelham pequenas trouxas de carne moída embrulhada em folhas de hortelã, fritam passarinhos, cozem massa. Tudo cheira bem. Tudo tem bom aspeto para comer.

Engolindo o último pedaço do meu pho matinal, penso que isto é viver. Todos sorriem. As crianças gritam "Olá!" e "Adeus!" e "Feliz Ano Novo!" – e não querem mais do que praticar as poucas palavras de inglês que conhecem. Um barco de fruta vende manga cristalizada e banana, espetadas de melão, pedaços de ananás, jacas inteiras, durião, mangostão, pitaias e anonas.

Olhando para a costa longínqua, posso ver barracas sem portas construídas sobre a água, quase sem móveis, exceto uma rede ocasional, e o brilho de um aparelho de televisão muito usado. Há antenas de televisão por cima de casas de banho de estilo medieval construídas sobre a água. Observe a costa e verá todas as fases da vida doméstica fluvial: mães a dar banho aos seus filhos, a lavar a roupa, a esfregar os seus woks na água castanha, a colocar círculos de papel de arroz para secar nos telhados, a varrer fastidiosamente as suas pequenas moradas primitivas, com cada centímetro limpo.

É algo que vejo em todo o Vietname; o que torna a sua comida tão boa, o seu povo tão cativante e impressionante: o orgulho. Está em todo o lado. De cima abaixo, todos parecem estar a fazer o melhor que podem com o que têm, improvisando, reparando, inovando. É um espírito revelado em cada banca de massa, cada sampana com uma fuga, cada varanda varrida e escovada de terra batida e campo de arroz verde. Vê-se nos diques de lama prensada do seu sistema de irrigação secular, em cada ponte de bambu, em cada sapato remendado, em cada sandália de pneu transformada, em cada rua urbana sem lixo, em cada telhado remendado, e em cada bebé embrulhado numa manta de malha colorida feita à mão. Pense o que quiser sobre o Vietname e sobre o comunismo e sobre o que quer que tenha realmente lá acontecido, há muitos anos. Ignorem, se se importam, o óbvio – que o país é, e sempre foi, principalmente sobre família, aldeia, província, e depois país –, que a ideologia é um aparato a que poucos se podem dar ao luxo. Não se pode deixar de ficar impressionado e extasiado com o trabalho árduo, a atenção aos detalhes, o cuidado tomado em todas as facetas da vida quotidiana, por mais mundanas que sejam, por mais difíceis que sejam as circunstâncias. Passe algum tempo no delta do Mekong e compreenderá como uma nação de agricultores poderia vencer a maior e mais poderosa presença militar do planeta. Basta observar as mulheres nos arrozais, dobradas pela cintura durante oito, dez horas por dia, puxando feixes de arroz de águas profundas, depois movendo-os, replantando-os. Leve algum tempo a examinar o intrincado sistema interligado de irrigação da Idade da Pedra, inalterado durante centenas e centenas de anos, o nível de cooperação necessário entre vizinhos simplesmente para arranhar um sustento, e terá a ideia.

Estas pessoas sobreviveram a bombardeamentos, ataques rasantes, patrulhas. Superaram a CIA, a NSA, satélites, AWACS, aviões de carga C-130 que foram equipados com sensores e pistolas Gatling, com equipas inteiras de analistas de inteligência aérea a vasculharem o solo em monitores a piscar, ataques de B-52, mercenários, unidades especiais de equipas de «contraterrorismo», regime após regime de líderes clandestinos que não se importavam com eles. Eles sobreviveram a The Beverly Hillbillies e Bob Hope e o pior que as luxúrias e a cultura da América tinham para oferecer. Eles venceram os franceses. Derrotaram os chineses. Bateram os Khmers Vermelhos. E sobreviverão também ao comunismo. Daqui a cem anos, os comunas desaparecerão – tal como nós, outra nota de rodapé na longa e trágica história de luta do Vietname – e os arrozais do delta do Mekong, este mercado e este rio terão o aspeto que têm agora, tal como tinham há cem anos.

Gosto de estar aqui. E gosto muito.