Antes de mergulharmos na compreensão dos conceitos de assexual e demissexual, é importante fazermos uma breve contextualização à forma como a sexualidade tem sido olhada e vivenciada ao longo do tempo. A sexualidade integra a pirâmide das necessidades de Maslow, na sua componente mais básica ou seja, na componente fisiológica, na base da pirâmide. Logo, assume-se a importância generalizada da sexualidade, tanto para efeitos de reprodução e manutenção da espécie como para gratificação física e emocional. Contudo, com a sociedade em mudança, as necessidades têm-se vindo a alterar, encontrando-se outras formas de gratificação. Todavia, ainda é cedo para se falar de uma diminuição da importância da sexualidade para o ser humano, lembrando que a sexualidade não se resume ao ato sexual apenas ou à sexualidade partilhada com outra pessoa. Há várias formas de viver a sexualidade, sozinha ou partilhada.

Ultimamente temos sido confrontados com novos conceitos que traduzem novas vivências da sexualidade, como é o caso das pessoas que se sentem assexuais. Assexual refere-se ao conceito usado quando nos queremos referir a alguém que sente ausência ou diminuição muito significativa da atração e desejo sexual por outra pessoa, independentemente do género. Já o termo demissexual é usado quando a atração ou desejo sexual existe apenas na presença de um envolvimento emocional com a outra pessoa. Ambos os termos são discutidos enquanto uma forma de orientação sexual integrando o leque LGBTQIA+.

Cientificamente ainda sabemos pouco sobre esta condição. Recordemo-nos que a ausência de desejo sexual tem sido tipificada em saúde mental com o diagnóstico clínico de disfunção sexual, especificamente “perturbação do desejo sexual hipoativo” e, embora os critérios de diagnóstico tenham sofrido uma alteração na última versão do DSM, esta disfunção ainda é alvo de avaliação clínica.

Como em muitas outras situações, não podemos assumir uma condição, sintoma ou caraterística de algo sem uma devida avaliação psicológica ou médica. Uma vez que as explicações podem ser várias, devem ser alvo de avaliação e despiste antes de se assumir que a pessoa é assexual. As dificuldades ao nível da atração/desejo sexual são muitas e antigas, podendo dever-se a fatores emocionais, físicos ou até mesmo médicos. Embora a investigação nesta área seja ainda escassa, é preciso entender também que a sociedade está em mudança e atualmente o prazer é obtido de diferentes formas e o estímulo é grande. Há quem prefira o prazer de jogar videojogos ou ver séries ao prazer sexual e isso é preciso ser também tido em conta.

Esta nova forma de viver a sexualidade tem suscitado alguma controvérsia, uma vez que a sexualidade tem integrado o leque de necessidades básicas do ser humano e a continuidade da espécie é assegurada através da sexualidade e da reprodução. É assim em quase todas as espécies e no ser humano não é muito diferente. A reprodução aliada ao prazer físico, à ligação emocional alcançada através do sexo, bem como a outros benefícios físicos associados à atividade sexual, fazem com que a sexualidade seja globalmente valorizada. Através do sexo é possível a expressão de desejos e vontades e é para alguns a partilha plena entre duas pessoas que se amam. Está ainda associada a crenças de virilidade, de autoestima e de valor próprio. Neste enquadramento, as pessoas que se percecionam como assexuais poderão ter que lidar com alguns desafios no relacionamento interpessoal, sobretudo, nos relacionamentos amorosos/sexuais.

Apesar disto, é importante entender que, não sentir atração ou desejo não significa que não se sinta prazer. Aliás, mesmo em pessoas que não se identificam como assexuais é comum a diminuição do desejo sexual, mas quando ocorre atividade sexual a mesma ser gratificante e prazerosa. A atração/desejo é o impulso que nos leva a querer envolver sexualmente e o prazer é o resultado disso. Uma vez que a masturbação não implica a atração por alguém, mas a vivência isolada da própria sexualidade, é possível não sentir atração por outra pessoa mas sentir prazer com a masturbação. Coloca-se então a questão: é possível uma pessoa assexual estar numa relação com alguém que sente desejo? No amor e nas relações tudo é possível, por isso, em teoria diríamos que sim, mas com muito diálogo e negociação parte a parte. É difícil alguém que deseja e quer praticar sexo não ser correspondido pelo outro, podendo até gerar sentimentos ambíguos e perceções de valor próprio baixas. De igual modo, não é fácil para a pessoa assexual sentir que não consegue corresponder à necessidade do outro. Todavia, é possível negociar linhas intermédias.

A sociedade está em mudança e as fontes de gratificação, a forma como nos relacionamos e vivemos o amor também se tem alterado. Só através deste olhar mais abrangente e sociológico é que poderemos enquanto sociedade tornarmo-nos mais tolerantes e compreensivos.

Um artigo da psicóloga clínica Catarina Lucas.