
Após anos a escrever num exercício de carácter pessoal, sem oferecer as suas palavras a olhos terceiros, Nuno Duarte, nascido em Sintra em 1973, estreou-se na literatura com Pés de Barro, romance vencedor do Prémio LeYa 2024. Publicitário de profissão, habituado a escrever para vender ideias, Duarte cruza agora a palavra com outra intenção: compreender, expor, levantar questões. O resultado é um livro que mergulha na Lisboa dos anos 60 e acompanha Victor Tirapicos, jovem serralheiro de 22 anos que observa a cidade mudar enquanto o país se afasta para o Ultramar.
Situado num bairro operário de Alcântara, Pés de Barro dá corpo a uma memória coletiva: o quotidiano de uma classe trabalhadora urbana, com os seus ritmos, silêncios e pequenos gestos de resistência. O cenário histórico — a construção da ponte, o início da guerra, o Portugal salazarista — impôs-se à narrativa à medida que as personagens ganhavam densidade. “Tudo o resto foi encaixando com uma pertinência que até a mim surpreendeu”, confidencia o autor na presente entrevista.
A biblioteca do pai, a banda desenhada franco-belga, os diálogos ouvidos em salas de espera são fontes convocadas para a escrita de Nuno Duarte, num exercício que conjuga observação e memória, ironia e empatia.
Em momentos anteriores referiu que durante muitos anos foi apenas “um tipo que escrevia sem mostrar”. Hoje, conta com um livro publicado e premiado. Podemos dizer que é agora um escritor que escreve para se revelar? Ou, a palavra “escritor” continua a soar-lhe estranha quando lhe é dirigida?
Continua a soar um pouco estranha, mas, a partir de determinado momento, é aquilo que sou. Estar de, alguma forma, a renegar a palavra “escritor”, atirando as culpas de ter, como diz, um livro publicado e premiado e ao qual, além do mais, têm sido dirigidas críticas elogiosas, a alguma espécie de acaso, parece-me tão pouco sincero como dizer que não fiquei absolutamente surpreendido com tudo isto.
O seu percurso pessoal e profissional vive de uma dualidade: a da publicidade — onde se escreve para vender — e a da literatura — onde se escreve para compreender, para nos expormos, para resolvermos questões ou mesmo para levantar novas. Como é que estas duas formas de escrita coexistem no seu labor?
Comecei a escrever publicidade mais ou menos ao mesmo tempo em que iniciei o atrevimento literário. A minha formação é em design gráfico e todo o meu percurso profissional, até esse momento, foi como diretor de arte. Por essa razão, as duas escritas cresceram juntas e até se ajudaram uma à outra, pelo que eu diria que é inevitável haver contaminações, mesmo que não me aperceba delas. Talvez na necessidade que tenho de rematar os parágrafos com uma tirada qualquer, isso é publicitário. Apesar de tudo, julgo conseguir manter os dois mundos em universos diferentes – paralelos, mas diferentes – até pelo ritual que imponho quando a escrita é literária: a música que ouço, o programa que utilizo para escrever, por aí fora.
Steinbeck, por exemplo, será talvez o meu escritor de eleição e, no entanto, aquilo que escrevo terá muito pouco dele, tirando, talvez, a temática.
Quando percebeu que a escrita já não era só um exercício privado, mas uma necessidade com forma de livro? Foi uma decisão ou uma espécie de inevitabilidade?
Quando o resultado dessa escrita não me envergonhou. Isto é, quando, depois de anos de numerosos, estrondosos e épicos falhanços que foram (e são) a minha aprendizagem, considerei que aquelas oitenta e tantas mil palavras que compunham um livro chamado Pés de Barro eram, no mínimo, razoáveis. Nesse momento, a necessidade passou a ser outra: colocá-las à prova.
O Nuno refere várias vezes a influência que em si exerceu a biblioteca de sua casa: Steinbeck, Dostoiévski, BD franco-belga. São autores e temas que habitam mundos diferentes. A sua escrita faz síntese destas influências?
Alimenta-se de todas elas, como se alimenta de tudo aquilo que me rodeia e a que estou, normalmente atento como as conversas no autocarro, o comportamento das pessoas numa sala de espera, só para lhe dar dois exemplos. As influências que refere têm, por serem tão diferentes entre si, formas distintas de resolver os tantos problemas que a literatura coloca a um escritor e, essas, são preciosas ferramentas, ou simples truques de ilusionismo, a que vou deitando a mão sempre que necessário. Se a minha escrita conseguir fazer a síntese de todas elas, tanto melhor, mesmo que, na forma e no estilo, acabe por não ser tanto assim. Steinbeck, por exemplo, será talvez o meu escritor de eleição e, no entanto, aquilo que escrevo terá muito pouco dele, tirando, talvez, a temática.

Escrever aos 50 anos, depois de uma vida profissional consolidada, dá-lhe outra liberdade — ou pesa-lhe uma espécie de urgência?
É possível que sim, liberdade, não urgência. Se correr mal, posso sempre voltar a dizer que não sou escritor e que a minha vida é, como sempre foi, fazer anúncios.
O revisionismo histórico está profundamente alicerçado na ignorância. Aliás, alimenta-se dela.
Numa entrevista anterior referiu que perante uma crítica negativa, primeiro “amua” e depois pensa. Essa sinceridade é rara. O que é que a crítica o ensinou sobre si — como autor, mas também como leitor de si mesmo?
A sinceridade, rara ou não, é devida, pois era o que faltava eu entrar na literatura onde, para mais, tenho sido tão bem recebido e vir equipado com algum tipo de sobranceria. A crítica faz o seu trabalho, eu faço o meu e temos objetivos diferentes. Por exemplo, tem-me sido repetidamente apontado um determinado paralelismo com Saramago.
Apesar da grande admiração que lhe tenho e do encómio que o dito paralelismo encerra, é algo que, também sinceramente, não tinha presente, pelo menos desta forma, e isso faz-me olhar para coisas que estou a escrever agora de outra maneira. É possível que me obrigue até a lutar contra alguns maneirismos que tinha como meus.
Pés de Barro é o seu romance de estreia, mas não é um livro de estreia juvenil. É um livro que chega numa idade madura, com memória e com um caminho de vida, com encantos e desencantos. De que forma esse caminho verte no livro?
Tenho tido uma vida boa, com mais encantos do que desencantos. Estes estão invariavelmente ligados à forma como olho o mundo à minha volta, à maneira como lido tão dificilmente com a injustiça, com a falta de empatia de que todos sofremos. A literatura tem os ombros largos, na medida em que me permite moldar determinadas personagens (até as reais) de maneira a poder castigá-las ou a exercer algum tipo de vingança sobre elas. Acho que isso é evidente naquilo que faço ao Salazar no meu livro e que, claro, não vou revelar o que é.
Escolher Alcântara dos anos de 1960 como cenário foi um gesto literário, mas também político: a ponte que divide e une, o regime, o bairro operário, a partida dos nossos jovens para Ultramar. O que é que o atraiu nesse tempo e lugar? E que tipo de responsabilidade sentiu ao dar voz a uma época e a uma classe tantas vezes esquecidas ou romantizadas?
Em primeiro lugar, os anos sessenta, bem como a ponte e a guerra, surgiram como uma necessidade para a criação de um cenário onde fizesse sentido colocar todas as personagens do pátio operário que foram o início de Pés de Barro. Tudo o resto, e que forma o essencial do livro – o seu tema, digamos assim –, foi encaixando na narrativa com uma pertinência que até a mim surpreendeu. Claro que escrever sobre um tempo em que não era nascido e que, além disso, deixou tantas cicatrizes, era uma enorme responsabilidade. Ter sido elogiado por algumas das pessoas que esse tempo marcou, desde logo o presidente do júri do Prémio LeYa, Manuel Alegre, foi, além de uma felicidade, um enorme alívio pois não lhes defraudei a memória.
Não acho que a literatura tenha uma qualquer obrigação moralista de educação, mas pode e deve contribuir para uma discussão, no mínimo, informada.
O livro é pleno de ecos da classe trabalhadora urbana, da linguagem das oficinas e das pequenas resistências do quotidiano. Sente que a literatura portuguesa ainda escreve pouco — ou escreve de forma distante — sobre este universo?
Não me parece que se escreva pouco sobre o assunto. Assim como não houve nenhuma preocupação da minha parte em preencher algum tipo de lacuna e não tenho a pretensão de ter feito algo que ainda não tivesse sido visto. Tirando a própria construção da ponte, porque aí acho que a literatura portuguesa se distraiu e eu agradeço.
Vivemos um tempo de revisionismo, de reescrita da história em tons suaves e ambíguos. O seu romance parece caminhar noutra direção. Nesse sentido, o seu livro é uma espécie de recusa do esquecimento?
Não acho que a literatura tenha uma qualquer obrigação moralista de educação, mas pode e deve contribuir para uma discussão, no mínimo, informada. E não é a isso que assistimos quando se ouvem certos saudosismos, pelo contrário, o revisionismo histórico que refere está profundamente alicerçado na ignorância. Aliás, alimenta-se dela. Se não tive nenhum objetivo político quando iniciei a escrita de Pés de Barro, a partir de certa altura, ele impôs-se. Até porque a realidade retratada, e que fui descobrindo com a pesquisa feita, tem muito pouco a ver com os disparates saudosistas que por aí se ouvem. A miséria, o trabalho infantil, o analfabetismo, a migração que, mais do que tudo o resto, parece andar a incomodar tanta gente, esquecida que está dos muitos milhares que saíram de Portugal nessa altura porque, no país onde nasceram, não tinham condições de vida dignas.
Já começou a escrever o próximo livro? E que perguntas — ou inquietações — leva agora consigo que não estavam em Pés de Barro?
Sim. Aliás, já o levava bem encaminhado quando fui surpreendido pelo Prémio LeYa. Por conta dele, ficou uns tempos na prateleira, mas agora está de novo na minha rotina diária. O mais incrível é saber que, desta vez, haverá pessoas à espera para o ler. Espero não as defraudar, enquanto lhes peço que me perdoem a petulância, pois nunca escreverei a pensar nelas.
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