
Não sei se o cérebro e os algoritmos competem entre si ou se simplesmente seguem caminhos paralelos. E permanece incerto se o cidadão comum já percebeu que, tal como um algoritmo, o cérebro é exímio a prever padrões, a ajustar-se às experiências que vamos acumulando e a antecipar as nossas escolhas. Ainda mais intrigante, não sei se nos damos conta de que ambos os “sistemas” operam a filtrar informações continuamente e a ignorar o que consideram irrelevante.
Esta dúvida surgiu quando eu estava à procura de um artigo, e fui inesperadamente arrastada para um verdadeiro emaranhado de sugestões. O algoritmo, solícito como sempre, decidiu que eu precisava de muitos outros artigos pelo caminho. Quando dei por mim, acabei por me desviar do rumo original. Entre sugestões personalizadas, títulos irresistíveis e algoritmos atentos às minhas preferências passadas, acabei por perder de vista o objetivo pretendido. E há um sentimento genuíno de entusiasmo nestas andanças. Muitas ideias novas surgiram, inesperadas, por caminhos que não tinha planeado seguir. Mas, quase ao mesmo tempo, veio uma dúvida: e se eu tivesse escolhido realmente o meu próprio percurso, em vez de me deixar guiar? Fui eu a fazer escolhas? Pensando bem, parece-me que não. Foi o emplastro digital! Lá estava ele, subtilmente na sombra das minhas decisões, a sussurrar-me sugestões irresistíveis ao “ouvido virtual”. É um emplastro astuto, que sabe sempre exatamente como aliciar o meu cérebro antes que ele próprio se dê conta das suas intenções. E o meu cérebro, inocentemente a acreditar que era o verdadeiro protagonista!
Até há pouco tempo, podíamos acreditar que a inteligência artificial era apenas uma ferramenta e o cérebro permanecia firmemente no papel de mestre.
Mas e se forem apenas versões diferentes do mesmo mecanismo? O cérebro aprende por repetição, reforça conexões sinápticas a cada nova experiência. Os algoritmos fazem o mesmo, refinam as suas sugestões com base no que já escolhemos antes. Se confiamos no nosso cérebro para processar o mundo sem questionar, porque nos inquieta tanto que os algoritmos façam o mesmo por nós? Talvez eu saiba responder.
Há muitos bem-querentes das novas tecnologias e da inteligência artificial, entre os quais me incluo. Contudo, à medida que se intensifica o debate sobre o que é "real" e o que é "falso", especialmente com o papel das plataformas digitais e das redes sociais, o crescente desafio é ter autonomia para pensar e tomar descisões. Estamos perante um fenómeno em que o que somos, nos chega em fragmentos dispersos, guiados por sugestões personalizadas e algoritmos atentos ao nosso histórico digital, a tal “mente terceirizada”. Mas quando dependemos excessivamente dos algoritmos, o nosso cérebro deixa de exercitar a capacidade natural de procurar, selecionar, memorizar e refletir de forma autónoma.
Estamos na Semana Internacional do Cérebro num período especialmente confuso, e despertar a consciência das nossas escolhas torna-se urgente. O cérebro talvez seja o nosso último território de liberdade. Recordando o que gosto de referir como a “ode à liberdade humana” de Eric Kandel, "a plasticidade do cérebro é infinita”. Logo, mantê-lo ativo significa proteger a autoria das nossas decisões. Essa possibilidade fascina-me mais que qualquer percurso predeterminado.
Patrícia Oliveira Silva
Diretora do Human Neurobehavioral Laboratory (HNL) e Vice-Diretora da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa (FEP-UCP)
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