Em oposição aos restantes dias do ano, o dia das bruxas é o único dia em que não há regras para viver o nosso lado mais monstruoso, escuro e sombrio. Atrás de uma máscara e por um dia, tudo se torna possível. A parte de nós que não é tão agradável e bonita é reconhecida e colocada à solta, ganhando um tão desejado espaço para gritar, desordenar e até assustar.
Talvez seja mesmo nesta falta de regras e na permissão para se ser assustador por um dia que reside a diversão e atração encontrada nesta tradição e seus rituais. Tornarmo-nos peritos no que é socialmente aceite, no que é colorido e agradável, obriga a conter e esconder de forma sistemática aquelas que consideramos ser as nossas características menos atrativas – conhecidas pelo senso comum como defeitos. Por sua vez, a conotação negativa associada a esta mesma designação e a reação estranha/negativa dos outros quando estas se revelam, geram com regularidade atitudes de autocrítica, negação e um desejo imenso de alterar/apagar esta parte de nós.
Deste modo, faz todo o sentido que a maior parte das pessoas que procura ajuda psicológica coloque ênfase na mudança, mas também que se aperceba que esta última, quando assente na vontade de ser o que não se é ou de estar onde ainda não se está, não acontece (tão rapidamente) como previsto. Pelo contrário, tal vontade parece resultar essencialmente em sensações de invalidação e autorrejeição, impeditivas de uma mudança que ocorre quando se é capaz de conhecer, explorar e aceitar tanto as qualidades e recursos que temos, como também, os nossos “calcanhares de aquiles”, as limitações que fazem parte de nós e podem corresponder a tendências específicas de sentir, pensar e agir.
É compreensível que o verbo aceitar possa fazer alguma confusão quando se fala de características que não gostamos em nós e que se manifestam de forma desagradável. No entanto, aceitar não é o mesmo que resignar. Segundo o dicionário de língua portuguesa:
- aceitar (verbo transitivo) - receber o que lhe é dado; receber com agrado; admitir; aprovar.
- resignar (verbo transitivo) - desistir a favor de outrem; renunciar a; abdicar de; conformar-se.
Enquanto que resignar pressupõe a conformação e um aprisionamento às limitações que se conhece – por exemplo, tenho dificuldade em lidar com pessoas então não vou sair de casa–, aceitar passa por adaptação, por assumir e abraçar com carinho e cuidado as tendências que não encaixam no que se gostaria de ser/estar ou no que é pedido pelos outros – por exemplo, se tenho tendência para sentir ansiedade perante momentos de avaliação, então, nos dias que antecipam estes momentos, tentar ter uma atitude de tolerância face aos pensamentos e sensações menos agradáveis que são naturais em mim e, ter especial atenção e cuidado com a acumulação de tarefas, horas de sono e exercícios de relaxamento.
É cansativo estar frequentemente a criar expectativas de mudança e a passar pela desilusão de não as concretizar por estas não estarem ajustadas de forma realista ao que são as nossas dificuldades. É cansativo estar sempre a lutar contra um lado que, apesar de assustador, faz parte de nós. É ao aceitar de braços abertos aquilo que são as nossas tendências naturais menos queridas e desejadas que a mente se abre para a mudança/adaptação que se procura.
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