Como nasceu a ideia para este livro?

O livro nasce do meu papel de mãe a ajudar o meu filho a lidar com os medos dele e ao dar-me conta de que os pais têm a tendência de dizer aos filhos ‘Não tenhas medo’, ‘Não chores’ e assim não damos permissão à emoção do medo e da tristeza. E como psicoterapeuta conheço bem as consequências negativas de não expressar estas emoções. A ideia do livro nasceu num dia em que o meu filho estava a fazer arborismo e disse-me lá de cima ‘Tenho medo, mãe’. E eu disse-lhe ‘É natural porque estás muito alto. Vê se consegues dar mais um passo a olhar para a copa das árvores.’ E os outros pais gritavam ‘Não tenhas medo! Continua!’ Eu só pensava ‘Não tenhas medo? Experimentem subir lá acima.’ E eu subi e também senti medo. Estava a uns quatro metros de altura. Não ajuda nada dizer à criança para não ter medo, numa situação que é efetivamente geradora de medo, até para um adulto.

Lidar com as emoções é uma tarefa desafiante mesmo em idade adulta, porque por vezes nós, adultos, também sentimos medo…

Sim, porque a sociedade não dá permissão às emoções mais difíceis como o medo, a tristeza e a raiva. Há pouco espaço na sociedade, ou nenhum, para se sentir a tristeza. ‘Vá limpa as lágrimas. Não é preciso chorares. Vamos sair para nos distrairmos.’ Quantas vezes já ouvimos o ‘Não fiques triste’? Se a tristeza nos assola temos que a sentir, não podemos fugir dela. Se não a sentirmos ela fica enquistada, reprimida. E ao não ser sentida pode provocar danos consideráveis. Eu costumo dizer que as emoções não expressas ficam contidas, podendo enquistar e depois podem revelar-se de outras maneiras. Por isso podemos ter problemas na pele, úlceras no estomago, outros problemas no aparelho digestivo e inúmeras doenças. Chorar é necessário porque é uma forma de expressar a tristeza e traz alívio. Quando nos dizem ‘Não estejas triste’ o que nos podiam dizer é ‘Eu compreendo a tua tristeza e podes chorar à vontade. Se quiseres chora comigo, eu estou aqui.’

A sociedade não dá permissão às emoções mais difíceis

Como é que o tema deve ser abordado pelos pais?

‘Eu compreendo que estejas triste, filho, porque perderes o teu boneco causa realmente tristeza. É normal estares triste. Eu às vezes também fico. Se eu tivesse perdido o meu brinquedo também ficava assim. Se me tivesse separado do meu irmão também ficava triste. É normal. Podes estar triste e podes chorar. Todos podemos chorar. E os meninos choram tanto como as meninas.’ Não se deve dizer aos meninos que os homens não choram. Chorar não tem nada a ver com o género. As emoções não têm género.

São aqueles clichés sociais…

Clichés que são horrorosos. Para já a criança não é um homem e os homens também podem chorar. Esta socialização repressora das emoções nos homens e permissiva nas mulheres, gera o estereótipo horrendo de que a mulher é mais sensível e o homem é mais forte. As emoções não têm género.

E a partir de que idade é que os pais devem iniciar este tipo de diálogo?

Desde a primeira manifestação de medo - em que a criança diz ‘Tenho medo do cão’, ‘Tenho medo do escuro’ ou 'Tenho medo' do que quer que seja - não é tanto o que os pais devem dizer, mas antes o que não devem dizer. Desde logo que não devem dizer ‘não tenhas medo’, ‘não é preciso ter medo’. Isto nunca se deve dizer.

Porquê?

Porque isto é não dar permissão ao medo, quando o medo faz parte da vida. Os adultos também têm medos. O medo de não ser suficientemente bom, de não ser atraente, de ser rejeitado, o medo de envelhecer, o medo da morte, só para citar alguns… Há uma série de medos que temos ao longo da vida. O medo faz parte da vida e protege-nos, porque se nós não tivéssemos medo morríamos a atravessar a estrada. O medo é protetor. Não devemos negá-lo, reprimi-lo e enxotá-lo. Ele tem que ser enfrentado e para ser enfrentado – seja ele qual for – não pode ser negado. Temos que lhe dar permissão e esse foi o objetivo do livro: ajudar os educadores a permitirem o medo e ajudar a criança a lidar com ele.

 Quantas vezes já ouvimos o ‘Não fiques triste’? Se a tristeza nos assola temos que a sentir, não podemos fugir dela

Esta obra é direcionada para quem?

O livro é para as crianças, mas também é para educadores, pais e professores porque tem exemplos que ajudam a pensar, dicas, perguntas e exercícios que podem fazer com os mais novos.

O livro 'Anda Daí, Medo' tem diversas histórias. Qual o espectro de emoções aqui abordadas?

Medo, tristeza e raiva. São quatro histórias verdadeiras. A primeira é sobre o medo e como fazer para o enfrentar e superar. A segunda é sobre tristeza e fala de um menino de 4 anos que perde o peluche preferido no aeroporto quando viaja para ir viver com os pais noutro país, tendo por isso que se separar das irmãs. Esta história fala da importância de dar permissão à tristeza e de ajudar as crianças a ter acesso e a perceber que emoção é que estão a sentir. Pior ainda do que chorarmos de tristeza, é nós não sabermos o que estamos a sentir e há muitos adultos que não sabem. A terceira é sobre a raiva e como é que podemos ajudar a criança a expressar esta emoção e a evitar comportamentos desadequados e agressivos. E a quarta é novamente sobre o medo e o que é que ganhamos quando o enfrentamos. O que ganhamos com isso é uma coisa muito importante, que é a autoconfiança, ou seja, a confiança em nós próprios, que é algo fundamental para tudo na nossa vida.

O medo faz parte da vida e protege-nos

Disse que, à semelhança das crianças, há muitos adultos que não sabem aquilo que estão a sentir. De que forma é que o conhecimento das próprias emoções vai ser benéfico para a vida adulta da criança?

A primeira coisa é a regulação emocional, ou seja, sermos capazes de elaborar as emoções e ter autocontrolo. Se não formos capazes de fazer a regulação emocional sucumbimos num momento de tristeza ou de medo. O autoconhecimento e regulação emocional permitem-nos termos mais capacidade de estar na relação com o outro. Também é na relação com o outro que surgem muitas emoções: quando o outro nos magoa, nos causa alegria ou nos causa tristeza. A regulação emocional é uma coisa tão importante como alimentarmo-nos bem e dormir bem. É fundamental para a nossa vida, para o nosso bem-estar emocional e psicológico e para as nossas interações. Por exemplo, alguém que não tem regulação emocional, pode recorrer ao consumo de substâncias, por exemplo o álcool, drogas ou comer em excesso, ou ter determinados comportamentos impulsivos, uma vez que não sabe o que fazer com aquilo que está a sentir. Muitos comportamentos aditivos decorrem do mal-estar emocional. Por vezes temos comportamentos de consumismo e compulsivos porque não conseguimos fazer regulação das nossas emoções. Outro ponto importante é que a vida está cheia de contrariedades e nem sempre as coisas são como nós queremos que sejam, e isso causa-nos muita frustração, raiva, zanga. Esta é outra aprendizagem que a criança tem que fazer: que nem sempre as coisas são como nós queremos. Mas isto pode ser difícil de aceitar.

Tal como ensinamos as crianças a comer, a falar e a andar, também devemos ensiná-las a nomear, permitir e gerir as suas emoções?

Claro que sim. Porque o desenvolvimento e crescimento afetivo é muito importante para a nossa vida adulta. Isto faz de nós pessoas mais empáticas, na medida em que compreendemos, também, as emoções do outro e isso torna-nos pessoas mais saudáveis e com mais saúde mental. Há professores que usam este livro, e outros do género, porque se preocupam tanto com o sucesso académico como com o desenvolvimento socio-emocional da criança. Aprendemos o Português, a Matemática, as Ciências, a Geografia, a História, mas também a empatia e o respeito pelo outro.

Muitos comportamentos aditivos decorrem do mal-estar emocional

Considera que começa a existir uma maior sensibilidade por parte dos progenitores para a questão da educação e gestão emocional?

Sim. Acho que estamos todos muito mais despertos para isso porque também sentimos essa necessidade. Os pais querem ser bons pais, querem fazer muito bem esse papel. A parentalidade é hoje mais valorizada do que alguma vez foi.

Que tipo de atividades e estratégias é que os pais podem encontrar no final de cada história para auxiliar os mais novos na identificação e compreensão das suas emoções?

Apresento no final de cada história um conjunto de dicas, exercícios e perguntas para ajudar a criança ao enfrentar o medo, a tristeza e a raiva. Se dissermos à criança ‘Não tenhas medo’ ou ‘Não estejas triste’, ela vai sentir que não é suposto sentir aquilo. A criança fica isolada, a sentir-se sozinha e a sentir-se mal por estar a sentir uma coisa que não devia.

Esta é outra aprendizagem que a criança tem que fazer: que nem sempre as coisas são como nós queremos

Neste livro é proposta a meditação como forma de ajudar no equilíbrio das emoções. Porquê?

Porque a meditação conecta-me comigo e tira-me do piloto automático. A meditação faz abrandar, dá consciência e conexão ao que estou a sentir e ajuda a dar-me conta de que este nó na garganta que estou a sentir é medo, ou é tristeza, ou que é. A meditação ajuda a criança a acalmar a sua cabeça e a criar paz dentro de si. O meu filho faz provas de saltos a cavalo e tem medo. Está em cima de um cavalo que pesa 500kgs e que, se sair a galope e se ele não o controlar, pode cair. E já caiu, sendo que a última história é mesmo sobre isso: uma queda a cavalo em que ele teve de voltar a montar logo a seguir e a enfrentar o medo. Se nós o evitarmos, o medo cresce e o meu filho diz que acalma o medo dele com a respiração e que a usa como uma âncora. Isso dá-lhe controlo sobre ele próprio, sendo ele que manda e não o medo. A meditação dá-nos um empoderamento porque podemos fazer alguma coisa. Não ficamos paralisados pelo medo.

Ana Carvalheira e Francisco
Ana Carvalheira e Francisco Ana Carvalheira com o filho Francisco

A inteligência emocional é uma temática nova na literatura infantil portuguesa?

É cada vez mais abordada, mas é uma coisa recente. Há duas coisas que são ainda desvalorizadas e sobre as quais ontem estava a falar com o meu filho. Ele tem 12 anos e eu estava a dizer-lhe que sempre foi muito mais valorizado o sucesso académico das disciplinas de Português e Matemática do que as artes. Sendo que a Educação Física, a Educação Visual e Musical tendem a ser menosprezadas e não devia ser assim. As artes ficam sempre em segundo plano. Apesar de isto ser cada vez menos assim, precisamos de dar mais valor ao desenvolvimento social, emocional e artístico, até porque as artes em geral - a fotografia, a pintura, o desenho, a música - ajudam-nos a compreender o mundo e a ampliar o nosso pensamento.

 A meditação ajuda a criança a acalmar a sua cabeça e a criar paz dentro de si

Qual a importância da ilustração neste tipo de abordagem em concreto?

A arte abre novos espaços dentro de nós e a ilustração ajuda-nos a imaginar, causa-nos sensações e também nos emociona. A ilustração de um livro infantil ajuda ainda a criança a aprender a ler as emoções no rosto: uma cara de medo, uma cara triste, uma cara alegre, uma cara de raiva. O livro é uma viagem, portanto os desenhos e as cores ajudam-nos a fazer essa viagem. E cada criança faz a sua.

Considera que o livro é uma ferramenta importante no desenvolvimento infantil e que os pais devem utilizar para abordar temas mais complexos e sobre os quais têm dificuldade em falar?

Absolutamente. O livro, a escrita, a ilustração e a arte são ferramentas fundamentais para os pais e educadores ajudarem os pequeninos a crescer. Permitem e trazem uma série de coisas importantes, como viajar, aceder a uma diversidade imensa de mundos, enriquecer o vocabulário, aceder às emoções e estimular a criatividade.

O livro, a escrita, a ilustração e a arte são ferramentas fundamentais para os pais e educadores ajudarem os pequeninos a crescer

E também são importantes na criação de momentos a dois e na dinâmica pais-filhos…

Exatamente. O momento de leitura da história antes de dormir permite uma conexão íntima, acalma e fortalece o vínculo. Eu li uma história ao meu filho todas as noites até ao início dos 11 anos, até ele deixar de querer e foi uma experiência maravilhosa. Todas as noites, mesmo quando íamos de férias e dormíamos fora de casa, os livros viajaram na minha mala mesmo os que pesavam mais por causa da capa dura. Acho que os livros não deviam ter capas tão duras e pesadas. Este livro tem uma capa mole para ser mais leve e facilmente transportável. Ler uma história é um momento de presença total genuína. É um momento maravilhoso que oferecemos ao nosso filho, porque estamos ali com ele. Não estamos só a dar a história, também estamos a dar a nossa presença. Com o meu filho eu descobri a ilustração infantil que é uma coisa maravilhosa. Descobri ainda os livros silenciosos que são só ilustrações e onde nós podemos inventar a nossa própria história. O livro é um tesouro.