Em Contra a Amazon (edição Quetzal), Jorge Carrión, espanhol, nascido em 1976, traça um manifesto contra a multinacional de Jeff Bezos em defesa dos leitores, das livrarias e das bibliotecas, em oposição ao poder crescente dos algoritmos globais. Carrión visita bibliotecas (reais e imaginárias) e livrarias em todo o mundo e insiste no valor do livro e da sua proximidade como pilares da nossa educação sentimental e intelectual. “A Amazon apropriou-se do prestígio do livro. Construiu o maior hipermercado do mundo com uma cortina de fumo em forma de biblioteca”, sublinha o autor.
Jorge Carrión defende a figura do livreiro e da livraria contra o mundo impessoal da livraria global, ao mesmo tempo que entrevista autores e livreiros, evoca Jorge Luis Borges, caminha ao lado de Iain Sinclair em Londres, mostra como as livrarias de Tóquio se reinventam, como as bibliotecas resistem e a sua memória não pode perder-se, fala dos livros como instrumento de consolação diante da angústia da Internet – e visita Lisboa no pós-pandemia.
O autor é doutorado em Humanidades pela Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, onde ensina literatura contemporânea e escrita criativa. Escreve regularmente para jornais como El País, La Vanguardia, The New York Times e The Washington Post. É autor, entre outros romances, de Los Muertos (2014), Los turistas (2015) e Los defuntos (2015).
De Contra a Amazon, publicamos o excerto abaixo:
A minha biblioteca de hoje e a Lisboa de amanhã.
A paternidade, claro, mudou tudo. Estávamos em meados de 2015. O apartamento arrendado da rua Ausiàs March, onde construíra uma biblioteca com vista para o primeiro pátio interior da história quadricular de Barcelona, não tinha elevador e tornava muito difícil a vida com um segundo bebé. Urgia uma mudança.
Graças aos meus dois livros sobre esta cidade – um sobre as suas passagens cobertas, que ainda estava a escrever, e outro sobre os seus vagabundos da sucata que, de resto, vivem muitas vezes em passagens, e que acabara de publicar –, descobri o bairro de Poblenou e fartei-me de caminhar pela sua topografia triangular, encerrada entre a rua Marina, a avenida Diagonal e o mar Mediterrâneo. Um entramado periférico e industrial como o de Mataró da minha infância, com a sua dupla personalidade, uma clássica e outra viral: perto da praia fazia lembrar uma rede de pescadores e, nas imediações da Torre Glòries, uma nebulosa da internet. De maneira que no dia em que visitámos este apartamento, situado à frente de um concessionário de automóveis e de um armazém clandestino de sucata, no centro de uma linha imaginária que uniria a livraria Nollegiu e a biblioteca do Clot, muito perto de uma sede da Amazon, comecei a sentir-me como se estivesse em minha casa.
Decidimos que as crianças ficariam com o quarto maior, que teria albergado duas secretárias rodeadas de livros na nossa vida anterior. A minha mulher instalou o computador fixo dela no escritório. Eu percebi logo que, na nova distribuição do espaço, me calharia trabalhar com o portátil na mesa da sala quando não o fizesse nos cafés ou na universidade.
O plano de classificar a minha biblioteca de acordo com as categorias de amigos, conhecidos e futuros, segundo o grau de intimidade com cada um dos seus volumes, nunca passou de ser um desejo sem corpo, umas linhas escritas num ensaio. Assim que forrámos de estantes Billy as paredes do escritório, do corredor e da sala, impôs-se outra lógica, como se cada arquitetura e cada etapa da vida tivessem implícitas a sua própria ordem livresca.
No escritório e por ordem alfabética, arrumei os títulos de literatura contemporânea, de J.R. Ackerley ou César Aira até Gabriela Wiener e Raúl Zurita. O corredor voltou a acolher os livros de BD e os romances gráficos, talvez porque a narrativa aos quadradinhos é uma espécie de transição entre mundos diferentes, um discurso anfíbio entre a imaginação e a palavra. Nas prateleiras mais afastadas da mesa da sala coloquei os livros de arte contemporânea e as crónicas, os volumes sobre história da cidade e os meus muitos livros sobre livros, como se, com essa decisão, se fechasse uma etapa criativa, mesmo que o meu interesse por eles me acompanhe até ao fim dos meus dias. A estante central, situada ao pé do sofá, recebeu os clássicos por ordem cronológica, de Ovídio a Dante até Anna Akhmatova e Ossip Mandelstam, com a obra de Jorge Luis Borges e Juan Ramón Jiménez no alto porque a perfeição é inalcançável, mas convém sempre aspirar a ela. E rodeei esta cadeira, onde continuo a escrever desde então, com as estantes consagradas à história da viagem, à museografia, ao ensaio, à ciência e à tecnologia. Neles estavam, em potência, todos os livros e guiões que viria a escrever nos anos seguintes. Cultivamos durante muito tempo certos interesses até que, de repente, essas leituras começam a germinar. É assim. Sempre foi.
“A biblioteca não é um conjunto de livros, mas um organismo vivo com vida autónoma”, diz Umberto Eco em La memoria vegetale. A minha biblioteca não é só a minha memória externa, o cronograma da minha vida, o mural envolvente onde vejo pontos que correspondem a viagens, leituras, ideias, encontros, cada um com a sua data e a sua carga emocional: também é um ser com o qual convivo há trinta anos. Um ser que foi crescendo ao mesmo tempo que eu, numa simbiose que nos beneficia a ambos. Não pode crescer em tamanho porque uma hipoteca dispõe de uns metros quadrados limitados e porque tento oferecer um livro a cada pessoa que entra em minha casa, mas pode aumentar qualitativamente. O nosso mutualismo beneficiou-nos a ambos ao permitir que nos desenvolvêssemos em paralelo, interligados, a tinta e os neurónios fluindo entre os nossos corpos como o sangue entre as duas Fridas do quadro.
Nós, os leitores, somos ciborgues, criaturas nas quais convergem a biologia e a tecnologia. As mãos e os olhos acolhem esses dispositivos perfeitos chamados livros, rodeados de estantes que, com os anos, se converteram no nosso hipocampo e no nosso córtex pré-frontal artificiais. O cérebro humano pode armazenar cerca de 100 terabytes de recordações, experiências e saberes. Graças à biblioteca, esta capacidade multiplica-se exponencialmente. À semelhança das flores que, para se reproduzirem, se aliam com os insetos ou o vento, as bibliotecas precisam de nós para experienciar o movimento e a fecundação. Não vivem se ninguém as colher, abrir, ler.
Porém, prefiro sem dúvida os fundos que bibliográficos que estão integrados nas zonas de acesso aberto das bibliotecas universitárias ou públicas. Porque se alguém escreveu e publicou livros é porque queria partilhar as suas intuições e a sua arte. Porque queria abrir-nos as portas do seu universo mental, do seu mundo interior. É por isso que me parece admirável que a cidade de Lisboa, a mais bela da Europa, tenha convertido em parte da sua rede de bibliotecas municipais as coleções privadas de António Lobo Antunes e Alberto Manguel. Além dos manuscritos das suas obras, a biblioteca pessoal do grande autor português consta de vinte mil volumes, muitos deles sublinhados ou com dedicatórias, que podem ser consultados nas antigas instalações da Fábrica Simões, no bairro de Benfica. Quarenta mil são os livros que Manguel doou à capital portuguesa para nutrirem o novo Espaço Atlântida, à Rua das Janelas Verdes, de espírito navegável, tal como a metrópole atlântica que o acolhe. Enquanto sede do Centro de Estudos da História da Leitura, imagino-o semelhante à mítica e pós-verdadeira Escola de Sagres, onde o Infante D. Henrique, o Navegador, promoveu a cartografia, a náutica e a psicologia do século XV. Cada época deve criar os seus novos horizontes intelectuais, os seus projetos retrofuturistas, e os livros antigos impulsam a Lisboa de amanhã.
“A coleção é o espaço da entropia”, afirma Borys Groys no seu ensaio Logic of the Collection. São fascinantes as suas contradições latentes: "É tanto um lugar de morte, como um lugar onde se tenta superar a morte". Quando José María, Lobo Antunes ou Manguel já não estiverem fisicamente neste mundo, os livros que escreveram ou lhes pertenceram permitir-nos-ão continuar a aceder à sua memória, aos seus cérebros. Mas mesmo as bibliotecas mais pessoais, mesmo as monográficas, são essencialmente plurais. Essa pluralidade tende ao caos. Uma entropia que não “pode ser ocupada por uma única obra de arte ou por uma única teoria”, diz Groys. Suponho que é por isso que divago neste ensaio desarticulado, porque me apercebo de que nenhum discurso ordenado poderá dar conta, realmente, da minha própria biblioteca. Limpo-a e arrumo-a uma vez por ano, e essa periódica redescoberta, que adoro e me emociona ao mesmo tempo, também me recorda que nunca a conhecerei totalmente e que, poucas semanas depois de lhe limpar o pó ou de doar duzentos livros, voltará a ficar fora de controlo. Como a própria vida, sempre.
Intuo que só depois de me tornar pai e de ter compreendido que não preciso de mais de sete mil livros para ser feliz consegui descansar.
Até esse momento, toda a minha vida pode ser lida como uma tentativa de construir a biblioteca que não tive quando era criança. A urgência de encher um vazio. Algo semelhante ao que julguei ver em Seul: a Coreia do Sul investe uma fortuna no século XXI para criar uma rede de bibliotecas e livrarias que nunca teve na sua história. Partilho com este país asiático uma origem humilde, iletrada. E a ânsia de preencher esse vazio. A minha ascensão social deve-se a esta biblioteca. É fruto da curiosidade, da sorte e do esforço. Mas tudo o que fiz também pode ser explicado pelos poucos livros e brinquedos que, com muito mais que esforço, me compraram os meus pais. Aquelas enciclopédias, aqueles romances infantis, aquela caixa de ferramentas ou aquele jogo de mineralogia adivinharam os meus interesses profundos. E deram-lhes, a longo prazo, a estrutura de que careciam para se desenvolverem.
Os meus filhos, que ainda não têm dez anos, já possuem mais livros que eu aos vinte. Também já viajaram muito mais do que eu quando estava quase a acabar a universidade. Ingenuamente, penso que, se uma criança de agora se apaixonar pelos livros em papel, é possível que no século XXII continue a haver livrarias e bibliotecas. Suponho que já não sinto necessidade de ampliar a minha biblioteca, preocupam-me outras urgências, outros vazios, outros medos. Apesar de me dedicar vocacional e profissionalmente a imaginar ordens, compreendi que atrás de tudo sempre palpita o caos. Ao meu lado, enquanto escrevo estas linhas e na mesma mesa de madeira, os meus filhos fazem puzzles. A cada ano que passa, precisam menos da minha ajuda para os resolver.
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