Segundo os números da APAV para 2020, em cada semana do ano 264 pessoas pediram ajuda por serem vítimas de violência doméstica. Destas, 167 foram mulheres, 35 foram crianças, 31 homens e 31 pessoas idosas. São números que não nos podem deixar indiferentes, sobretudo quando pensamos no universo de vítimas que ainda não sabe que o é. Nas centenas ou milhares de pessoas que, diariamente, são expostas a violência e a agressividade perpetrada por alguém que está próximo, que é íntimo, que é amado. Não há saúde mental quando o espaço (interior e exterior) está povoado por violência e manipulação. É preciso que a sociedade se una no reconhecimento deste flagelo que acontece, maior parte das vezes, de porta fechada. As vítimas têm de saber que são vítimas. Ser vítima não pode ser motivo de vergonha, mas sinal de injustiça a combater.
Tendo como ponto de partida a celebração do Dia dos Namorados, no passado dia 14 deste mês, este texto surge de um diálogo espontâneo entre duas psicólogas. Este é um tema que merece ser pensado e divulgado não só em dias festivos, mas em qualquer mês do ano.
[13:25, 13/02/2022] Catarina Janeiro: Inês, nem a propósito do que estivemos a falar da série “Maid”, encontro as redes sociais ocupadas com vídeos de um programa de televisão, de grande audiência, que me deixa estarrecida. Entre o enjoo doente e a preocupação intensa…
[20:05, 13/02/2022] Maria Inês Galvão: Sei do que falas, também vejo incrédula e revoltada. Preocupa-me a exibição destas imagens, enquadradas na “normalidade” e mascaradas de entretenimento. Preocupa-me a mensagem que se passa a quem assiste, principalmente jovens e adolescentes.
[20:20, 13/02/2022] Maria Inês Galvão: Se fosse um pontapé, ninguém duvidava. Ninguém insinuava que a responsabilidade é de quem foi agredido.
[22:18, 13/02/2022] Catarina Janeiro: Pois não. De um pontapé ninguém duvida que seja um pontapé, mas já vi muitas dúvidas sobre a culpa e o merecimento de quem o levou. Tem de ser claro que a agressão nunca, nunca, é justificada. Mas o jogo da culpa incluído na manipulação é tão mais difícil de identificar. Sentes-te desadequada, forças o racional da situação para aquele que te estão a dar e rapidamente passa a ser a tua realidade. E aí, já o autoconceito se esbateu e passas a acreditar mais no que o outro vê de ti, do que naquilo que sabes que és. A distância pode ser muito curta, para quem não estiver desperto.
Na série “Maid” confrontas-te sempre com uma personagem, apesar de tudo, muito decidida e esclarecida. Aquilo que vejo, na realidade, é que as dúvidas e as reconciliações podem durar até ao infinito. Da resistência física e psicológica. Como aconteceu com a Danielle, na série, lembras-te? Ela voltava sempre para a relação abusiva. É importante lembrar que as raparigas, mulheres na maioria, mas homens também, podem não estar a experimentar o abuso pela primeira vez nas suas relações. Dinâmicas e padrões familiares podem tornar tudo isto familiar e permitido. Mas não é. Às vezes faltam-me palavras suficientemente significativas para defender e lutar por todas estas vítimas.
[19:57, 14/02/2022] Maria Inês Galvão: Demorei a responder-te porque, enquanto pessoa, além de psicóloga, tenho estado a pensar muito sobre este tema das relações abusivas e do abuso que não é físico. Hoje é Dia dos Namorados e não páro de pensar sobre legitimação do abuso emocional e do impacto que isto tem nas pessoas que as vivem. O que aprendem sobre as relações e sobre si, até restar muito pouco.
Na série, houve uma imagem que achei muito poderosa: há um momento em que a Alex regressa a casa, à relação. Nessa imagem ela está deitada no sofá e começa a afundar-se até só restar um espaço negro onde ficava imóvel. Os dias dela passavam como se apenas os visse, sem participar, sem emoções. Acho que esta imagem ilustra bem como é falaciosa a ideia de que quem sofre consegue pedir ajuda. Não se trata de inteligência ou capacidade, trata-se, como dizias, do autoconceito se ter esbatido e seres o que o outro te diz que és. Ninguém devia estar em relações em que ser amada/o está dependente de se diminuir e de só poder existir com a permissão do outro. Ser amada/o não depende das roupas que estás a vestir, das pessoas com quem falas e de quem gostas, do teu peso ou imagem, de mostrares as conversas no teu telemóvel, de partilhares as palavras-passe. Isto não te torna mais confiável, respeitável ou digna/o de amor. Todas as pessoas em relações têm direito à sua individualidade e privacidade.
[22:18, 14/02/2022] Catarina Janeiro: Mas sabes que há agressores muito convincentes. A capacidade de manipulação, o direito que sentem que têm sobre o outro, torna-os muito credíveis. Muitas vezes, acredito que isto só é possível numa situação em que o próprio agressor precisa de ser ajudado. Ajudado a perceber que a vida pode ser mais do que controlar e manipular. E depois é difícil para a vítima ter de enfrentar o estigma e o julgamento, quando confronta um agressor que, subitamente, soa angelical. Para além do sofrimento, há a incompreensão dos que estão à volta. Ninguém sai saudável de uma relação abusiva… Talvez a boa intenção de ser útil e poder ajudar seja o melhor antídoto com que cada um de nós pode contribuir na hora mais escura. Uma mão, uma voz que traz de volta à realidade de voltar a ser quem se é. Agora, nos espaços de opinião pública, é precisa força e clareza para afirmar o que não pode ser permitido ou relativizado. Por mim, por ti e por todos que no futuro já saberão que numa relação abusiva não vale a pena!
[22:52, 14/02/2022] Maria Inês Galvão: Acho este tema replica muito bem o caminho que a saúde mental, a psicologia e a psicoterapia vão percorrendo e têm de continuar a percorrer na sociedade e na opinião pública. É preciso “psicoeducar” todos os envolvidos, para que todos possamos estar atentos a todos os sinais. O ciclo do charme que dá lugar a uma postura agressiva e manipuladora que quando descoberta dá lugar a uma postura de vitimização, tem de ser mais falado e conhecido. Mas este é apenas um exemplo. É um caminho que precisa de ser feito, em que se desmistifica o padrão relacional, em que se desestigmatiza a necessidade de ajuda profissional, mesmo que a ferida não esteja à vista. Porque esta ferida sara. Com ajuda, de forma a solidificar a identidade que se esmoreceu, a reparar os ciclos relacionais, a nutrir a autoestima, a trabalhar a assertividade e o estabelecimento de limites na relação com os outros e connosco próprios.
[23:18, 14/02/2022] Catarina Janeiro: Espero que a consciência sobre tudo isto tenha sido maior hoje do que no passado ano ou na passada semana.
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