Em tempos de recessão económica e de condicionamento económico como o que temos vivido nos últimos anos, pode parecer anedótico falar em consumo compulsivo. Só que uma das características deste fenómeno é, precisamente, não conhecer limites e afetar seriamente as relações sociais, conjugais, familiares e até mesmo profissionais da vítima. Para além disto, parece alimentar-se de estados depressivos e de ansiedade, em que o consumo atua como analgésico.
Embora atualmente não se saiba quantos portugueses possam ser considerados consumidores compulsivos, em 2003 estimava-se que esse número rondava os 400 mil, com tendência para aumentar. Um mecanismo de compensação, uma perturbação do foro da ansiedade ou a pura incapacidade de autocontrolo, esta vontade irremediável de comprar parece ter-se tornado de tal modo prevalente que exige medidas urgentes.
No início da década de 2010, foi proposto por vários investigadores que o consumo compulsivo fosse reconhecido e categorizado como uma perturbação mental e incluído na quinta edição do «DSM - Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais». Este respeitado compêndio, da autoria da American Psychiatric Association, foi revisto antes da sua publicação.
Mas será esta uma medida radical? Fomos conversar com o psicólogo clínico Vítor Rodrigues para tentar perceber o que nos faz comprar sem (conseguir) parar. Veja também o que mudou no consumo dos portugueses nos últimos anos e acompanhe um dia às compras na companhia de uma especialista em finanças pessoais.
O consumo compulsivo devia ser classificado como uma perturbação mental?
Penso que não pois, embora esse comportamento seja preocupante, não passa de uma manifestação de outros problemas já previstos, do género depressão, ansiedade e comportamentos aditivos. Além disso não gosto da tendência para psiquiatrizar tudo e fazer de tudo um longo inventário de patologias a tratar com um número ainda maior de fármacos psiquiátricos.
O que caracteriza o consumo compulsivo?
O consumismo, em si, existe como fenómeno social, triste e cheio de inconvenientes mas não como sinónimo de perturbação. Começa a ganhar foros de perturbação merecedora de cuidados de saúde mental quando assume contornos de dependência ou vício em que, como noutras dependências, a vida mental e social e os recursos financeiros começam a ser absorvidos pelo objeto das mesmas.
Em muitos casos, levam as pessoas a negligenciarem a família, os amigos, o trabalho ou outras áreas, gastando tempo e dinheiro de forma desproporcionada.
Quais são, então, os sinais de alarme?
O principal é que haja uma falta de bom senso nos gastos e no tempo e esforço destinados ao consumo.
O que poderá estar na origem deste comportamento?
A causa passa por duas áreas. Por um lado, a constante apologia do consumo que é feita por meios de informação e de publicidade poderosos, cada vez mais sofisticados e manipulatórios, que passam a ideia e ensinam subliminarmente que consumir é sinónimo de ter poder, ser feliz, resolver problemas, socializar, obter sexo fácil, aliviar a ansiedade e que o consumo deve ser feito, de preferência, impulsivamente (com música excitante e ritmada a apoiar).
Por outro lado, a causa também está associada às carências e sensações de impotência por parte das pessoas, que as levam a procurar compensações, satisfações imediatas e impressões de poder nos comportamentos de consumo ficando, por vezes, progressivamente dependentes desses momentos fugazes de excitação e bem-estar.
A quem se deve pedir ajuda?
Depende da intensidade da perturbação. Geralmente, diria que a primazia é do psicoterapeuta pois este profissional pode ajudar as pessoas a verem mais claramente o que andam a fazer e porquê, a encontrarem alternativas, a lidarem com a ansiedade e carências subjacentes e a perceberem como costumam ser manipuladas, onde e quando.
Veja na página seguinte: Dicas para não gastar o que tem e o que não tem
Que tipo de tratamento existe para o consumo compulsivo?
Uma abordagem sobretudo psicoterapêutica que reconhece estar-se perante comportamentos de dependência e que se vai centrar nas vertentes simultâneas de fazer esses comportamentos cessarem e em encontrar alternativas saudáveis, ao mesmo tempo que procura curar alguns problemas psicológicos subjacentes que tornam algumas pessoas presas fáceis.
Aprenda a controlar-se
Sugerimos-lhe algumas dicas para não gastar o que tem e o que não tem:
- Pague as suas dívidas
Se pediu dinheiro emprestado ou usou e abusou do cartão de crédito, faça as contas e veja como, mensalmente, as pode ir saldando, sem se endividar ainda mais. O facto de estar a dever muito dinheiro poderá deixá-lo mais deprimido e ansioso e se assim for... ainda lhe apetecerá mais ir às compras!
- Leve apenas o porta-moedas
Quando for às compras, deixe em casa o cartão de crédito e o cartão multibanco. Leve consigo apenas dinheiro (e não muito). Idealmente, só deverá ter um cartão de crédito.
- Aposte num orçamento fixo
É verdade que já não tem 15 anos e que o tempo da mesada já lá vai. Mas, se sabe que tem dificuldade em conter os gastos, atribua uma quantia a si própria a cada mês, desenhando um orçamento que também contemple uma quantia que lhe possibilite cometer uma pequena extravagância. Vá apontando as suas despesas e não ultrapasse o montante estipulado.
- Reforce o seu auto-controlo
Se vir alguma coisa que lhe apeteça muito adquirir, pense duas vezes... ou mesmo três ou quatro! Nunca a compre no momento. Afaste-se do local do crime e dê a si própria um período de reflexão. Vai ver que, passadas umas horas, aquilo que lhe parecia ser imprescindível para o seu bem-estar é, apenas, supérfluo.
No entanto, se o desejo persistir por alguns dias, reveja o seu orçamento mensal e veja se se pode permitir uma pequena loucura. Mas só uma!
- Tenha uma conduta exemplar
Se refletir um pouco, depressa perceberá que o seu comportamento influenciará o modo como os seus filhos encaram o consumo. Como é que conseguirá refrear os desejos imparáveis dos mais novos se é o primeiro a não conseguir distinguir o essencial do acessório?
- Aposte em hobbies saudáveis
De certeza que ir às compras não é a única coisa que a faz sentir bem. Recue no tempo e tente lembrar-se de outras atividades que lhe davam prazer, nomeadamente pintar, dançar, desenhar, praticar exercício físico, ir ao cinema ou ler. Envolva-se numa atividade gratificante, que lhe aumentará a auto-estima e que consumirá unicamente o seu tempo.
Veja na página seguinte: O diário de uma shopaholic
O diário de uma shopaholic
O relato, em forma de livro, de uma relações públicas e ex-jornalista britânica. Aqui está uma amostra daquilo que você não quer sentir quando ler «Diário de uma shopaholic», disponível em Portugal desde o início da década de 2010. «Como cheguei a este ponto? 31 mil, 637 libras e 84 pennies. Isto é quanto dinheiro eu devo. Mesmo o facto de dizer o número muito depressa não me faz sentir melhor», pode ler-se.
«Esta é a primeira vez em que me sentei e somei tudo até ao último penny e sinto-me fisicamente doente quando olho para o total que aparece na calculadora. Viro-a de cabeça para baixo para ver se ajuda. Parece qualquer coisa como holegie, que provavelmente significa falhada em qualquer língua há muito tempo esquecida. Talvez devesse tatuar a palavra no meu braço em sânscrito», prossegue.
«O problema é que sou uma shopaholic e, tanto quanto me consigo lembrar, sempre fui assim (...) Para mim, deslizar no caminho da dívida começou quando era estudante, longe de casa e com 500 libras de dívidas. Gastar dinheiro começou por ser divertido, excitante e controlável», refere ainda Sophie Kinsella. «Por mais impossível que pareça ter saltado de uma dívida de 500 libras para uma de 30.000», continua.
«[Para mais] quando temos em conta que demoraram mais de 20 anos para que eu acumulasse este nível de dívida, parece que só fui adicionando 1.500 libras por ano. Subitamente, até parece compreensível, fácil... Penso que, como acontece com qualquer vício, só conseguimos começar a recuperar quando admitimos que temos um problema e chegou a minha altura de o fazer. Levantar-me e dizer que o meu nome é Alexis e sou uma consumidora compulsiva», conclui.
Texto: Teresa D'Ornellas com Vítor Rodrigues (psicólogo clínico)
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