Tem 72 anos e uma energia que contagia todos à sua volta. Os olhos azuis cristalinos continuam a irradiar o brilho e a felicidade que lhe vão na alma sem sombra de ressentimento com a vida. Ju Silvano foi hospedeira de terra no aeroporto de Lisboa durante 35 anos mas não se conformou com a reforma. Há dez anos iniciou uma atividade que lhe enche os dias: tem aulas de chinês e canta chinês no coro da Casa de Macau.

Qual foi a sua atividade profissional?
Fui hospedeira de terra durante 35 anos no aeroporto de Lisboa.

Mas não nasceu em Portugal?
Nasci na China. O meu pai era do corpo diplomático e foi colocado na China como cônsul de Portugal em Xangai, onde conheceu a minha mãe que era de ascendência chinesa. Viemos para Portugal logo a seguir à II Guerra Mundial.

Tem memórias de Xangai?
Tinha seis anos quando regressei e as minhas memórias estão todas relacionadas com a guerra. Lembro-me de ver os criados a esconderem-se quando soavam os alarmes, e também de os ver a pôr os colchões da parte de dentro das janelas para proteger a casa das bombas. E também me lembro da fome. Foram momentos muito desagradáveis.

Foi Salazar que mandou vir o seu pai?
Sim. Quando regressámos a Portugal o meu pai continuou o seu percurso diplomático por vários países do mundo, sempre comigo e com o meu irmão atrás. Era por isso que o meu pai dizia que eu não aprendia nada. Sou, como costumo dizer, um bluff, porque falo muitas línguas mas não sei mais nada!

 

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Em que países viveu?
Vivi em Xangai, onde falava chinês e inglês com a família porque a minha mãe não falava português, nos Estados Unidos falava inglês naturalmente, em Espanha aprendi espanhol e em França comecei a falar francês.

Daí ter ido para a TAP, já que as línguas eram a sua mais-valia?
Sem dúvida. Entrei para a TAP em 1961, e, de fato, foi uma profissão que eu adorei. Entretanto casei-me e tive quatro filhos. Agora já tenho cinco netos e dois bisnetos.

Trabalhou sempre na TAP?
Só os primeiros anos. Entretanto fui para a Austrália onde trabalhei dois anos e meio na companhia australiana, e, quando regressei a Portugal, ingressei na South African Airways, onde estive 25 anos ininterruptamente. Quando a companhia fechou foi um choque muito grande porque gostava mesmo muito daquilo que fazia.

Acabou por se reformar sem estar à espera?
Aconteceu tudo: fiquei sem trabalho e morreu uma das minhas filhas com 33 anos num acidente em Joanesburgo. Nessa altura senti-me completamente à deriva. Pouco depois, ajudei a fundar a Âncora, uma associação de pais que perderam filhos e isso fez-me muito bem. Ajudando os outros ajudei-me a mim própria, mas, a partir de uma certa altura, começou a fazer-me mal. Tinha dias em que ia de Lisboa à Parede a chorar com o problema dos outros.

Mas não quis ficar quieta em casa?
Não estava mesmo nada a ver-me fechada em casa e como sou uma pessoa extraordinariamente ativa, ficar parada não me agradava mesmo nada. Foi aí que tive a ideia de ir aprender a língua da minha terra e inscrevi-me nas aulas de chinês na Casa de Macau. Pouco tempo depois formámos um coro e atualmente também canto em chinês.

Começou as aulas há quanto tempo?
Há 10 anos.

Então já fala chinês?
Em 10 anos aprende-se a falar minimamente mas não a manter uma conversa. Mais de 80 mil carateres não se aprendem de um momento para o outro. Nós aqui aprendemos a ler, a escrever e a falar com os nossos professores chineses

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E como é que surge o coro?
Durante o curso de chinês apareceu o maestro e a nossa professora incentivou-o a fazer o coro só com os alunos. No total somos 22, homens e mulheres, embora as mulheres, como em quase tudo, estejam em maioria.

Que idades têm os alunos?
Há pessoas de todas as idades, desde raparigas jovens, temos uma com 16 anos, até aos 70. Eu sou a mais velha com 72!

O coro também tem músicos?
Não, cantamos à capela. Somos convidados pela Embaixada da China a cantar várias vezes no Casino Lisboa, e noutros locais, e no total já fizemos 14 atuações. Hoje há a inauguração de uma exposição de pintura na Casa de Macau e nós fomos convidados a cantar.

Nunca pensou em dar aulas?
Até podia dar. Há cerca de oito anos fui para a Faculdade de Pequim. De fato não me apercebi da complexidade da língua e foi muito difícil para mim, mas adorei a experiência e saí de lá a falar muito melhor, até porque me obrigava a vir para a rua falar. Ainda hoje é assim: vou às lojas chineses e falo sempre chinês.

Os empregados ficam surpreendidos?
Até me fazem descontos. Quando lhes digo que nasci em Xangai e que a minha avó é chinesa, eles acham o máximo! É bom para eles porque sentem que alguém se interessa pela língua e pela cultura deles e é bom para mim porque vou praticando.

Estuda muitas horas por dia?
Todos os dias estudo. Levanto-me às 7 da manhã e estudo várias horas. Tenho cadernos e cadernos de cópias e de tradução fonética.

Os seus filhos e os seus netos manifestam algum interesse pela língua?
Não. Até o meu irmão, que também nasceu em Xangai, diz que eu sou louca por estar a aprender uma língua tão difícil.

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Percebe-se que está a adorar...

Estou encantada. E sinto sinceramente que rejuvenesci. Sempre tive boa memória, mas achava que ia começar a perdê-la com a idade. Mas graças ao estudo e ao treino diário, a minha memória continua intacta.

Como teve conhecimento deste curso de chinês?
Vi um anúncio na televisão.

São caras estas aulas?
Não se paga nada, mas infelizmente os cursos vão acabar, e é pena porque os professores são excelentes. Para mim o melhor é ter a mente ocupada a estudar.

Alguma vez tinha cantado?
Nunca tinha cantado na minha vida. Mas quando me desafiaram não resisti, e agora sou contralto. A coisa mais bonita que eu cantei em chinês foi o hino nacional. O nosso hino cantado em chinês é belíssimo.

Também canta em casa?
Estou sempre a cantar, tenho as músicas no MP3 e vou praticando em casa e no carro. Estou muito motivada.

Continua a ir à China?
Temos uma viagem no final do ano letivo que os professores organizam e vou todos os anos um mês para treinar o chinês.

 

Palmira Correia