Estreia esta quinta-feira o filme Cyrano, do realizador Joe Wright, uma história intemporal que nos habituámos a ver: o desenvolvimento de um triângulo amoroso, neste caso entre Roxanne (Haley Bennett), Cyrano de Bergerac (Peter Dinklage) e Christian (Kelvin Harrison, Jr.). Mas quem vence este amor? A virtude ou o amor à primeira vista?
“A história do Cyrano é a prova viva de que é o erotismo que atrai, mas é a virtude que agarra, porque depois o erotismo perde-se. A beleza, os dotes físicos, tudo isso se dissipa. Mas a virtude nunca se perde. O carácter é uma coisa que nunca se perde”.
Não é a primeira vez que a peça escrita por Edmond Rostand, em 1897, é adaptada ao cinema. Peter Dinklage sucede a Gérard Depardieu no papel do herói que tem dificuldade em expressar o amor pela sua amada e encontra uma forma indireta de o fazer.
Este amor em particular tem por base a troca de cartas de amor. Se Fernando Pessoa dizia que eram “ridículas” e Tony de Matos apregoava na canção “quem as não tem”, a verdade é que as cartas de amor se sobrepõem ao momento, à idade, ao passar do tempo, à própria paixão. São a impressão digital de uma história de amor que fica enquanto o papel persiste. “A carta de amor é uma arma de sedução, é como um sorriso, um beijo, como olhar olhos nos olhos, mas que persiste no tempo”, defende Margarida Rebelo Pinto.
A história acontece algures no século XVII onde “um toque com um dedo já era um orgasmo intelectual. Era completamente diferente os costumes, os hábitos, o exercício da intimidade”, nota Patrícia Reis.
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Mas será que as cartas de amor vão sobreviver ao século XXI? “Nunca tinha pensado sobre isso, mas acho que as pessoas perderam o hábito, infelizmente, das cartas, como estão a perder o hábito de praticar uma caligrafia digna desse nome”, explica Patrícia Reis.
A escrita manuscrita pressupõe alguma concentração e estamos a perder concentração de uma forma quase ofensiva
A autora evidencia a “ausência total do exercício de caligrafia, embora existam estudos que comprovam que o escrever à mão - a lápis ou caneta - aciona partes do cérebro completamente distintas do que aquelas que são acionadas quando escrevemos no teclado do computador, tablet ou do smartphone” mostrando preocupação com as consequências: “vamos perder a capacidade de concentração, porque a escrita manuscrita pressupõe alguma concentração e estamos a perder concentração de uma forma quase ofensiva, eu diria”.
Por seu turno, Margarida Rebelo Pinto é mais otimista. “Eu acho que as pessoas nunca vão deixar de escrever cartas de amor. É da condição humana e as cartas de amor nunca vão morrer. Podem ser emails, podem ser posts no Instagram, que é onde o mundo agora acontece, ou sob a forma de WhatsApps”, pois “uma pessoa quando está apaixonada, quer mostrar à outra e explicar-lhe o porquê. Quer fazer a exaltação desse sentimento. Eu não imagino um mundo sem cartas de amor. Mesmo que sejam virtuais”.
O peso da palavra escrita e impressa, ainda é superior a qualquer outro formato
A adaptação da mensagem ao meio, num momento em que a tecnologia mudou os nossos hábitos fez, na ótica de Margarida, com que a escrita romântica se adaptasse. “Sacrifica-se a virtualidade do meio em função da rapidez. Como hoje em dia é tudo muito rápido, é mais fácil mandar-se um email ou um longo WhatsApp do que escrever uma carta, imprimi-la e pô-la no correio”.
No entanto, a escritora acredita que “as cartas mais importantes continuam a ir pelo correio, tal como os documentos mais importantes da vida das pessoas continuam a ser impressos e assinados”. Margarida Rebelo Pinto não tem dúvidas: “O peso da palavra escrita e impressa, ainda é superior a qualquer outro formato. E para as questões do coração é igual, o que for verdadeiramente importante tem de ir para o papel, porque o papel fica para sempre”.
O exercício da escrita atualmente não se esgota numa só forma. Patrícia Reis assume que escreveu “muitas cartas ao longo da minha vida. Hoje em dia escrevo muitos emails”, preferindo-os aos SMS pois “são muito redutores e não têm explanação. Por SMS abreviamos tudo, até os beijinhos. Agora é BJS”. E o impacto nas interações humanas deste tipo de comunicação preocupa a autora. “Acho perturbador que os jovens, hoje em dia, comuniquem tanto por SMS que depois tenham dificuldade de comunicar cara a cara. Isso sim é um problema”.
Escrever sobre amor
O amor é fonte de inspiração dos mais variados géneros e artes. Não são poucos os exemplos na literatura de cartas de amor que ganharam notoriedade. De Fernando Pessoa a António Lobo Antunes, de Oscar Wilde a Henry Miller, o amor saltou de páginas soltas para ser imortalizado em livro.
Na opinião de Patrícia Reis “há cartas que são verdadeiros poemas”, dando como exemplo a obra Alexis, de Marguerite Yourcenar, mas “o problema das cartas de amor é que implicam uma certa lamechice e um certo romantismo. Ninguém imagina o Fernando Pessoa a escrever ‘Meu bebé adorado’, como escreveu a Ofélia”.
“O diário da tua ausência e O dia em que que esqueci, livros que agora estão esgotados - e que qualquer dia posso reeditar - começaram por ser cartas de amor, não eram nada de especial”, explica Margarida Rebelo Pinto que faz um apelo: “Tudo começa na literatura, toda a história da humanidade começa na literatura. E as pessoas que gostam de ver filmes só ganham em ler os livros que dão origem a esses filmes”.
No rescaldo do “Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses 2020”, disponibilizado no passado dia 16 de fevereiro, que concluiu que mais de metade dos portugueses não lê livros, a autora deixa a reflexão: “um país sem livros, sem cultura, é um país perdido. As pessoas não vão pensar pela sua própria cabeça, não vão descobrir nada, não vão evoluir”.
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